domingo, 28 de junho de 2015

O castelo de D. Framundo - as escavações arqueológicas e as suas extrapolações

Uma «nota prévia».

     O castelo de D. Framundo, documentado em várias fontes, tinha sido objeto de algumas sondagens arqueológicas por parte de Eduíno Borges Garcia, que desenhou e publicou a sua planta; e finalmente, foi objeto de uma campanha arqueológica nos anos de 1978 e 1979, que foi conduzida pelo Professor Doutor Octávio da Veiga Ferreira (1917-1997). As escavações, realizadas sob a égide do Museu Dr. Joaquim Manso, da Nazaré, contaram também com a participação de Jorge de Almeida Monteiro, um artista apaixonado pela História e arqueologia, e um dos impulsionadores da criação desse Museu. O relatório das escavações, escrito pelo Veiga Ferreira, foi publicado apenas no ano de 2012, por iniciativa do antigo diretor do Museu da Nazaré, João Saavedra Machado (falecido recentemente, em 2014), que preparou a publicação, redigindo um prefácio e atualizando algumas das referências deixadas pelo arqueólogo. A edição foi levada a cabo pela Biblioteca da Nazaré, e pode ser consultada em várias bibliotecas, podendo ainda ser adquirida por quem o desejar na sede dessa biblioteca, sita na rua Mouzinho de Albuquerque, n.º 51 [1]. Uma visita à pequena e valiosa biblioteca nazarena, independentemente dos pretextos que nos movam, é, aliás, uma incursão que merece a pena, eles possuem, entre outros predicados, um bom fundo de história local, e desenvolvem um trabalho notável de dinamização cultural. Mas, acima de tudo, possuem um ambiente agradável e acolhedor, propício à leitura e à pesquisa. Quem goste de livros, sentir-se-á em casa!

     A estatura científica e cultural de Octávio da Veiga Ferreira, e a imensidão de trabalhos e publicações que nos deixou, é impressionante, tanto no domínio da História e arqueologia, como em geologia e paleontologia [2]. No ano em que dirigiu as escavações no castelo e na igreja de S. Gião, eu tive a oportuna chance de me encontrar no Museu da Nazaré em regime de trabalho de férias (através do programa O. T. L. – Ocupação de Tempos Livres); e nesse contexto, fui um dos cinco jovens estudantes que integraram esses trabalhos.

     Uma breve evocação do Veiga Ferreira. Apesar de todo o seu currículo e conhecimentos (de que eu, na altura, ainda não me tinha dado conta), o arqueólogo doutorado pela Sorbonne era um conversador nato, um comunicador, que gostava de contar peripécias e histórias que vivenciara ao longo da sua carreira, mas sempre com um grande sentido de humor, mesclado com alguma dose de nonsense. Mas também se percebia nele que era um homem que apreciava o trabalho de campo, que gostava de procurar e esquadrinhar no terreno. Prontamente, saía de um carro para ir averiguar se um bebedouro em pedra de que lhe haviam falado era algum sarcófago romano, como o vi fazer na Quinta Nova, na viagem de regresso ao Museu da Nazaré, ou aplicava algum do seu tempo a analisar os estratos geológicos de um determinado local, mesmo que não fosse essa a sua "tarefa" do momento.

     Numa ocasião, em S. Gião, na pausa da hora do almoço, eu andava pelo exterior da igreja a admirar as ruínas do aqueduto da Quinta, e aparece-me o Veiga Ferreira, que passou por mim sem se deter, enquanto me perguntava: Vou dar um passeio. Queres vir, rapaz? Eu disse que sim e acelerei o passo para me colocar ao seu lado. Caminhamos durante bastante tempo ainda, tornava-se difícil porque ele tinha uma passada regular e enérgica e o chão era de areia. O arqueólogo parecia pensativo, por vezes parava e apanhava alguma coisa do chão, uma pedra ou um pedaço de telha perdida no meio da areia ou das ervas.

     Estamos a esticar as pernas? Perguntei-lhe e ele, reagindo à pergunta, explicou então o motivo do passeio: Estamos à procura de uma torre romana! Houve um frade de Alcobaça que veio aqui e disse que ela ficava a norte da igreja, a dois tiros de besta. Se vires alguma coisa diferente no meio da areia, diz-me…de preferência, algo parecido com uma pedra com letras – acrescentou em tom de brincadeira.

     Prosseguimos a marcha. Notou-se quando ele se achou à distância de dois tiros de besta da igreja de S. Gião, porque passamos a andar mais devagar e um pouco em círculos, contornando a base das dunas. Estivemos nisso uma meia hora, e depois disse-me que era melhor voltarmos porque havia muito trabalho para fazer, e propôs que tomássemos caminhos diferentes, porque podia dar-se o caso de um de nós ter sorte. Assim fizemos. Continuei a contornar as dunas mais um pouco, de olhos muito abertos, como um lémure, e depois rumei à igreja. Quando lá cheguei, o Veiga Ferreira já lá se encontrava, a supervisionar o recomeço dos trabalhos. Olhou-me na interrogativa e eu encolhi os ombros, com genuína pena de não ter nada para lhe contar. Aquele não era um dia afortunado para descobrir torres na areia.

Octávio da Veiga Ferreira, fotografado em 1971 nas escavações da estação romana de Areias, em Cascais
 (imagem recolhida do estudo realizado pelo professor João Luís Cardoso)  


O relatório das escavações

     Não querendo desvalorizar a leitura e consulta do relatório das escavações, farei uma exposição abreviada do que ele nos traz de novo sobre o castelo de D. Framundo (e, indiretamente, sobre o castelo de Alfeizerão).

     O castelo de D. Framundo compõem-se de seis torres de cubelo redondo, e uma torre quadrangular que alberga uma cisterna; as muralhas são de aparelho isódomo, como no castelo de Alfeizerão, como nota Veiga Ferreira.

     Concluídas as escavações, e depois da análise e estudo dos materiais retirados, Octávio da Veiga Ferreira chega a algumas conclusões, que podemos sintetizar da seguinte forma:
a)      O castelo não assenta sobre nenhum estrato mais antigo (mouro, visigótico, romano ou anterior).
b)      Data do século XII e foi construído de raiz no reinado de D. Sancho I, que também teria, segundo Veiga Ferreira, e de «acordo com os historiadores», reconstruído o Castelo de Alfeizerão [3]. E ter-se-á mantido em funções até finais do século XV.
c)       Os vestígios (casas e materiais) denotam a manutenção aí de uma guarnição militar de defesa, um assentamento de natureza militar.
     Situada cronologicamente a época de construção do castelo de D. Framundo no reinado de D. Sancho I, Octávio da Veiga Ferreira desenvolve uma conjetura muito pertinente sobre o antropónimo D. Framundo.

     D. Framundo, que se associou a um lendário “mouro rico ou potentado” (Manuel Vieira Natividade) ou a um senhor suevo ou visigodo (Eduíno Borges Garcia) é um antropónimo comum entre francos e normandos, como aqueles que, verdadeiros senhores da guerra, integravam os exércitos de cruzados que auxiliaram o nosso primeiro rei na conquista de Lisboa. Existiu, por outro lado, uma família Framundo que, nos séculos XI e XII, participou na conquista da Calábria e Sicília, havendo também registo da sua presença em França.

     Como recompensa pela ajuda dos cruzados, os nossos dois primeiros réis concediam-lhes terras e praças de armas, com o propósito implícito de contar com a sua força militar em caso de novas investidas dos mouros ou ataques de piratas. A-dos-Francos deve o seu nome aos cruzados francos a quem Afonso I concedeu terras perto das Caldas da Rainha. Outro cruzado franco, Guilherme de Licorne, recebeu o senhorio da Atouguia da Baleia, pela sua participação na reconquista. No reinado de D. Sancho I, o rei atraiu os francos à serra da Arrábida, terra fronteiriça, que fundariam Sesimbra, na costa; e concedeu diversos castelos a Ordens militares para assegurar a sua manutenção no lado cristão.

     Perante estes dados, e cito o Doutor Veiga Ferreira: no século XII, apesar da falta de documentação, parece não ser de desprezar a eventualidade de outro dos Framundos normandos se ter integrado nalgum dos exércitos de cruzados. Terá participado na reconquista, e por cá terá ficado. Em recompensa, D. Sancho I certamente lhe entregou o Castelo e o nomeou seu primeiro alcaide.

     O nome D. Framundo converter-se-ia no topónimo D. Framundo, consagrado na primeira carta de povoamento de Alfeizerão ou na reorganização eclesiástica das paróquias em 1296.

Planta e alçados do castelo de D. Framundo, com as sanjas das escavações
(Desenho de Fernando Lino, incluído no relatório das escavações)

O regresso ao castelo de D. Framundo

     O castelo de D. Framundo encontra-se muito deteriorado, as muralhas e as casas foram desmanteladas quase até á sua base, como refere Veiga Ferreira no relatório, tendo desaparecido por completo a sua secção setentrional, que compreenderia a entrada da fortaleza. A pedra, afeiçoada e emparelhada de forma regular foi aí, como em todos os castelos abandonados, uma pedreira prodigiosa, um excelente recurso de materiais de construção para as casas e aldeamentos vizinhos.

     Antes de se iniciarem as escavações todo o perímetro interior do castelo foi desmatado e cortadas algumas das suas árvores para que se pudessem realizar os trabalhos arqueológicos. Concluídos os trabalhos, o castelo foi devolvido à natureza, o mato e as árvores voltaram a crescer e, se não o soubermos ou não andarmos com uma cábula, ninguém dirá que ali existe uma fortaleza construída no reinado do nosso segundo rei.

     Com a amável permissão dos responsáveis da empresa proprietária dos terrrenos, a firma Valbopan S.A., regressamos ao castelo trinta e seis anos depois, e encontramos o que esperávamos encontrar: as ruínas que conhecíamos, mergulhadas no manto denso da vegetação. A cisterna retangular que foi desentulhada de terra durante as escavações.alberga agora alguns troncos podres de árvore que ali hastearam, talvez para evitar que os distraídos caiam lá dentro. É difícil perceber o contorno das torres e muralhas, e fiquei surpreso quando percebi que, no centro do recinto, ainda existem as ruínas das casas de pedra que as escavações puseram a descoberto, com as pedras musgosas das paredes das casas rodeadas de ervas e folhas secas, como se selassem um compromisso entre o labor do homem e a obra da natureza.

O monte do castelo visto da sua base

Muralha 1

Muralha 2

Muralha 3

Ruínas de casas

A grande cisterna



[1] MACHADO, João L. Saavedra; MONTEIRO, J. Almeida, e FERREIRA, O. da Veiga, Trabalhos arqueológicos no castelo de D. Framundo em Famalicão da Nazaré, edição da Biblioteca da Nazaré, Nazaré, 2012.

[2] Leia-se o estudo biográfico do Professor João Luís Cardoso: O. DA VEIGA FERREIRA (1917-1997): SUA VIDA E OBRA CIENTÍFICA, editado pela Câmara Municipal de Oeiras em 2008. Versão eletrónica disponível no endereço http://www.uniarq.net/uploads/4/7/1/5/4715235/cardoso_2008.pdf. Consulta mais recente a 28 de Junho de 2015.

[3] O nosso segundo rei, justamente cognominado O Povoador, promoveu o estabelecimento de povoações e o crescimento das cidades e lugares, reforçando, entre outras medidas, as suas condições de segurança com a criação ou reedificação de fortalezas para as proteger. Além do Castelo de D. Framundo e, provavelmente, do castelo de Alfeizerão, teria sido ele quem, segundo o historiador Saul António Gomes, e na senda de Frei Manuel dos Santos, teria mandado construir o castelo de Alcobaça. Esta rede de castelos e fortificações davam ofereciam segurança às populações, e apoiavam as suas atividades económicas. Por isso, não é de admirar que se leia em Manuel Vieira Natividade (Mosteiro e Coutos de Alcobaça, Tipografia Alcobacense, 1960), que no reinado de D. Sancho I, os barcos vindos de Lisboa subiam a lagoa da Pederneira para irem carregar madeira à Fervença.

sexta-feira, 26 de junho de 2015

O CASTELO DE D. FRAMUNDO - um "marco" na charneira de três coutos

Gravura de Joaquim Vieira Natividade, reproduzida por Eduíno Borges Garcia em 
As torres e os fachos na lagoa da Pederneira - a torre de D. Framondo, Beja, 1964
O castelo onde antes estava uma torre

     A Torre ou Castelo de D. Framundo aparece-nos nas demarcações dos forais de Alfeizerão, da Pederneira e Cela Nova.

     Já antes havíamos escrito sobre ela, usando a forma D. Framondo, que é a mais comum nos documentos (o primeiro foral de Alfeizerão ou a divisão eclesiástica de 1296), e mesmo o Fremonda do foral da Pederneira está mais próxima desta. Mas o «D. Framundo» impõe-se por representar a sua forma erudita, historiográfica; nomeadamente, Octávio da Veiga Ferreira, no relatório das escavações que aí se realizaram em finais dos anos setenta, designa-a por castelo de D. Framundo.

     O nome de castelo também não é absurdo, castelo e torre concorrem nos topónimos e textos (Quinta do Castelo, Porto do Castelo, Granja da Torre, Mata da Torre); e temos aí uma fortaleza de dimensões modestas, mas que não é uma torre, mas uma fortaleza formada por um cume de colina acastelado com uma muralha de torres de cubelo redondo.

     A ereção da fortaleza nesse monte, e não no monte mais a sul, que é de maiores dimensões, portanto, com mais aptidões defensivas; só pode ter a ver com a sua vizinhança com as águas da antiga lagoa da Pederneira – a fortaleza na margem destinar-se-ia a guardar as águas da lagoa e, simultaneamente, deveria ter o papel de tutelar um porto interior (que o foral da Cela refere).

     A sua menção na primeira carta de povoamento de Alfeizerão pode ser revisitada na transcrição feita por Carlos Casimiro de Almeida, ou no pequeno estudo que dedicamos aos seus étimos e expressões. Nesta página, focaremos a sua ocorrência nos forais da Cela e Pederneira.

Carta da Cela Nova

     A carta de povoamento do mosteiro de Alcobaça à vila da Cela, data de 1286, e foi escrita num latim periférico e arremendado. Podemos lê-la na íntegra no estudo do Professor Saul António Gomes Um Manuscrito iluminado alcobacense trecentista: o “Caderno dos Forais” do Couto [1], e a tradução das demarcações dessa carta de povoamento, foi publicada pelo mesmo investigador num fascículo do jornal Região de Cister dedicado à vila da Cela [2].  
Começam na vinha velha do Alqueidão do Valbom, a qual vinha está junto das casas desse Alqueidão, assim como divide com o Lombo Mediabi da água da Azambuja e vai pelo vale da Bouça da Granja e entesta no fim do Vale de Maceira e do fim do Vale de Maceira, assim como divide com Vestiário [«Uestiario», a Vestiaria] e vai pelo Carril ao marco posto junto do Vale que vai para a água de Girom [Giron] assim como divide com os povoadores da Póvoa do Valado, a qual água de Girom descendo vai entrar na nossa Almuinha que é chamada de Paio Rapaz [Pelagio Rapaz]. E dessa Almuinha assim como desce até à Lagoa e volta aí para o muro posto junto da dita Lagoa e daí como vai confinando com esse muro e chega à água de sob o Porto do Castelo [Portum Castelli] e vai pelo Vale do Souto Velho e sai ao Porto Velho da Lájea [Portum Uetere de Lagena ] assim como vai ao Forum e daí ao Carril que vem de Alfeizerão pelo fim da Cumieira do Souto como vem ao Cabeço Raso até ao Vale Velho da vinha de Alqueidão de Valbom e vai por aquele Vale entrar no olival e herdamento de Pação que divide com a Granja de Colmeias [3].
     As demarcações apresentadas peregrinam por vários lugares cujos nomes são hoje um mistério para nós, mas podemos arriscar algumas notas.

     Pedro Gomes Barbosa [4] identificou, como antes vimos, o castelo de D. Framundo com o Porto do Castelo [Portum Castelli] deste foral. O Porto do Castelo seria algum embarcadouro situado junto à fortaleza.

     O Vale Maceira deste foral e a localidade de Vale de Maceira da atual freguesia de Alfeizerão são lugares homónimos, mas distintos. A granja do Souto também nos surge no primeiro foral de Alfeizerão (entre outros documentos), e se aqui se menciona a cumeeira do Souto, no dito foral fala-se da ribeira sobre (um lugar mais elevado) a granja do Souto, onde existiria um marco posto.

     O Forum, por sua vez, é um topónimo que sugere ruínas centenárias, mas é preferível sermos prudentes com as palavras (moinhos quixotescos) e com os entusiasmos que elas excitam. O Porto Velho da Lájea (lajedo, conjunto de lajes – um cais de pedra?) possui uma idêntica carga semântica, sobretudo se nos lembrarmos que os troços sobreviventes de estradas romanas eram chamados caminhos velhos.

     O Carril define, não um caminho comum, mas uma estrada, um caminho de reconhecida importância por onde passam os carros, e que muitas vezes serviu de linha de demarcação e fronteira entre possessões e concelhos (o carril por onde traçaram as linhas régias, lê-se no foral da Pederneira). O relevo, as linhas de água e os caminhos e estradas, são os pontos de referência mais óbvios para a definição de limites. Este Carril que vem de Alfeizerão, aparece-nos no foral desta vila como o Carril que vai de Óbidos para a Cela.

Sobre a Pederneira

     Esta carta de foral do mosteiro à Pederneira foi outorgada pelo abade frei Estevâo Pais, e seria coeva dos forais da Cela e Alfeizerão. Escrita em “latim” como o foral da Cela, foi publicada pelo historiador Carlos Fidalgo [5], com a tradução para português da Professora Helena Henriques. Dessa tradução, citamos as demarcações do couto, a sua parte corográfica:
(…) concedemos àqueles que moram na nossa localidade da Pederneira [Petrenaria], àqueles que vão ao mar e o frequentam, uma outra herdade nossa que fica entre a nossa Granja da Torre, que se chama Fremonda, e entre uma outra Granja nossa, a da Piscaria, cujos limites são os seguintes: no princípio começa pela Mamoa que fica junto do Porto da Barca e se estende em linha reta até ao Carril, de seguida o caminho estende-se pelo cimo da serra do lado da água até à Lagoa e até à nossa Granja da Torre e, do mesmo modo, estende-se pelo próprio cimo e desce pela Panadaria até à água de Anhados e volta até ao carril por onde traçaram as linhas régias; estende-se também pelo caminho de cima da vinha da Torre e alonga-se pelo Valado desde quase junto da Lagoa até à vinha de Dormon e, de igual forma, desce pelo Carril até ao embarcadouro onde eram as linhas régias» [6].
     A carta enfatiza a posse da vila da Pederneira pelo mosteiro (a nossa localidade), dado algo incerto, e descreve o circuito dos limites da herdade que concede aos moradores.

     Esta situava-se entre a Granja da Torre e a Granja da Pescaria. A Granja da Torre, é a designação da granja do convento de Alcobaça situada junto à torre de D. Framondo, aqui chamada também Fremonda. A vinha da Torre, que o mosteiro reservava para si, aparece-nos também na carta de povoamento de Alfeizerão de 1332.

     Os limites enunciados começam na Mamoa junto ao Porto da Barca, na entrada da lagoa. A mamoa é um dos nomes usuais para os outeiros artificiais que cobriam os dólmenes megalíticos, mas aplicável a qualquer colina de feição arredondada, como uma grande mama (origem do nome). Essa mamoa poderia ser, como sugere Carlos Fidalgo, um monte constituído pelos depósitos de uma ocupação humana do período neolítico; mas também podemos associá-la, hipoteticamente, à ainda lendária Torre de Neptuno descrita nessa zona por frei Bernardo de Brito e outros autores, que havia sido espoliada das suas pedras, (usadas para lastro dos navios), mas que deveria destacar-se das dunas arenosas em volta com o soco arquitetónico que a suportava

     Outros lugares nos surgem: Panadaria, água de Anhados, vinha de Dormon. Carlos Fidalgo isolou o antigo significado de Dormon: barco veloz, nome para um navio de três mastros. Outro topónimo deste documento, Água de Anhados, pode também estar associado à navegação e aos barcos. Água de Anhados sugere-nos, e significativamente, anho, cordeiro – a sua mansidão e quietude. António Moraes da Silva (Diccionario da Lingua Portugueza, volume I, Tipografia Lacerdina, Lisboa, 1813) explica no verbete Anhoto, que anhoto ou embarcação anhota, é um barco que não segue avante por não ter remadores ou por lhe faltar o vento que o impulsiona - donde se infere com algum sentido que esta água de Anhados poderia ser uma zona da lagoa onde os barcos tinham dificuldade em progredir, por não haver ventos de feição ou estar embaraçada por sapais.





[1] Gomes, Saul António, Um Manuscrito iluminado alcobacense trecentista: o “Caderno dos Forais” do Couto”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor José Amadeu Coelho Dias, II Volume, páginas 335-365, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006. Versão eletrónica em http://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/9379/3/jacdiasvol02completo000065991.pdf, última consulta a 24 de Junho de 2015.

[2] Artigo Cela Nova, Terra de Foros e Costumes, in Comemorações dos 500 anos da outorga do forais do concelho de Alcobaça por D. Manuel I – Cela, fascículo do jornal Região de Cister.

[3] As demarcações na origem: In primis quomodo incipit in uinea ueteri de Alq[ue]ydone Vallis bone que uine est iuxta domos ipsius Alqueydonis sicut diuiditur cum Lumbo Mediabi de aqua de Azambrugia et uadit per Uallem de Bouça de Grania et ferit in finem Valis de Macenairia et de fine Vallis Macenarie quomodo diuidit cum Uestiario et uadit per Carrile ad marcum positum iuxta Uallum quod uadit ad aquam de Giron quomodo diuidit cum popula [Fl. 2]17 toribus de popula de Valado que aqua de Giron descendendo uadit intrat in Almuniam nostram que dicitur de Pelagio Rapaz et de ipsa Almunia quomodo descendit ad Lacunam et reuertitur statim ad murum positum iuxta dictam lacunam et dehinc quomodo uadit pergendo per ipsum murum et iungitur aque de subtus Portum Castelli et uadit per Ualle ad Sautum Ueterem et exit ad Portum Uetere de Lagena quomodo uadiunt ad Capud de Souerali Vinee de Sauto, deinde ad Lacum quomodo uadit ad Forum deinde ad Carile quod uenit de Alfeyzeram per finem de Comeeyra de Sauto quomodo uenit ad Caput Rasum usque ad Uallum Ueterem Vinee de Alqueydone Vallis Bone et uadit per illum Ualum ferire in oliuetum et herdamentum de Paaçãao quod diuidit cum Grangia de Colmeis.

[4] Barbosa, Pedro Gomes - Povoamento e Estrutura Agrícola na Estremadura Central – Séc. XII a 1325, Instituto Nacional de Investigação Científica, Lisboa, 1992.

[5] Fidalgo, Carlos, As Igrejas da Pederneira, do séc. XII ao séc. XVII - uma análise. Caldas Editora, Caldas da Rainha, 2012.

[6] As demarcações na origem: In nomine Domini, amen. Quoniam dies hominum breues sint et eorum gesta nisi redigantur in scriptis a memoria elabuntur et obliuio sepe impedit ne ad noticiam perueniant preteritorum, iccirco nouerint uniuersi presentis scripti seriem inscripturi21 quod nos Frater Stephanus abbas et Conuentus Monasterii Alcobacie de beneplacito et concensu nostro et concedimus presentibus qui morantur un uilla nostra de Petrenaria qui mare intrant et frequentant quedam nostram hereditatem que iacet inter Grangiam nostram de Turre que uocatur de Fremonda et inter aliam Grangiam nostram de Piscaria cuius hereditatis isti sunt termini: in primo quomodo incipit per Mamoam que est iuxta Portum de Barca et tendit directe ad Carrile deinde quomodo tendit ipsa uia per cacumen de Serra uertentibus aquis ad Lacunam et ad Grangiam nostram de Turre et quomodo tendit per ipsum cacumen et descendit per Padanariam ad aquam de Anhados et reuertitur ad Carrile per quod deportauerunt ligna domini Regis et quomodo tendit per uiam de super Uineam de Turre et tendit per Ualadum de prope Lacunam usque ad uineam de Dormon et tendit sursum ad uiam publicam super uineam de Dormon et quomodo descendit per Carrile ad Imbarcatorium ubi fuerunt ligna domini Regis.

terça-feira, 16 de junho de 2015

O círio de Alfeizerão ao santuário de Nossa Senhora da Nazaré

A Igreja e a Real Casa de Nazareth, desenho (pormenor)
publicado na revista O Occidente, de Março de 1890

1 – A procissão de Alfeizerão na crónica do padre Manuel de Brito Alão.
          Na primeira obra de Manuel de Brito Alão [1] sobre o santuário de Nossa Senhora da Nazaré (Antiguidade da sagrada imagem de Nossa S. de Nazareth : grandezas de seu sitio, casa, & jurisdição real, sita junto à villa da Pederneira, primeira edição em 1637), as procissões e círios que convergiam para o santuário são descritas no capítulo vinte e oito da obra (que começa no fólio 72), tal como o enuncia o próprio título do capítulo: Da Confraria da Villa da Pederneira & das mais procissões que à Casa de nossa Senhora de Nazareth vem à vespera, & dia de nossa Senhora das Neves a cinco de Agosto.
          Assim, a 5 de Agosto, chega ao santuário a confraria da Pederneira, e nesse mesmo dia, a procissão de Famalicão, termo da Pederneira; e na véspera e no dia, as procissões do termo de Leiria (freguesias de Souto, Marinha, Monte Redondo, Monte Real e Maceira).
          Além destas, e citando Manuel de Brito Alão:
          No mesmo dia vem em procissão a freguesia do Juncal, termo de Porto de Mós, que fica a três léguas daqui, com as suas ofertas de bolos e trigo. No mesmo dia vêm as procissões das vilas de Aljubarrota, de Cós, de Évora, da Maiorga, da Cela, de Alfeizerão e do lugar de Tornada; e cada vila entra em procissão com o vigário e capelão, com as suas ofertas e cera acesa, e com os oficiais da câmara que as governam e administram, para os quais estão particulares bancos postos junto a esta mesa, fazendo os oficiais dela os oferecimentos que convêm a tão devota gente; juntando-se muita outra de várias partes que, por não caberem nas casas de dentro, nem de fora, se espalham pelo Sítio, de forma que parece um exército muito grande armando tendas e resguardos para o Sol; e para a véspera e dia, acodem muitos mercadores de panos, sirgueiros [vendedores de tecidos de seda] e tendeiros em muita quantidade, sombreireiros, sapateiros e tratantes de todo o mais género de mercadorias que costumam vir às feiras. E vende-se tanto peixe e variedade de frutas, que se parece com a formosa e populosa Ribeira de Lisboa, e em toda a Romagem se vê tanta alegria e contentamento, que por todo o sítio há bailes [bailos], danças, músicas, violas, pandeiros e adufes; e com as mesmas festas saem e entram no Sítio e Igreja, dizendo-se nos três altares tantas missas à véspera e no dia, que as começam a dizer uma hora antes da manhã e duram até ao meio dia, ouvindo-as a Romagem pelas portas travessas e alpendres por não caberem na Igreja, sendo tão grande como vedes, e os mais das vezes se prega fora, pelo muito grande concurso de Romagem, e para se poderem dizer melhor as muitas missas que por esse tempo se estão por dizer [2].

2. A procissão e círio de Alfeizerão
          Esta obra de Manuel de Brito Alão como, certamente, outras obras e fontes, documenta a romaria ou peregrinação coletiva feita pela vila de Alfeizerão ao santuário, em procissão com offertas & cera acesa, muito propriamente, um círio da vila; e um círio “oficial”, com a presença dos seus oficiais da câmara.
          No ano de 1721, escreve Cristóvão de Sá Nogueira, ouvidor da Comarca, que a procissão de Nossa Senhora da Nazaré era uma das três procissões anuais que se organizavam em Alfeizerão, sendo as outras duas, a do Corpo de Deus e a do Anjo Custódio – segundo informação do historiador Saul António Gomes no artigo Alfeizerão, do apogeu medieval à crise setecentista (no fascículo Alfeizerão, publicado pelo semanário Região de Cister em Outubro de 2014).
          Em 1758, o vigário da vila, D. Manuel Romão de Castelo Branco, nada diz dessa procissão, referindo apenas as romarias “caseiras” ao Santo Amaro de Alfeizerão, e à Santa Quitéria (Valado).
          Mais de um século depois, José de Almeida Salazar, no manuscrito Memórias da Real Casa de N. S. da Nazareth (Sítio, 1841), volta a falar do círio de Alfeizerão, mas o que escreveu [3] é um treslado do que escrevera, duzentos anos antes, o padre Manuel de Brito Alão; pelo que ficamos sem saber qual era a real situação desse círio na época.
          Supomos que a organização deste círio ou procissão se tivesse tornado mais esporádico, ou desaparecido mesmo, no decurso do século dezanove; porque, segundo o historiador Pedro Penteado [4], é criado em Setembro de 1908 o Novo Círio de Alfeizerão ao santuário da Nazaré, organizado pelo alfeizerense Bonifácio dos Santos. Este Novo Círio tinha como caraterísticas o Trono armado, e a entrega de esmolas no cofre da Senhora.
          Sabemos que era um círio modesto porque, no tomo primeiro da Nova Carta Chorographica de Portugal, escreve, em 1909, o Marquês de Ávila e de Bolama [5]: Dos outros círios, desde o termo de Coimbra ao de Lisboa, os mais notáveis são, em ordem descendente, os de Óbidos, Caldas da Rainha, Olhalvo, Pombal, Matacão, Porto de Mós, Turcifal de Torres Vedras, e Alfeizerão.

3. O Círio da Prata Grande
          Escreve o mesmo Marquês de Ávila e de Bolama: Dos círios da Nazaré, o mais notável, atualmente, é o Círio da Prata Grande, que foi instituído por El-Rei D. João V pela fusão dos antigos círios do termo de Lisboa, chamados os círios dos saloios. O nome do círio provém da magnífica insígnia de prata que lhe foi oferecido por D. João V.
         Na ibra atrás citada de Leite de Vasconcelos, reproduz-se (página 356) uma pagela de Setembro de 1926 com o itinerário do Círio da Prata Grande. Vindo da região de Lisboa pelo Bombarral, Roliça e S. Mamede, o Círio detinha-se nas seguintes lugares: Óbidos, Senhor da Pedra, Caldas da Rainha, Tornada, Maceira [Vale de], Alfeizerão, Alcobaça, Fábricas [as fábricas de fiação de Alcobaça], Valado, Pederneira e Nazaré.
          Em cada paragem, procurava-se cativar mais fiéis para se juntarem aos peregrinos, com festa, pregação e o cantar de loas. Possuímos uma descrição (e que nos serve de exemplo) da passagem do Círio da Prata Grande pelas Caldas da Rainha, escrita por Alfredo Pinto numa obra [6] publicada em 1914: No mês de Setembro, havia a tradicional passagem dos círios para a Nazaré. Eram três, o das Caldas, o da Prata Grande e o de Óbidos. Tanto na ida como na volta, os círios davam três voltas á roda da Praça e iam ao largo da Copa, em frente da porta do hospital, cantar as Lôas [Alfredo Pinto transmite-nos algumas, na página 16] (…). Terminadas as Lôas, a música executava o hino nacional, estalavam foguetes, e o círio continuava na sua derrota [itinerário].








[1] Licenciado Manuel de Brito Alão, Abade de S. João de Campos, e Administrador dos bens, obras e culto divino da dita Casa por sua Majestade (Antiguidade…, fl, 61).

[2] 
No mesmo dia vem a Freguesia do Juncal, termo de Porto de mós em Procissão, que são daqui tres legoas, com suas offertas de bolos,& trigo. No mesmo dia vem as Procissões das Villas de Algibarrota, de Cós, d’Evora, da Maiorga, da Sella, de Alfeizarão,& do lugar de Tornada;& cada Villa entra em Procissão com o Vigairo,& Capellão, com suas offertas,& cera acesa,& com os officiais da Camara que as governaõ,& administrão,para os quaes estão particulares bancos postos junto a esta mesa, fazendolhe os officiais della os oferecimentos que convem a tão devota gente; ajuntandose outra muita de varias partes, que por não caberem nas casas de dentro, nem de fora,se espalhão pello sitio,em forma que parece hum exercito muito grande, armando tendas,& reparos pera o Sol; & pera a vespera, &dia, acodem muitos mercadores de panos, sirgueiros, &tendeiros em muita quantidade,sombreireiros,çapateiros,tratantes de todo o mais genero de mercadorias,que costumão vir às feiras,&vendese tanto peixe,&variedade de frutas,que se parece com a fermosa,&populosa Ribeira de Lisboa:& em toda a Romagem se enxerga tanta alegria,&contentamento, que em todo o sitio há bailos,danças,musicas,violas,pandeiros,&adufes;& cõ as mesmas festas saem,& entrão no sitio,& Igreja, dizendose nos tres Altares tantas Missas á vespera,&dia, que as começão a dizer huma hora ante manhaã, & durão até o meyo dia, ouvindoas a Romagem pellas portas travessas,& alpendres, por não caberem na Igreja, sendo tão grãde como vedes,& as mais das vezes se prega fóra pello muito grande concurso da Romagem, & pera se poderem dizer melhor as muitas Missas que a esse tempo se estão para dizer (…).

[3] Em excerto transcrito por J. Leite de Vasconcelos (Etnografia Portuguesa, volume II, página 360, reedição fac-simile da Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa, 1985).

[4] Penteado, Pedro, A Senhora da Berlinda. Devoção e Aparato do Círio da Prata Grande à Virgem de Nazaré, página 35, Mar de Letras Editora, Ericeira, 1999.

[5] Antonio José de Avila e de Bolama (Marquês de), Nova Carta Chorographica de Portugal, Tomo I, Typografia da Academia Real das Sciencias, 1909.

[6] Pinto, Alfredo, Em Terras de Portugal – Recordações, Esboços, Fantasias, Livraria Ferin, Lisboa, 1914.

domingo, 7 de junho de 2015

Linhas de parentesco - algumas questões sobre os cristãos-novos

Detalhe da gravura sobre D. Fuas Roupinho,
que figura nas duas obras de Manuel de Brito Alão

1 – Laços de família
          Ao seguir os processos do Santo Ofício sobre os membros da família Brito que viveram na quinta da Cavalariça, termo da vila de Alfeizerão, surgiram-nos diversas dúvidas e interrogações pertinentes. Perante estas, achamos que a forma mais prática de as abordar era elaborar um pequeno estudo genealógico (disponível em formato PDF) onde fosse nítida a posição dos familiares indicados nesses processos do Santo Ofício, e as suas relações intrínsecas. Foi mais um quebra-cabeças do que uma tarefa simples: havia à partida a vantagem dos Processos conterem um capítulo de genealogia, e de as confissões/denunciações apontarem a relação de parentesco com os visados, mas nessas fontes existem informações contraditórias, omissões e trocas, nomes iguais que foram adotados por gerações diferentes, e diferentes apelidos usados ou conhecidos por terceiros para falar da mesma pessoa. Este arrazoado genealógico a que chegamos (depois de confrontarmos as informações de diferentes Processos [1]), tentamos que estivesse isento de erros, ainda que seja imprudente garanti-lo em absoluto.

1.1. Os parentes de Coimbra
          Os processos de Nuno de Brito Alão e Nuno da Silva, começam com as denúncias contidas nas confissões de dois primos de Coimbra, Lourenço de Sá e Madalena de Sá, religiosa no mosteiro de Semide (mosteiro de Santa Maria de Semide, em Miranda do Corvo). A relação estabelece-se com António de Figueiredo e Sousa, marido de Isabel de Brito, tia de Nuno de Brito Alão.

          Uma das irmãs de António de Figueiredo, Antónia de Figueiredo, foi casada com um homem nobre da cidade de Coimbra, Cristóvão de Sá, de quem teve Catarina de Sá. Esta Catarina de Sá foi casada duas vezes. Da primeira união, com um cristão-novo chamado Francisco da Silva (julgado e condenado à revelia pela Inquisição por não se lhe conhecer o paradeiro), nasceram os nossos Lourenço e Madalena de Sá. Da segunda união, com um fidalgo, D. João de Ataíde, teve uma filha, Maria de Figueiredo, que foi religiosa professa no mosteiro de Semide, tal como Madalena de Sá.

          Lourenço de Sá, avogado e bacharel em Leis, morador em Montemor-o-Velho, teve diversos familiares presos pela Inquisição, entre eles, os filhos. Por seu turno, o Processo de Madalena de Sá não é um exemplo ímpar nos meandros da história da Inquisição, existindo diversos casos de freiras presas por judaísmo ou heresia nos conventos da região de Coimbra (o mosteiro de Semide, o mosteiro de Nossa Senhora de Campos em Montemor-o-Velho, ou o mosteiro de Santa Maria de Celas).

          Arlindo Correia estudou, entre outros, o caso de Leonor da Silva, presa por judaísmo com outras duas irmãs de sangue, também irmãs religiosas, no mosteiro de Semide. Os detalhes do Processo são dramáticos, entrada no convento contra a sua vontade [2], acusada por outras religiosas de zombar das coisas santas da religião, negou sempre as suas culpas e acabará por ser relaxada à justiça secular e morta num Auto de Fé na cidade de Coimbra a de 4 de Maio de 1625 (Correia, Arlindo - As 5 freiras mortas pela Inquisição. Site: Página sobre a Inquisição em Portugal. Endereço: http://arlindo-correia.com/020714.html. Acesso mais recente a 04/06/2015).



1.2. Helena Aires
          A mãe de Nuno de Brito Alão, Helena Aires Correia, cristã-nova oriunda de Lisboa, esteve também presa nos cárceres da Inquisição (Processo de Helena Aires – Direção Geral de Arquivos/TT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 10614). Foi casada uma primeira vez com Duarte de Araújo, da família dos Lobos da Pederneira que viviam na cidade de Tomar (Pedro Fernandes Lobo, Jerónimo Lobo…); do qual enviuvou. Da filha desse primeiro casamento, Filipa de Jesus, ela diz (e quem melhor indicado para o dizer?) que era freira no mosteiro de Santa Iria de Tomar.

          Do seu casamento com Duarte de Brito Alão, nascerão dois filhos, Nuno de Brito e António. É curioso que nos testemunhos deste processo, Duarte de Brito Alão é indicado também como Duarte Lobo (fl.9/Img,17 [3]), ou seja, ainda manteve, pelo menos em alguns círculos, o apelido de via paterna que herdara de Pedro Fernandes Lobo, diminuído depois pelo receio de perseguições ou preconceitos antissemitas.

          Helena Aires esteve dois anos presa, foi ao Auto de Fé de 2 de Abril de 1634, sendo devolvida à liberdade alguns dias depois. Nuno de Brito Alão tinha treze anos à data da sua prisão.


1.3. Os Andrade e Gamboa

          Como tive oportunidade de tratar no processo de Nuno da Silva, o filho de Nuno de Brito menciona a família dos Andrade e Gamboa da quinta de S. Bento na Cela Velha, nomeadamente, o seu parente e amigo António de Andrade, filho de Francisco de Andrade e Isabel Gouveia, e cristão-novo por ambas as vias. Na confissão de João d’Eça [4] (Processo de João d’Essa: Direção Geral de Arquivos/TT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 2592), primo de Nuno da Silva, que fora soldado infante na Província do Alentejo, menciona-se o mesmo António de Andrade no fólio 34, falando de uma estadia na quinta da Cavalariça, junto ao lugar de Famelicão:
o ditto Nuno da Sylva acrescentou que a mesma crença da Ley de Moyses tinha Antonio Andrade de Gamboa, x. novo, solteiro, que vivia de sua fazenda, filho de Francisco d’Andrade, já defunto, e de Izabel da Veiga, christãos novos, e será de dezoito annos de idade, natural da villa da Pederneira, e morador no termo da Cela, em huma quinta que chamão Cela Velha, e que isto sabia por se haver declarado com elle, porem elle confitente, neste particular não tem certeza mais alguma, porquanto com o ditto Antonio de Andrade não fallava, antes erão inimigos.
       Felgueiras Gaio (Manuel José da Costa), no seu Nobiliário de Famílias de Portugal (12º volume, Costados III e IV) faz começar o morgadio da Cela Velha com António de Andrade Gamboa, o que corresponderá ao primeiro aforamento da quinta pela família. O pai do António Andrade de Gamboa, Francisco de Andrade de Araújo Gamboa, casado com Isabel da Veiga, é bisneto desse patriarca.

       Nuno da Silva diz que António de Andrade Gamboa é seu parente por via paterna. Não conseguimos fazer positivamente a ligação entre as duas famílias. A explicação mais simples é de que o Araújo do nome da família dos Andrade e Gamboa nos remeta para os Araújos e Lobos, cristãos-novos da Pederneira ou Tomar. Entre estes, contamos com Duarte de Araújo, o primeiro marido de Helena Aires Correia, ou Guiomar de Araújo que entra na árvore genealógica dos Andrade e Gamboa, e que era filha de Diogo Lobo.

          Por ironia, sensivelmente um século depois destes Processos, um membro da família Andrade e Gamboa candidata-se a Familiar do Santo Ofício, e é aceite. Trata-se de António de Andrade Gamboa [5], neto do António de Andrade e Gamboa referido por Nuno da Silva e João d'Eça. A Inquisição deve ter feito as indagações habituais sobre os seus parentes até aos avós maternos e paternos, e não deve ter encontrado sinais de ascendência judia, porque a carta de Familiar do Santo Ofício é-lhe concedida a 25 de Junho de 1743.

          Este António de Andrade e Gamboa (os nomes António e Francisco são reincidentes nesta família) fez desenvolver a quinta da Cela Velha e reconstruir r reedificar a capela de S. Bento. O seu túmulo encontra-se dentro da capela, e a inscrição tumular exibe a data de 1776.


2 - O padre Manuel de Brito Alão e o estigma do sangue

          No estudo introdutório (muito completo) que historiador Dr. Pedro Penteado escreveu sobre Manuel de Brito Alão numa reedição moderna da primeira obra do eclesiástico [6], encontramos bastantes informações sobre a sua vida e obra, que procuraremos, com a devida vénia, transmitir com parcimónia e em traços muito gerais.


          O padre Manuel de Brito Alão, era um dos filhos de Diogo Fernandes Lobo e Isabel de Brito. Muito jovem, iniciou com denodo os seus esforços para singrar na sociedade do seu tempo. Condicionado à vida eclesiástica pela sua condição de filho segundo, foi pajem do arcebispo de Braga, D. João Afonso de Meneses, que era fruto de uma relação da sua tia Maria de Brito com o fidalgo D. Fernando de Vasconcelos. Após a morte deste seu protetor, que o deixou um pouco desamparado, ruma à universidade de Coimbra, onde se forma como bacharel em Cânones em Junho de 1594. É nomeado, antes do ano de 1611, abade simples [7] de São João de Campos, no arcebispado de Braga, e por alvará régio de Junho de 1608, Filipe II atribui-lhe por um período de cinco anos o cargo de reitor e administrador da Casa de Nossa Senhora da Nazaré, renovado por mais cinco anos em 1612. 

         Durante a sua vigência como administrador da Casa de Nossa Senhora da Nazaré, desenham-se vários focos de atrito e linhas de ruptura, nomeadamente, entre o administrador e os mordomos da confraria, e entre a Casa de Nossa Senhora da Nazaré e a Vigararia (e Beneficiados) da Pederneira, que sempre ambicionou ser titular da administração e rendimentos do florescente santuário.

          Saído da administração da Casa, Manuel de Brito Alão pretende ser nomeado vigário da Pederneira, a sua terra natal, para cujo fito obtém o apoio do abade do mosteiro de Alcobaça, o Cardeal Infante D. Fernando de Áustria. A divulgação desse intuito fez abespinhar adversários e inimigos, com o então vigário da Pederneira a acusá-lo de judaísmo perante o Arcebispo de Lisboa. A acusação gorou os seus intentos, e a situação agrava-se quando a sua irmã Isabel de Brito é presa pela Inquisição. Citado como testemunha abonatória por Isabel de Brito, o ex-administrador vê-se enredado numa teia de boatos e suspeição que colocam um término definitivo em qualquer sonho de progredir na carreira eclesiástica. Isabel de Brito é condenada pela Inquisição em 1626, e o padre Manuel de Brito Alão, já por esse tempo e nos dez anos que se seguiram, dedica-se a desenvolver em moldes literários as anotações e registos que fora fazendo durante anos sobre a vida dos romeiros e peregrinos no Sítio e os milagres do santuário de Nossa Senhora da Nazaré [8]. Os dois livros que escreveu sobre o santuário, ou os dois livros que chegaram até nós (as fontes mencionam um terceiro e mesmo um quarto livro sobre o tema, que permanecem por encontrar ou descobrir) foram: Antiguidade da sagrada imagem de Nossa S. de Nazareth : grandezas de seu sitio, casa, & jurisdiçaõ real, sita junto à villa da Pederneira (impresso em Lisboa por Pedro Crasbeeck, no ano de 1628), que será reeditado em 1684; e Prodigiosas Historias e Miracvlosos svcessos acontecidos na Casa de nossa Senhora de Nazareth (impresso em Lisboa por Lourenço Craesbeeck, no ano de 1637).

          O padre Manuel de Brito Alão teria falecido pouco depois de 1650, em provecta idade. Para ele, um abade e sacerdote cristão atacado pelos seus inimigos em nome do sangue judeu que lhe corria nas veias, deve ter sido com particular satisfação que constatou a notoriedade obtida por esses livros e a forma como eles dinamizaram as peregrinações ao santuário mariano que administrou durante dez anos.  





[1] Entre outros, folheamos os Processos de João de Figueiredo, Isabel de Brito, Guiomar de Brito, Helena Aires, Francisca de Sousa, Francisco de Brito da Costa, João d’Eça e Mariana de Figueiredo.

[2] Cito uma das passagens do Processo que foi transcrita por Arlindo Correia, referente aos artigos de contraditas:
Diz que seu irmão Marçal Nunes é inimigo dela, porque não a deixou casar com Gil Homem da Costa e em vez disso a meteu a freira contra a vontade dela. São também suas inimigas Isabel Pinta e Filipa da Fonseca irmãs de Diogo Lopes da Rosa, freira do Convento de Semide. Até folgavam por o irmão da Ré, cónego Fernão Pinto da Silva ter sido morto pela Inquisição.  Diogo Lopes da Rosa é seu inimigo porque queria casar com ela e ela não o quis.

[3] Helena Ayres. Christãa nova, mulher do ditto Duarte de Araujo, que agora he segunda vez casada com Duarte Lobo

[4] Só pela curiosidade, ao longo da sua confissão, João d’Eça relata uma reunião judaizante com João de Figueiredo no casal de Mecarca (Macarca), próximo a Famalicão.

[5] Diligência de Habilitação de António de Andrade e GamboaDireção Geral de Arquivos/TT, Tribunal do Santo Oficio, Conselho Geral, Habilitações, António, mç. 94, doc. 1746.

[6] Antiguidade da Sagrada Imagem de Nossa Senhora da Nazaré, Edições Colibri/Confraria de Nossa Senhora da Nazaré, Lisboa. Além do estudo introdutório, o Dr. Pedro Penteado também fixou o texto da reedição.
A bio-bibliografia de Manuel de Brito Alão tinha já sido abordada pelo mesmo autor na obra Peregrinos da Memória – O Santuário de Nossa Senhora da Nazaré, 1600-1785, edição da Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 1998.

[7] Manuel de Brito Alão é aí presbítero do hábito de São Pedro, como refere, entre outros, Nuno de Brito Alão no seu Processo; expressão com que se designava o clero secular que era independente das ordens monásticas, e desempenhava as suas funções (por vezes, administrativas) dentro de uma dada diocese.

[8] Os dois livros, ou os dois tomos da mesma obra, são muito mais do que isso. Além de crónicas quase etnográficas sobre a vida no santuário, trazem-nos retratos vívidos de lugares e pessoas da região ou detalhes autobiográficos sobre o autor e a sua família. A forma como discorre a partir do relato de um milagre com comentários e lições exemplares, fazem transparecer o virtuosismo que lhe seriam próprios na pregação e na oratória.

No final do segundo tomo, Manuel de Brito Alão esclarece que não narrou milagres, porquanto estes teriam de ser aprovados como tal pelas autoridades eclesiásticas; mas maravilhas atribuídas à intercessão da Virgem.