Uma «nota prévia».
O castelo de D. Framundo, documentado em várias fontes, tinha
sido objeto de algumas sondagens arqueológicas por parte de Eduíno Borges
Garcia, que desenhou e publicou a sua planta; e finalmente, foi objeto de uma
campanha arqueológica nos anos de 1978 e 1979, que foi conduzida pelo Professor
Doutor Octávio da Veiga Ferreira (1917-1997). As escavações, realizadas sob a
égide do Museu Dr. Joaquim Manso, da Nazaré, contaram também com a participação
de Jorge de Almeida Monteiro, um artista apaixonado pela História e
arqueologia, e um dos impulsionadores da criação desse Museu. O relatório das
escavações, escrito pelo Veiga Ferreira, foi publicado apenas no ano de 2012,
por iniciativa do antigo diretor do Museu da Nazaré, João Saavedra Machado (falecido recentemente, em 2014), que
preparou a publicação, redigindo um prefácio e atualizando algumas das referências
deixadas pelo arqueólogo. A edição foi levada a cabo pela Biblioteca da Nazaré,
e pode ser consultada em várias bibliotecas, podendo ainda ser adquirida por
quem o desejar na sede dessa biblioteca, sita na rua Mouzinho de Albuquerque, n.º 51
[1].
Uma visita à pequena e valiosa biblioteca nazarena, independentemente dos pretextos que
nos movam, é, aliás, uma incursão que merece a pena, eles possuem, entre outros
predicados, um bom fundo de história local, e desenvolvem um trabalho notável
de dinamização cultural. Mas, acima de tudo, possuem um ambiente agradável e acolhedor, propício à leitura e à pesquisa. Quem goste de livros, sentir-se-á em casa!
A estatura científica e cultural de Octávio da Veiga
Ferreira, e a imensidão de trabalhos e publicações que nos deixou, é
impressionante, tanto no domínio da História e arqueologia, como em geologia e
paleontologia [2]. No ano
em que dirigiu as escavações no castelo e na igreja de S. Gião, eu tive a oportuna
chance de me encontrar no Museu da Nazaré em regime de trabalho de férias (através
do programa O. T. L. – Ocupação de Tempos Livres); e nesse contexto, fui um dos
cinco jovens estudantes que integraram esses trabalhos.
Uma breve evocação do Veiga Ferreira. Apesar de todo o seu
currículo e conhecimentos (de que eu, na altura, ainda não me tinha dado conta),
o arqueólogo doutorado pela Sorbonne era um conversador nato, um comunicador,
que gostava de contar peripécias e histórias que vivenciara ao longo da sua
carreira, mas sempre com um grande sentido de humor, mesclado com alguma dose
de nonsense. Mas também se percebia
nele que era um homem que apreciava o trabalho de campo, que gostava de procurar
e esquadrinhar no terreno. Prontamente, saía de um carro para ir averiguar se um bebedouro em pedra de que lhe haviam falado era algum sarcófago romano, como o vi fazer na Quinta Nova, na viagem de regresso ao Museu da Nazaré, ou aplicava algum do seu tempo a analisar os estratos geológicos de um determinado local, mesmo que não fosse essa a sua "tarefa" do momento.
Numa ocasião, em S. Gião, na pausa da hora do almoço, eu
andava pelo exterior da igreja a admirar as ruínas do aqueduto da Quinta, e
aparece-me o Veiga Ferreira, que passou por mim sem se deter, enquanto me
perguntava: Vou dar um passeio. Queres
vir, rapaz? Eu disse que sim e acelerei o passo para me colocar ao seu
lado. Caminhamos durante bastante tempo ainda, tornava-se difícil porque ele
tinha uma passada regular e enérgica e o chão era de areia. O arqueólogo
parecia pensativo, por vezes parava e apanhava alguma coisa do chão, uma pedra
ou um pedaço de telha perdida no meio da areia ou das ervas.
Estamos a esticar as
pernas? Perguntei-lhe e ele, reagindo à pergunta, explicou então o motivo
do passeio: Estamos à procura de uma
torre romana! Houve um frade de Alcobaça que veio aqui e disse que ela ficava a
norte da igreja, a dois tiros de besta. Se vires alguma coisa diferente no meio
da areia, diz-me…de preferência, algo parecido com uma pedra com letras –
acrescentou em tom de brincadeira.
Prosseguimos a marcha. Notou-se quando ele se achou à
distância de dois tiros de besta da igreja de S. Gião, porque passamos a andar
mais devagar e um pouco em círculos, contornando a base das dunas. Estivemos
nisso uma meia hora, e depois disse-me que era melhor voltarmos porque havia
muito trabalho para fazer, e propôs que tomássemos caminhos diferentes, porque
podia dar-se o caso de um de nós ter sorte. Assim fizemos. Continuei a
contornar as dunas mais um pouco, de olhos muito abertos, como um lémure, e
depois rumei à igreja. Quando lá cheguei, o Veiga Ferreira já lá se encontrava,
a supervisionar o recomeço dos trabalhos. Olhou-me na interrogativa e eu
encolhi os ombros, com genuína pena de não ter nada para lhe contar. Aquele não
era um dia afortunado para descobrir torres na areia.
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Octávio da Veiga Ferreira, fotografado em 1971 nas
escavações da estação romana de Areias, em Cascais
(imagem recolhida do estudo realizado
pelo professor João Luís Cardoso)
|
O relatório das
escavações
Não querendo desvalorizar a leitura e consulta do relatório
das escavações, farei uma exposição abreviada do que ele nos traz de novo sobre
o castelo de D. Framundo (e, indiretamente, sobre o castelo de Alfeizerão).
O castelo de D. Framundo compõem-se de seis torres de cubelo
redondo, e uma torre quadrangular que alberga uma cisterna; as muralhas são
de aparelho isódomo, como no castelo de Alfeizerão, como nota Veiga Ferreira.
Concluídas as escavações, e depois da análise e estudo dos
materiais retirados, Octávio da Veiga Ferreira chega a algumas conclusões, que
podemos sintetizar da seguinte forma:
a) O castelo não assenta sobre nenhum estrato mais antigo (mouro, visigótico, romano ou anterior).
b) Data do século XII e foi construído de raiz no reinado de D. Sancho I, que também teria, segundo Veiga Ferreira, e de «acordo com os historiadores», reconstruído o Castelo de Alfeizerão [3]. E ter-se-á mantido em funções até finais do século XV.
c) Os vestígios (casas e materiais) denotam a manutenção aí de uma guarnição militar de defesa, um assentamento de natureza militar.
Situada cronologicamente a época de construção do castelo de
D. Framundo no reinado de D. Sancho I, Octávio da Veiga Ferreira desenvolve uma
conjetura muito pertinente sobre o antropónimo D. Framundo.
D. Framundo, que
se associou a um lendário “mouro rico ou potentado” (Manuel Vieira Natividade)
ou a um senhor suevo ou visigodo (Eduíno Borges Garcia) é um antropónimo comum
entre francos e normandos, como aqueles que, verdadeiros senhores da guerra,
integravam os exércitos de cruzados que auxiliaram o nosso primeiro rei na
conquista de Lisboa. Existiu, por outro lado, uma família Framundo
que, nos séculos XI e XII, participou na conquista da Calábria e Sicília,
havendo também registo da sua presença em França.
Como recompensa pela ajuda dos cruzados, os nossos dois
primeiros réis concediam-lhes terras e praças de armas, com o propósito
implícito de contar com a sua força militar em caso de novas investidas dos
mouros ou ataques de piratas. A-dos-Francos deve o seu nome aos cruzados
francos a quem Afonso I concedeu terras perto das Caldas da Rainha. Outro
cruzado franco, Guilherme de Licorne, recebeu o senhorio da Atouguia da Baleia,
pela sua participação na reconquista. No reinado de D. Sancho I, o rei atraiu
os francos à serra da Arrábida, terra fronteiriça, que fundariam Sesimbra, na costa; e
concedeu diversos castelos a Ordens militares para assegurar a sua manutenção
no lado cristão.
Perante estes dados, e cito o Doutor Veiga Ferreira: no século XII, apesar da falta de
documentação, parece não ser de desprezar a eventualidade de outro dos
Framundos normandos se ter integrado nalgum dos exércitos de cruzados. Terá
participado na reconquista, e por cá terá ficado. Em recompensa, D. Sancho I certamente lhe entregou o
Castelo e o nomeou seu primeiro alcaide.
O nome D. Framundo converter-se-ia no topónimo D. Framundo,
consagrado na primeira carta de povoamento de Alfeizerão ou na reorganização
eclesiástica das paróquias em 1296.
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Planta e alçados do castelo de D. Framundo, com as sanjas das escavações (Desenho de Fernando Lino, incluído no relatório das escavações) |
O regresso ao castelo
de D. Framundo
O castelo de D. Framundo encontra-se muito deteriorado, as muralhas e as casas foram desmanteladas quase até á sua base, como refere Veiga Ferreira no relatório, tendo desaparecido por completo a sua secção setentrional, que compreenderia a entrada da fortaleza. A pedra, afeiçoada e emparelhada de forma regular foi aí, como em todos os castelos abandonados, uma pedreira prodigiosa, um excelente recurso de materiais de construção para as casas e aldeamentos vizinhos.Antes de se iniciarem as escavações todo o perímetro interior do castelo foi desmatado e cortadas algumas das suas árvores para que se pudessem realizar os trabalhos arqueológicos. Concluídos os trabalhos, o castelo foi devolvido à natureza, o mato e as árvores voltaram a crescer e, se não o soubermos ou não andarmos com uma cábula, ninguém dirá que ali existe uma fortaleza construída no reinado do nosso segundo rei.
Com a amável permissão dos responsáveis da empresa proprietária dos terrrenos, a firma Valbopan S.A., regressamos ao castelo trinta e seis anos depois, e encontramos o que esperávamos encontrar: as ruínas que conhecíamos, mergulhadas no manto denso da vegetação. A cisterna retangular que foi desentulhada de terra durante as escavações.alberga agora alguns troncos podres de árvore que ali hastearam, talvez para evitar que os distraídos caiam lá dentro. É difícil perceber o contorno das torres e muralhas, e fiquei surpreso quando percebi que, no centro do recinto, ainda existem as ruínas das casas de pedra que as escavações puseram a descoberto, com as pedras musgosas das paredes das casas rodeadas de ervas e folhas secas, como se selassem um compromisso entre o labor do homem e a obra da natureza.
O monte do castelo visto da sua base |
Muralha 1 |
Muralha 2 |
Muralha 3 |
Ruínas de casas |
A grande cisterna |
[1] MACHADO,
João L. Saavedra; MONTEIRO, J. Almeida, e FERREIRA, O. da Veiga, Trabalhos arqueológicos no castelo de D.
Framundo em Famalicão da Nazaré, edição da Biblioteca da Nazaré, Nazaré,
2012.
[2] Leia-se
o estudo biográfico do Professor João Luís Cardoso: O. DA VEIGA FERREIRA
(1917-1997): SUA VIDA E OBRA CIENTÍFICA, editado pela Câmara Municipal de
Oeiras em 2008. Versão eletrónica disponível no endereço http://www.uniarq.net/uploads/4/7/1/5/4715235/cardoso_2008.pdf.
Consulta mais recente a 28 de Junho de 2015.
[3] O nosso
segundo rei, justamente cognominado O Povoador, promoveu o estabelecimento de
povoações e o crescimento das cidades e lugares, reforçando, entre outras
medidas, as suas condições de segurança com a criação ou reedificação de
fortalezas para as proteger. Além do Castelo de D. Framundo e, provavelmente,
do castelo de Alfeizerão, teria sido ele quem, segundo o historiador Saul
António Gomes, e na senda de Frei Manuel dos Santos, teria mandado construir o
castelo de Alcobaça. Esta rede de castelos e fortificações davam ofereciam segurança às
populações, e apoiavam as suas atividades económicas. Por isso, não é de
admirar que se leia em Manuel Vieira Natividade (Mosteiro e Coutos de Alcobaça, Tipografia Alcobacense, 1960), que
no reinado de D. Sancho I, os barcos vindos de Lisboa subiam a lagoa da Pederneira para irem
carregar madeira à Fervença.