quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Guerra Peninsular - 1

Num mês de Dezembro como este, mas há duzentos e sete anos, as tropas napoleónicas, sob a égide de Junot, ocuparam a região, pilhando arbitrariamente os seus bens e recursos. A Guerra Peninsular iria arrastar-se durante sete anos, terminando há duas centúrias atrás, em 1814. Ao contrário da I Guerra Mundial, a Guerra Peninsular foi uma guerra dentro de portas com os contornos de uma guerra civil, com portugueses nos dois lados do conflito, e o domínio de um povo invasor que saqueou e matou a seu bel-prazer

Com isso em mente, seleccionamos alguns textos ilustrativos sobre o tema.

Este primeiro é composto por um excerto do capítulo 25 da História Geral da Invasão dos Francezes em Portugal e da Restauração deste Reino, Tomo I, de José Acúrcio das Neves (impresso na Oficina de Simão Tadeu Ferreira, em Lisboa no ano de 1810). No tomo II desta obra (no capítulo 30), podem ler a triste narrativa sobre a agitação popular das Caldas da Rainha, que resultou na execução de nove pessoas (houve um décimo condenado - e o livro conta-nos a sua história - que por caprichosa fortuna conseguiu escapar à morte), e que é um bom exemplo da fraudulenta e crua justiça do invasor.

A segunda publicação reúne dois outros escritos de José Acúrcio das Neves, retirados do tomo IV da sua História Geral da Invasão dos Franceses..., e que dão conta do levantamento popular na zona contra os franceses, e da consequente e devastadora punição levada a cabo pelo general Thomières.

Na terceira publicação, transcrevemos uma descrição (inserta na obra de Francisco Baptista Zagalo sobre a Misericórdia de Alcobaça) que retrata o estado em que ficou a região depois das invasões francesas.

Atualizei a grafia das palavras e de alguns nomes.

As gravuras, exceptuando a do forte de S.Miguel, foram extraídas do livro Letters from Portugal and Spain : comprising an account of the operations of the armies under their excellencies Sir Arthur Wellesley and Sir John Moore, from the landing of the troops in Mondego Bay to the battle at Corunna : illustrated with engravings by Heath, Fittler, Warren, &c. from drawings made on the spot by Adam Neale, impressão de Richard Phillips, Londres, 1809. 

Estas gravuras retratam a guerra peninsular pelo lado britânico, mas constituem imagens fidedignas desses tempos bélicos, baseadas em desenhos executados nos próprios locais por Adam Neale. 





CAPITULO XXV
A divisão Loison se estende desde o cabo da Roca até S. Martinho e Nazaré. Extorsões deste General, de Thomières, e de seus subalternos por esta parte do reino, e outros sucessos com que remata o ano de 1807.

      Deixo dito no lugar competente o destino, que deu Junot à divisão do seu exército, comandada por Loison [general Louis Henri Loison], continuarei agora esta matéria. Tendo este general chegado a Lisboa em 4 de Dezembro, a 8 já tinha o seu quartel em Torres Vedras, onde fez ajuntar os corregedores desta mesma vila, de Alenquer, Ribatejo, Alcobaça e Leiria, para tratar com eles o modo de fazer as excessivas requisições com que foram atormentados os povos destas comarcas, com o pretexto da subsistência do exército. Intimações severas se fizeram a estes ministros para fazerem executar à mão armada, se fosse preciso, todas as que lhe fossem feitas pelo comissário de guerra Priston, declarando-se ilegais todas as que não partissem desta origem, exceto as que fizesse o general Thomières [barão Jean-Guillaume-Barthélemy Thomières]. Este general comandava uma das brigadas da divisão, e fez o seu assento em Peniche: esteve algum tempo em Colares, onde assolou quintas e pomares, os mais deliciosos do reino. Charlot [general Hugues Charlot] comandava a outra e estabeleceu o seu quartel em Torres Vedras; enquanto este último ganhava a benevolência dos povos pela sua humanidade, o outro adquiria um nome odioso pela sua crueza e rapacidade. As requisições que fez Thomières em gados, vinho, grãos,  &c. foram imensas: só ao mosteiro de Alcobaça coube dar dos seus granéis 228 moios, e seis alqueires em trigo, milho cevada e legumes, e por aqui se pode julgar do mais à proporção [em nota de rodapé, José Acúrcio das Neves acrescenta que o corregedor de Alcobaça tinha de providenciar, semanalmente, para a mesa do general Loison, 3 dúzias de garrafas de vinho do Porto, 2 ou 3 garrafas de vinho dito da Madeira, doces de boa qualidade, 6 arráteis de velas de cera, 1 provisão de café, 2 presuntos, 6 galinhas, 3 perus, 6 dúzias de ovos, 1 provisão de manteiga, 1 pão de açúcar e 12 arráteis de açúcar ordinário]. Suspeitava-se que Thomières repartia o seu produto com Loison, e é certo que estes géneros, pela maior parte, se conduziam a Peniche, e aí eram vendidos por preços muito diminutos, às vezes nos próprios sacos em que eram levados.
     A 19 de Dezembro [de 1807] já se achavam tropas francesas guarnecendo o porto de S. Martinho e o forte da Nazaré. Fizeram um novo forte de madeira em S. Gião, de que as despesas, assim como as de outras obras nos fortes de S. Martinho e Nazaré, saíam da comarca, havendo a presunção de que Thomières recebia de Lisboa o dinheiro para elas; e só alguns meses depois foram também guarnecer a Figueira, ficando entretanto sem defesa toda aquela costa até ao Porto.
     Em Alcobaça esperava achar um Potosí [localidade boliviana célebre pelas suas minas de prata, alegoria para terra de riqueza e abundância]; porque desde Baiona, dizia ele mesmo, não lhe tinham falado senão nas riquezas desta casa, de que avaliava as rendas em mais de meio milhão – o seu comportamento para com ela foi coerente com estas ideias. Instado pela devoção que lhe inspirava o retiro dos filhos de S. Bernardo, um dos mais antigos e veneráveis de Portugal, propôs-se ir visitá-lo.       A 27 de Dezembro, foi almoçar no forte de S. Martinho com Toutan, um dos comandantes franceses daqueles sítios, que para o brindar com mais um prato, mandou ao campo de Alfeizerão matar a tiro de espingarda uma vaca, só para lhe aproveitar a língua, deixando estendido o corpo; refiro este facto, porque serve de dar a conhecer as grandezas destes homens, à custa dos portugueses.
      De S. Martinho, foi pernoitar à Nazaré, em casa do Reitor, que tratando-o o melhor que lhe foi possível, recebeu em recompensa mil vexações com o fim de lhe ser extorquido dinheiro; e a 28 finalmente avistou os santos muros de Alcobaça, em que de tão longe trazia o pensamento.
     Não sabiam os religiosos, que este era o dia em que haviam de receber uma tão importante visita; posto que pensavam bem que não passariam sem ela. Thomières tinha tido o cuidado de ocultar a sua jornada, para os ter em suspensão e os apanhar de surpresa. Foi chamado à pressa o prelado, e com alguns padres o veio receber ao topo da escada: avança o general com tão grande ímpeto por entre eles, que faltou pouco para os lançar por terra, e rompe na expressão: Que se o Príncipe de Portugal recebesse por aquela forma um general francês, ele se não dispensaria de o levar preso; e voltando-se para a sua comitiva, que na maior parte era composta de portugueses, obrigou a todos a que pusessem os chapéus na cabeça, repreendendo-os de os levarem nas mãos.
    Pediu um quarto, para onde se recolheu; e seguindo-o o prelado, e mais padres, nenhum foi recebido por espaço de 5 horas; mas o prelado foi logo atacado por Sibron, oficial português de nação, e francês por comportamento, que comandava o forte da Nazaré, e servia de língua [tradutor] a Thomières, com proposições as mais instantes, para entregar a este general os supostos tesouros da casa. Representou-se ao general, que não estava bem informado; porque o mosteiro, em lugar de tesouros, tinha grandes dívidas passivas; e foi necessário levarem-se-lhe os livros da administração das rendas, e do cofre, donde ele viu com efeito um alcance de mais de sessenta contos de réis. Que impressão não devia causar esta demonstração num espírito como o de Thomières, tão penetrado da sagrada fome do ouro? O seu ar sombrio, e as exactas pesquisas que fez por toda a casa, até nas cavalariças, o mostraram bem; mas enfim, no dia 30, depois de ter dado ideias de romper estradas dali até Peniche, de conduções de artilharia, e do estabelecimento de um hospital no mosteiro, para o que mandou previamente que se fornecesse bem a botica, os padres o viram partir, alegre e cortês para com todos, ficando eles ainda mais alegres com a ausência de um tal hóspede.

 (Neves, José Acúrcio das, História Geral da Invasão dos Francezes em Portugal e da Restauração deste Reino, Tomo I, capítulo XXV, impresso na Oficina de Simão Tadeu Ferreira, Lisboa)


A ponte sobre a ribeira de Nisa, desenho de Adam Neale


A passagem do exercito em Vila Velha de Ródão, desenho de Adam Neale


Guerra Peninsular - 2


CAPITULO XXIX
Sucessos da expedição dos Académicos de Coimbra até Leiria. Restaura-se esta última cidade, e se procuram os meios de a pôr em estado de defesa. Levantamento da Nazaré e povoações vizinhas, e consequências que teve.

      (…) Chegaram por este tempo a Leiria emissários da Nazaré, a pedirem socorro contra os franceses que guarneciam e infestavam aqueles sítios; e uma parte do destacamento dos Académicos se pôs logo a caminho, levando consigo um corpo de paisanos, dos que se achavam melhor armados. Os Académicos quiseram apropriar-se de toda a honra desta acção, mas é necessário dar a cada um o que lhe pertence.
      No forte da Nazaré tinham os franceses uma guarnição de cinquenta e tantos homens com a competente artilharia; a meia légua daí tinham mais o forte de S. Gião, com duas peças de grosso calibre, e vinte e tantos homens, e uma força igual no de S. Martinho, correspondendo-se todos estes pontos por sinais telegráficos, e tudo às ordens de Miron, tenente de artilharia português, que residia na Nazaré. O juiz da Pederneira era obrigado a fornecer diariamente aos franceses certa quantidade de víveres, e além destes, foi intimado por ordem de Miron para aprontar rapidamente quinhentas rações de reserva, [sob] pena de ser saqueada a terra. Principiou o juiz, e como as não pudesse completar nas poucas horas que lhe foram aprazadas, os franceses começaram efetivamente o saque no primeiro de Julho, e o continuaram no dia 2. Passando nesta ocasião pela praia uma ordenança francesa com despachos do forte de S. Martinho para o da Nazaré, os pescadores, justamente indignados contra o bárbaro procedimento dos invasores, caíram sobre ela, e a esfaquearam [faqueárão], gritando: morram os franceses! Imediatamente, foi quebrado o mastro em que se faziam os sinais de comunicação, e a sentinela que o guardava teve uma sorte igual à da ordenança; o povo correu de todas as parte em tumulto, e os franceses, intimidados, recolheram-se ao forte.
      Acabava de chegar a notícia da restauração de Leiria, e de publicar-se a proclamação do Governo de Coimbra, o que animou muito os povos, e deu grande extensão aos seus movimentos. O Juiz de Fora de Alcobaça fez aprontar toda a pólvora que apareceu na vila, e andava por quatro arráteis (que quantidade, para fazer frente ao inimigo!) ajuntaram-se as poucas espingardas que havia, os chuços, as foices e os espetos em que consistia o principal armamento do paisano. Ao primeiro movimento, os franceses de S. Gião abandonaram o forte, deixando mal encravadas as suas duas peças, e enterrados os dois barris de pólvora; os de S. Martinho também fugiram, indo incorporar-se a Thomières, que girava por entre as Caldas, Óbidos e Peniche, ficando os do forte da Nazaré cercados pelo povo, que destacou um corpo de gente ao de S. Gião para conduzir as peças, e os dois barris de pólvora que, felizmente, foram descobertos por uns rapazes, e algumas outras munições, que também se acharam.     Aqui temos já os nossos com artilharia pronta para baterem o forte, mas faltava quem a soubesse dirigir.
      Dizia-se que estava em Leiria um numeroso exército espanhol, e é o que sustentava os nossos na sua temerária empresa. Era temerária, não pelo destacamento francês na Nazaré, sim pela vizinhança das forças de Thomières nos pontos que ocupava. Este general se pôs com efeito em movimento com alguns centenares dos seus soldados, e mandou um emissário ao Geral dos Padres Bernardos, intimando-lhe que tratasse de acomodar aqueles povos, e que aliás marcharia com 600 homens [para] reduzir tudo a cinzas; mas não passou de Óbidos, fazendo adiantar somente uma descoberta de doze ou catorze homens até o sítio da Barquinha, onde foram repelidos por um destacamento dos nossos, composto de vários clérigos e paisanos. Estavam dadas algumas providências, como o corte de pontes e estradas para obstar à marcha do corpo inimigo; mas Thomières desistiu do seu projeto, por ser informado de que desciam de Leiria o que ele supunha serem tropas regulares, e não eram senão paisanos mal armados, estudantes, frades e clérigos: o povo apenas soube do seu retrocesso, cuidou somente em estreitar o cerco ao forte.
      Os repiques de sinos, com que na noite imediata foram recebidos os socorros vindos de cima, o toque de um tambor, e o fogo das duas peças que, logo na manhã seguinte, rompeu contra o forte, davam também ideia aos sitiados de que havia chegado algum corpo de tropa regular; e foi talvez esta a razão porque o seu fogo quase cessou de todo, tendo sido contínuo no dia precedente, posto que, sem mais desgraça do que de ter ferido um moço que se afoitara a disparar sobre eles um tiro de espingarda de cima de um monte de areia que lhe ficava sobranceiro, e ali tinham ajuntado os ventos e consolidado alguns arbustos, que nele nasceram e lançaram raízes. Foi sobre este monte de areia que os nossos formaram uma espécie de parapeito, e colocaram as peças, com as quais se atirou todo o dia para o forte, mas sem efeito algum porque, como as peças se enterravam na areia, desconcertava-se a pontaria, e as balas não acertavam nem no forte.
      Na noite que se seguiu, desertou um artilheiro português, dos que se achavam no forte servindo ao inimigo, e veio incorporar-se aos nossos. Este homem fez mudar tudo de face, dando uma melhor direção ao fogo. Uma bala acertou logo sobre a porta do forte, e lhe causou alguma ruína; com as muralhas estremeceram também os ânimos dos seus defensores, levantaram bandeira parlamentária e capitularam, ficando prisioneiros de guerra; mas custou muito a salvá-los das mãos do povo, e principalmente ao comandante Miron, que se lhe tinha feito extremamente odioso.
      Tomado o forte, voltaram os Académicos, e a paisanagem que os tinha acompanhado, com os seus prisioneiros, deixando somente coisa de 100 armas, e uma pequena parte das munições que se haviam achado, aos povos da Nazaré, que por este modo ficaram novamente expostos aos insultos do inimigo, quase sem meios alguns de lhe resistirem.
      (…) Os povos da Nazaré e Pederneira, na triste situação em que tinham ficado, prosseguiam sempre a defensiva entre sustos contínuos, mas com grande valor. No dia 6, de manhã, quatro atiradores, vantajosamente postados, fizeram retroceder no sítio da Barquinha cinquenta franceses que vinham atacá-los. Recorreram aos ingleses, que ocupavam as Berlengas, os quais lhes mandaram alguns artilheiros, e peças de pequeno calibre, que com as que se puderam aproveitar do forte faziam o número de dez, e foram colocadas no alto da Nazaré, para protegerem as povoações adjacentes. Os artilheiros tornaram logo a embarcar, ficaram as peças servidas pelos pescadores daquela costa, e assim permaneceram muitos dias. Deve-se à sua exação nas guardas, não só o terem aprisionado quatro espias, que remeteram para bordo de um brigue inglês, mas também fizeram acreditar que tinham ali desembarcado alguns centenares ou milhares de ingleses, ideia que ainda traziam os franceses quando depois vieram com maiores forças destruir estas mesmas povoações, e que até então os tinha tido em respeito. É a este imaginário desembarque que aludia a expressão da Gazeta de Lisboa de 14 de Julho, dos cem meninos perdidos, que dizia terem desembarcado na praia da banda da Nazaré, e costas vizinhas de Alcobaça.


Gravura de revista Occidente, nº 423, ano de 1890




CAPITULO XXXIII

      (…) Na noite de 14 para 15 [de Julho de 1808] fez Thomières uma digressão para as partes da Nazaré com o fim de destruir e saquear as povoações daquela costa com um corpo de 300 homens e algumas peças de artilharia, as quais não chegaram a servir.       Dividiu esta tropa em três colunas, de que uma pôde, ao abrigo das trevas, meter-se debaixo da nossa mal servida artilharia, enquanto as outras se encaminharam à povoação, pelo centro e pelo pinhal que lhe fica à direita. Logo que os nossos pressentiram a sua marcha, fizeram-lhes algum fogo, mas sem direção determinada; as mesmas trevas, porém, que os inabilitavam para fazerem pontaria, os favoreceu também, e ao povo, para se refugiarem pela beira-mar para a parte do pinhal. Ficaram somente, por embriagados, ou por incautos, uns poucos dos que serviam de artilheiros, e também uma mulher e alguns velhos, que todos foram espingardeados junto às peças, exceto um, que os franceses reservaram para lhes servir de guia, e que ainda depois quiseram espingardear no terreiro de Alcobaça, e escapou à força de rogativas e de protestos.
      Entraram pois os franceses na Nazaré, que entregaram ao saque e ao fogo; mas este somente se ateou em 13 ou 14 casas. O famoso templo de Nossa Senhora da Nazaré, um dos mais frequentados, ricos, e respeitados de Portugal, e que os nossos monarcas têm tomado debaixo da sua imediata proteção, foi roubado e profanado. Levaram-lhe os seus ornamentos ricos, joias, dinheiro, e preciosidades: despedaçaram o mais, quebraram uma imagem do Menino Jesus, acutilaram um crucifixo, fizeram o órgão em pedaços, compreenderam no roubo os vasos sagrados, e lançaram por terra o Santíssimo Sacramento.
      Desceram à praia, e aqui foi a maior destruição. De trezentas ou mais casas que compreendia a povoação deste lugar, somente escaparam quatro, as mais ficaram reduzidas a cinzas; e não deixaram rede ou barco que não queimassem. Foi do número das casas incendiadas, uma barraca que ali tinham os padres Bernardos, a qual lhes servia de casa de arrecadação dos direitos do pescado, escapando a capela, da qual tiraram várias imagens de santos, que espingardearam no areal, onde depois foram achados os fragmentos.
      Voltaram à Pederneira, saquearam a povoação, e duas igrejas, lançando-lhe também o fogo, que com tudo fez aqui menor estrago. Entraram finalmente em Alcobaça cheios de presunção e de alegria, como se viessem de ganhar uma grande vitória, e podendo só vangloriar-se de terem feito daquelas povoações, montes de cinzas, e reduzido os seus numerosos habitantes aos extremos da miséria, não só pela destruição e roubo das suas casas, e quanto tinham nelas, mas também pela sensível perda dos seus barcos e redes, sendo quase todos pescadores. Avalia-se a perda em mais de 5000 ou 6000 cruzados, o que não admira, porque em mais de 2000 se calculam os diamantes e preciosidades do templo de Nossa Senhora da Nazaré. Não posso deixar de lastimar que os encarregados da sua administração, e das chaves do cofre, não tivessem dado as providências para salvarem, como podiam, estas riquezas.
Deram os inimigos ideia de quererem continuar a mesma devastação por todos os coutos de Alcobaça, pois que o seu delito era o mesmo; serviu-lhes porém de resgate o dinheiro usurpado ao convento.
      (…) Loison seguiu a estrada nova para Lisboa, Thomières veio procurar as suas antigas posições de Caldas, Óbidos e Peniche, seguindo também o general Kellerman este caminho por Alcobaça; e agora o veremos com o Prior dos padres Bernardos. Incêndios, raios, mortes, é o que se podia esperar; mas teve Kellerman a bondade de se acomodar com cento e doze moedas, em lugar das cem que Loison lhe tinha feito restituir.
      No dia 20 desembarcou Loison em Lisboa, junto ao terreiro do paço, por entre um numeroso povo que ali concorreu, pela expectação que causava a chegada deste homem célebre, que por muitas vezes se tinha julgado morto. Todos queriam desenganar-se, se era verdade que ali vinha o Maneta: desenganaram-se, e tiveram o desgosto de o verem passar, e aos seus soldados com as mochilas recheadas dos frutos de tantos saques.


  Neves, José Acúrcio dasHistória Geral da Invasão dos Francezes em Portugal e da Restauração deste Reino, Tomo IV, Capítulos 29 e 33, impresso na Oficina de Simão Tadeu Ferreira, Lisboa, 1811


As tropas no caminho para Mafra. Desenho de Adam Neale

O castelo de Torres Vedras. Desenho de Adam Neale.


Guerra Peninsular - 3


      «O relatório feito pelo juiz de fora de Alcobaça em 30 de Março de 1811 ao intendente geral da polícia, apresentou a mais triste e lamentável pintura dos estragos que os franceses tinham feito naquela vila, uma das mais notáveis da Estremadura. Vinte e cinco moradas de casas haviam sido incendiadas, a fábrica que ali havia, destruída, o mosteiro dos frades entregue pela maior parte às chamas, os sepulcros arrombados, finalmente apresentando tudo o quadro da maior desolação e miséria possível. Uma devastadora epidemia apareceu ali para cúmulo e todas as desgraças, vendo-se os doentes sem socorro algum de médico, nem de botica, não havendo ao menos um pároco para lhes ministrar na sua hora extrema os consoladores socorros da religião. As fazendas, e principalmente os pomares e vinhas, tinham ficado estragados. A falta de cereais era tal que um pão de arrátel se comprava ali por 200 réis.
      «Aos precedentes males se reuniu também o da extrema falta de autoridades para providenciarem de um modo análogo às circunstâncias. O próprio juiz de fora, José Lúcio da Veiga, que ali se tinha apresentado para tomar conta do seu lugar, morrera em 12 de Abril, deixando abertos os ofícios que se lhe tinham dirigido, e fechados os que eram para o corregedor da comarca, o qual nem estava naquela vila, nem se sabia onde parava. Um juiz vereador era por então a maior autoridade da terra, que por este modo se achava sem ter quem executasse as ordens que de Lisboa tinham sido expedidas para o seu bom regimen, nem haver quem dirigisse os meios necessários para atalhar a epidemia que tanta gente vitimava. À vista pois deste quadro, tão aflitivo e triste, o intendente geral da polícia mandou para lá o mesquinho socorro de vinte sacas de farinha de pau [sic] e dois caixotes de água de Inglaterra, panaceia então muito em voga para grande número de moléstias, mas com especialidade para a cura das febres intermitentes; todavia a extrema falta de transportes, que para toda a parte havia, demorou consideravelmente a chegada de tal socorro. O mesmo intendente ordenou mais que o citado juiz vereador, o bacharel José Gomes Leitão, de acordo com o abade geral do respetivo mosteiro, desse pela sua parte as providências económicas que um tão deplorável estado de coisas exigia, procurando executar por si as ordens dirigidas ao corregedor, visto serem tão urgentes e não admitirem dilação as circunstâncias em que a vila se achava. Estas mesmas escassas providências  ficaram também paralisadas pela doença de que fora vítima aquela única autoridade, de que resultou cair novamente aquela vila no mais deplorável abandono.
      «A epidemia que ali [Alcobaça] e em Leiria tantas vítimas fizera, estendera-se igualmente aos lugares de Alfeizerão, Famalicão, Pederneira, Praia e Nazaré. O provedor de Leiria dizia não serem bastantes para tratar os doentes os dois únicos cirurgiões que havia, um na Nazaré e outro em Famalicão. O aparecimento desta fatal moléstia atribuía-se à fome que padeciam aqueles povos, não tendo achado meios alguns de se alimentarem. Efetivamente, a fome que houve nas províncias invadidas, foi uma das mais eficientes causas da grande mortandade que sofreu a população do reino».


Simão José da Luz Soriano, transcrito por Francisco Baptista Zagalo na História da Misericórdia de Alcobaça - Esboço histórico desta Misericórdia desde a sua fundação até à actualidade, páginas 228 e 229, A. M. Oliveira, Alcobaça, 1918

A batalha do Vimeiro. Desenho de Adam Neale.