quarta-feira, 22 de outubro de 2014

HISTÓRIA SUCINTA DO PÃO-DE-LÓ DE ALFEIZERÃO - por Carlos Casimiro de Almeida

Vivemos um tempo sem pudor, concorda?
Ponha então de lado tudo o que nos últimos 10 ou 15 anos leu ou ouviu na imprensa sobre o pão-de-ló de Alfeizerão.
Diz o povo que a verdade é como o azeite, vem sempre à superfície. Pois é, mas está muitas vezes sujeita a interesses de conjuntura e a deturpações que confundem os que a desconhecem.
Existe uma verdade como o azeite e que se comprova documentalmente.

Como acontece geralmente com a doçaria tradicional portuguesa, o pão-de-ló terá origem conventual. Aparentemente não em Portugal, mas no país vizinho, visto que, levado pelos jesuítas para o Japão, ali lhe chamaram «bolo de Castela, kasutera ou kastera», sendo estes nomes corruptelas devidas à dificuldade do falante nipónico ao articular o topónimo. (in O Ocidente No Oriente Através dos Descobrimentos Portugueses, Estudos Orientais, vol. VIII, Univer.  Nova de Lisboa, 1992, pp.138,184 s.).

Na sequência da vitória do Liberalismo no séc. XIX, as ordens religiosas foram extintas em Portugal e os conventos encerrados (1834) . Foi o que aconteceu ao Mosteiro de Alcobaça. O mesmo não se passou com o vizinho Mosteiro de Cós, feminino e igualmente cisterciense, que pôde continuar até ao dia em que falecesse a última freira ou as últimas ocupantes o deixassem espontaneamente – como veio a acontecer sensivelmente a meio daquele século.

É tradição familiar que foram acolhidas em Alfeizerão por uma família de apelido Grilo. E é assim que na transição para o séc. XX, Amália Grilo(1858/1928) , parece que com uma amiga (cujo nome omito por não estar documentado nem ter tido relevância para a continuidade) , começa a fabricar por encomenda ocasional este tipo de pão-de-ló - cedo referenciado por M. Vieira Natividade (Alcobaça d´Outros Tempos, publicado em 1906) como uma das «indústrias tradicionais e caseiras» da região, ao mesmo tempo que assinala a sua presença na Exposição Industrial realizada nesse ano em Alcobaça.
Na Exposição Comercial e Industrial das Caldas da Rainha de 1922, de novo o Pão-de-Ló de Alfeizerão marca presença, tendo Maria Grilo (sobrinha de Amália Grilo) merecido uma menção honrosa pelo seu fabrico para a Pastelaria Primorosa, daquela cidade. Mas a verdadeira e definitiva industrialização do produto inicia-se em 1925, quando Américo da Silva Ferreira forma uma sociedade (com o padre João de Matos Vieira, com uma irmã deste ou com ambos parece irrelevante) denominada A. S. Ferreira & C.ia, com uma casa comercial a que o vulgo chamava Casa dos Pretos (por exibir à entrada duas estatuetas, recortadas em tábua, representando um casal africano: ele, com uma das mãos ao alto, como que mandando parar quem passava, enquanto a outra apontava a entrada; ela com uma bandeja nas mãos).

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Amália Grilo, que pela sua idade rejeitara participar dessa sociedade (informa sua neta, Maria Rosa de Almeida Ferreira) , sugeriu uma sua nora para o lugar. Esta, Maria Ferreira, entrou assim no conhecimento e posse da receita e das técnicas de fabrico, ficando responsável pela produção na Casa dos Pretos. Presume-se que sob orientação da sogra (pouco depois falecida) , atendendo a que, em 1932, escrevendo sobre Alfeizerão no jornal «Ecos do Alcoa», o professor Elias Cravo (figura muito concieituada na Alcobaça da época) refere «a indústria do afamado Pão-de-Ló da tia Amália» [sic] – e o recomenda aos leitores. Da tia Amália! Não do Senhor Avelino Ferreira, apesar de muito conceituado na terra e sócio principal da firma, nem do Senhor Prior. Para este, havia pouco chegado à Paróquia, nem mesmo se vislumbra motivo. E claro se torna que tanto a indicação do ano de 1906 como a designação «da Tia Amália» se constituem como verdadeira certidão de nascimento do Pão-de-Ló de Alfeizerão.
A firma A. S. Ferreira & Cia e a sua Casa dos Pretos manteve-se até 1947, quando a sua fabricante descobriu que afinal o apelido Ferreira, constante da firma, não se referia à sua pessoa. E que, pior ainda, não fazia parte da sociedade! Aquilo que julgava serem lucros, esporadicamente recebidos, era afinal um salário que nunca negociara. Considerando-se ludibriada e lesada, deixou aquela casa e adquiriu um velho estabelecimento a uns 50 metros de distância. E, remodelando-o, inaugurou o seu Café Ferreira ainda no ano de 1947.
Em breve a Casa dos Pretos encerrou e a firma A. S. Ferreira & C.ia se extinguiu. E só no ano seguinte (1948) , Adília de Matos Vieira (a irmã do padre) , constituiu uma firma em nome próprio e inaugurou a sua Casa do Pão-de-Ló, correntemente e impropriamente chamada Café do Padre. Em edifício de raiz sem nada a ver com o da Casa dos Pretos, que lhe ficava em frente.

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A rigor, nenhuma das duas casas pode reivindicar a condição de herdeira da primitiva. E, muito menos, ser a primitiva.  Aspirar a isto é ignorar quer a cronologia quer as circunstâncias.  



                                                                    Carlos Casimiro de Almeida
                                      (natural de Alfeizerão e contemporâneo da Casa dos Pretos)




Nota:
Artigo publicado inicialmente por Carlos Casimiro de Almeida na sua página ALFEIZERÃO HISTÓRICO, e reproduzido com a anuência do autor.

José Eduardo Lopes

20/10/2014

1 comentário:

  1. O mesmo pão de ló continua a ser fabricado no CAFÉ FERREIRA, por uma bisneta de Maria Ferreira e trineta de Amália Grilo. Por processos modernos, naturalmente.

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