Vivemos um tempo sem pudor, concorda?
Ponha então de lado tudo o que nos últimos 10 ou 15 anos
leu ou ouviu na imprensa sobre o pão-de-ló de Alfeizerão.
Diz o povo que a verdade é como o azeite, vem sempre à
superfície. Pois é, mas está muitas vezes sujeita a interesses de conjuntura e
a deturpações que confundem os que a desconhecem.
Existe uma verdade como o azeite e que se comprova
documentalmente.
Como acontece geralmente com a doçaria tradicional
portuguesa, o pão-de-ló terá origem conventual. Aparentemente não em Portugal,
mas no país vizinho, visto que, levado pelos jesuítas para o Japão, ali lhe
chamaram «bolo de Castela, kasutera ou kastera»,
sendo estes nomes corruptelas devidas à dificuldade do falante nipónico ao
articular o topónimo. (in O Ocidente No Oriente Através
dos Descobrimentos Portugueses, Estudos Orientais, vol. VIII, Univer.
Nova de Lisboa, 1992, pp.138,184 s.).
Na sequência da vitória do Liberalismo no séc. XIX, as
ordens religiosas foram extintas em Portugal e os conventos encerrados (1834)
. Foi o que aconteceu ao Mosteiro de Alcobaça. O mesmo não se
passou com o vizinho Mosteiro de Cós, feminino e igualmente cisterciense, que
pôde continuar até ao dia em que falecesse a última freira ou as últimas
ocupantes o deixassem espontaneamente – como veio a acontecer sensivelmente a
meio daquele século.
É tradição familiar que foram acolhidas em Alfeizerão por
uma família de apelido Grilo. E é assim que na transição para o séc. XX, Amália
Grilo(1858/1928) , parece que com uma amiga (cujo
nome omito por não estar documentado nem ter tido relevância para a
continuidade) , começa a fabricar por encomenda ocasional este
tipo de pão-de-ló - cedo referenciado por M. Vieira Natividade (Alcobaça
d´Outros Tempos, publicado em 1906) como uma
das «indústrias tradicionais e caseiras» da região, ao mesmo tempo que assinala
a sua presença na Exposição Industrial realizada nesse ano em Alcobaça.
Na Exposição Comercial e Industrial das Caldas da Rainha de
1922, de novo o Pão-de-Ló de Alfeizerão marca presença, tendo Maria Grilo (sobrinha
de Amália Grilo) merecido uma menção honrosa pelo seu fabrico
para a Pastelaria Primorosa, daquela cidade. Mas a verdadeira e definitiva
industrialização do produto inicia-se em 1925, quando Américo da Silva Ferreira
forma uma sociedade (com o padre João de Matos Vieira, com uma
irmã deste ou com ambos parece irrelevante) denominada A. S.
Ferreira & C.ia, com uma casa comercial a que o vulgo chamava Casa
dos Pretos (por exibir à entrada duas estatuetas,
recortadas em tábua, representando um casal africano: ele, com uma das mãos ao
alto, como que mandando parar quem passava, enquanto a outra apontava a
entrada; ela com uma bandeja nas mãos).
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Amália Grilo, que pela sua idade rejeitara participar dessa
sociedade (informa sua neta, Maria Rosa de Almeida Ferreira) ,
sugeriu uma sua nora para o lugar. Esta, Maria Ferreira, entrou assim no
conhecimento e posse da receita e das técnicas de fabrico, ficando responsável
pela produção na Casa dos Pretos. Presume-se que sob orientação da sogra (pouco
depois falecida) , atendendo a que, em 1932, escrevendo sobre
Alfeizerão no jornal «Ecos do Alcoa», o professor Elias Cravo (figura
muito concieituada na Alcobaça da época) refere «a indústria do
afamado Pão-de-Ló da tia Amália» [sic] – e o recomenda aos
leitores. Da tia Amália! Não do Senhor Avelino Ferreira,
apesar de muito conceituado na terra e sócio principal da firma, nem do Senhor
Prior. Para este, havia pouco chegado à Paróquia, nem mesmo se vislumbra
motivo. E claro se torna que tanto a indicação do ano de 1906 como a designação
«da Tia Amália» se constituem como verdadeira certidão de nascimento do
Pão-de-Ló de Alfeizerão.
A firma A. S. Ferreira & Cia e a sua
Casa dos Pretos manteve-se até 1947, quando a sua fabricante descobriu que
afinal o apelido Ferreira, constante da firma, não se referia à sua pessoa. E
que, pior ainda, não fazia parte da sociedade! Aquilo que julgava serem lucros,
esporadicamente recebidos, era afinal um salário que nunca negociara.
Considerando-se ludibriada e lesada, deixou aquela casa e adquiriu um velho
estabelecimento a uns 50 metros de distância. E, remodelando-o, inaugurou o seu
Café Ferreira ainda no ano de 1947.
Em breve a Casa dos Pretos encerrou e a
firma A. S. Ferreira & C.ia se extinguiu. E só no ano
seguinte (1948) , Adília de Matos Vieira (a
irmã do padre) , constituiu uma firma em nome próprio e inaugurou a
sua Casa do Pão-de-Ló, correntemente e impropriamente chamada Café do Padre. Em
edifício de raiz sem nada a ver com o da Casa dos Pretos, que
lhe ficava em frente.
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A rigor, nenhuma das duas casas pode reivindicar a
condição de herdeira da primitiva. E, muito menos, ser a
primitiva. Aspirar a isto é ignorar quer a cronologia quer as
circunstâncias.
Carlos
Casimiro de Almeida
(natural
de Alfeizerão e contemporâneo da Casa dos Pretos)
Nota:
Artigo publicado inicialmente por Carlos Casimiro de Almeida
na sua página ALFEIZERÃO
HISTÓRICO, e reproduzido com a anuência do autor.
José Eduardo Lopes
20/10/2014
O mesmo pão de ló continua a ser fabricado no CAFÉ FERREIRA, por uma bisneta de Maria Ferreira e trineta de Amália Grilo. Por processos modernos, naturalmente.
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