domingo, 26 de fevereiro de 2023

Um caminho andado por inteiro: o correio em Alfeizerão em 1927

 


A cópia de uma carta endereçada pelo presidente da Junta ao Diretor dos Correios e Telégrafos de Leiria no ano de 1927 e por nós consultada no arquivo da Junta, recorda-nos como o correio chegava a Alfeizerão nessa época. A correspondência chegava de comboio a S. Martinho e na estação postal dessa localidade era levantada a mala postal para Alfeizerão que era trazida a pé por um estafeta para este lugar para aqui ser distribuído, fazendo-se o percurso inverso duas horas depois, 40 minutos era o tempo regular indicado na carta para esse percurso entre as duas localidades. 

Reproduzimos o teor curioso dessa carta, na transcrição, atualizamos a grafia e desenvolvemos as abreviaturas, perfeitamente naturais por se tratar da cópia manuscrita de uma carta expedida pela autarquia:

 

Ao Exmo. Sr. Diretor dos C. T. do Distrito de Leiria

A Comissão Administrativa da Junta de Freguesia de Alfeizerão, na qualidade de representante e defensora dos interesses dos seus habitantes, confiada no alto critério e espírito justiceiro de V. Exa., sabendo ainda mais quanto se interessa pela comodidade dos povos do nosso Distrito, proporcionando-lhes sempre todas as facilidades dentro das boas normas de justiça, vem esta Junta solicitar a V. Exa. o alto serviço para que sejam trocadas as malas postais desta freguesia, com a ambulância em vez de ser com a estação postal de S. Martinho do Porto, o que lhes traz bastante prejuízo. Não ignora V. Exa. da importância comercial, agrícola e vinícola de Alfeizerão, tendo já hoje uma troca razoável de correspondência, como o prova a estatística de venda de franquias.

De ordinário, a mala postal chega a Alfeizerão das 14.45 às 15 horas; a saída para S. Martinho é às 17 horas, como V. Exa. tem ocasião de apreciar, há apenas 2 horas de intervalo, ficando por esse motivo prejudicada alguma correspondência de resposta imediata, sucedendo por vezes mandar-se um portador á estação levar correspondência que pela sua urgência tem necessidade de seguir nesse dia. O comboio 201 (correio de Lisboa) chega a S. Martinho ás 12.20: o 206 (correio do Norte) chega ás 20.34; o condutor da mala, andando normalmente, gasta 40 minutos a percorrer a distância entre Alfeizerão e S. Martinho. Portanto, dignando-se V. Exa. atendera esta justa pretensão, podiam os habitantes de Alfeizerão receber a correspondência às 13 horas e enviá-la para o correio ás 19, sendo o intervalo de 6 horas, o que é importante para a facilidade de responder a correspondência urgente. Independentemente das inconveniências apontadas, temos outra não menos importante, que é: a detenção da correspondência em S. Martinho, tanto a vinda como a ida para o Norte. A correspondência para o Norte, que sai na mala às 17 horas, só no dia seguinte segue no 201. A vinda do Norte, que vem no 206, só no dia seguinte vem para Alfeizerão. Disso tem resultado alguns prejuízos e mui especialmente com a correspondência com a sede do concelho. Casos há em que são chamados interessados a Alcobaça, crentes os signatários de que a correspondência é recebida no mesmo dia. Com esta falta tem resultado alguns prejuízos. Uma vez a mala trocada com a ambulância, a correspondência vinda do Norte é distribuída aqui às 21 horas, a exemplo do que já houve, e o destinatário poderá responder no dia seguinte ou ir, em caso de chamamento. A correspondência trocada entre estas duas povoações (Alfeizerão e S. Martinho) poderá ser feita [com] a permuta das malas entre os estafetas respectivos.

Julgamos não haver nisto aumento de despesa na condução das malas, visto que o número de viagens são as mesmas, mas sim, apenas, mudança de horário e, para o empregado postal, apenas um pouco de trabalho em fazer duas malas em vez de uma.

Por esta pequenina exposição poderá V. Exa. apreciar as vantagens para esta freguesia, se esta Comissão Administrativa merecer o apoio de V. Exa. nesta tão justa aspiração.

Esperando que esta nossa pretensão tenha a honra de ser atendida, somos a desejar-lhe.

[Saúde e Fraternidade]

 

A. F. [João Augusto Ferreira]

Alfeizerão, 1-8-1927

 

sábado, 20 de agosto de 2022

A nova vida de duas mós de pedra

As duas mós de pedra que se encontravam no relvado do jardim da Junta de Freguesia de Alfeizerão, pelo seu valor arqueológico, foram retiradas da terra pela autarquia e, depois de limpas, movidas para um lugar mais condigno desse mesmo jardim, onde se encontram expostas, apoiadas em lancis de pedra. A breve trecho, uma placa informativa fixada no muro junto a elas transmitirá de forma sucinta o essencial sobre essas duas peças.

Figura1: as duas mós

Estas duas mós, ou as suas quatro metades, foram encontradas já partidas, tendo sido desenterradas em Setembro de 1990 na vala do castelo ao escavar-se o terreno para se construir uma estação de tratamento de esgotos, a mesma obra pôs a descoberto um muro ou paredão com dois arcos ogivais e na terra daí retirada recuperou-se fragmentos de cerâmica medieval (Barbosa, 2021, p.105). O executivo autárquico contatou a Universidade Nova de Lisboa e acorreu ao local o Doutor Pedro Gomes Barbosa, que recolheu amostras de cerâmica e fotografou e desenhou o muro posto a descoberto. O nível do lençol freático demoveu no entanto os responsáveis de iniciarem ali escavações, por conseguinte, o paredão com os arcos foi novamente coberto de terra e as mós de pedra confiadas à guarda da autarquia.


 A parede ou ruína de edifício

Estamos, como parece evidente pela descoberta das mós, perante vestígios vizinhos ao castelo de Alfeizerão de um antigo moinho de água com duas linhas de moagem. A sua tipologia, com base na parede com os dois arcos ogivais, parece ser a de um moinho de rodízio ou de roda horizontal. Os moinhos de roda horizontal são em geral edifícios com dois pisos, a água canalizada para ele a partir de um curso de água ou açude é comprimida na seteira que a lança com força sobre o rodízio formado por palas de madeira na extremidade inferior do eixo vertical da roda fazendo-a girar (vd. Figura 2). O rodízio funcionava no piso inferior ou cabouco enquanto no piso superior operava o casal de mós (movente de mó ou pedra andadeira e a pedra fixa ou pouso sobre a qual trabalhava), graças à rotação do veio. 

Figura 2: esquema simplificado 
do mecanismo do moinho de rodízio

Depois de cumprir o seu papel no moinho, a água era devolvida à natureza por uma abertura virada ao rio ou ao canal que a direcionava a partir daí. Essa abertura, muitas vezes em arco, traz-nos de volta ao paredão com os dois arcos descoberto em 1990. 

Ao passarmos em revista as representações de moinhos de roda horizontal (visitamos pessoalmente dois), é difícil não constatar as semelhanças entre os caboucos ou piso inferior dos moinhos de roda horizontal com os seus arcos de saída, e a nossa parede em ruínas.

Figura 3: A ruína de 1990 com a parte superior de um dos dois arcos


Figura 4: Na linha de cima, os caboucos de dois moinhos de rodízio em ruínas: moinho de Corte Real e moinho de Água da Courela, ambos no Alentejo.
Em baixo, representação gráfica de um moinho de rodízio ou roda horizontal.

As mós

As duas mós, circulares e de recorte irregular com cerca de um metro de diâmetro, possuem a face inferior aplainada, mas a superior foi esculpida e afeiçoada num feitio abaulado, ligeiramente cónico. A altura do chão a que estão expostas as mós no novo espaço, 15 cm, torna possível ter uma noção da condição e desgaste da face inferior, aquela que trabalhava sobre o grão.

As mós são muito distintas uma da outra, a primeira, constituída por calcário fossilífero áspero e com muitas arestas, teria a seu cargo o triturar do grão dúctil (provavelmente do milho grosso), o seu despedaçar eficaz. Esta primeira mó, na face inferior do olho da mó, conserva ainda o encaixe sensivelmente retangular da peça que a unia ao veio do moinho (vd. na Figura 5 o primeiro desenho); a segunda mó, aquela que está melhor preservada, de grão mais suave, teria como finalidade obter a moagem mais fina e mais alva, é o tipo de mó denominada alveira ou trigueira.

A presença da primeira movente de mó, mais granulada para triturar e moer, faz supor que a cronologia deste moinho de água seria posterior à introdução do milho americano (maís ou milho grosso) na agricultura e na alimentação (o que ocorre a partir do final do século XVI), com o seu grão mais dúctil e resistente do que os cereais que antes existiam (Maduro, 2019:204-211). Isto é apenas uma suposição, contrariada de certa forma pela cerâmica medieval aí achada, a menos que se interprete a presença destes fragmentos como vestígios de uma zona de depósito junto ao castelo medieval – peças trazidas pelas águas e ali acumuladas - ou em alternativa, que se esteja perante a adaptação de um moinho mais antigo à moagem do milho grosso, o que não seria inédito na região e no país. Às mós mais aptas para a moagem do milho foi atribuída a designação de mós segundeiras por merecer esse cereal nos seus primeiros tempos na Europa a designação de cereal de segunda, apesar da sua rápida expansão na agricultura e nos hábitos alimentares e ser agente de uma "verdadeira revolução agrícola" (Maduro, id.).


Figura 5: O nosso tosco croquis do contorno e perfil das mós

Fontes:

BARBOSA, Pedro Gomes, "O território de Alcobaça antes dos Cistercienses", in Um Mosteiro entre os rios. O território Alcobacense, coord. António Valério Maduro e Rui Rasquilho, Hora de Ler, Leiria, 2021. 

MADURO, António Valério – “A inovação do agro sistema cisterciense de Alcobaça nos séculos XVII – XIX”, in Cister- Tomo III: Espiritualidade, Agricultura e Indústria, Hora de Ler, Leiria, 2019.


Créditos das imagens:

Figura 2: Desenho repetidamente encontrado na Web sem indicação de autor.

Figura 3: Detalhe de uma fotografia guardada no arquivo da Junta de Freguesia de Alfeizerão.

Figura 4:

  a) Moinho de Corte Real: Projecto “Os Moinhos do Rio Degebe: Contributos para salvaguarda da sua memória”, coordenação de Mestre Francisca Mendes. Endereço: http://www.moinhosdegebe.uevora.pt/index.php#top

  b) Moinho de Água da Courela (Brotas, Mora): Ficha no SIPA - Sistema de Informação do Património Arquitetónico, N.º IPA.00024854. Endereço: http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=24854

  c) Desenho sem indicação de autor, recolhido de:

Marques, Rui (coord.), Sesimbra - Memória e Identidade | Engenhos de Moagem de Cereais, Câmara Municipal de Sesimbra, 2012


terça-feira, 14 de junho de 2022

Com a esperança no horizonte - recordando dois episódios antigos de emigração

 Os Livros de Registos de Passaportes (1861-1999), conservados no Arquivo Distrital de Leiria, são uma fonte inestimável de informação para estudos sociológicos e genealógicos, um outro aspeto curioso dos passaportes é a descrição física do requerente com os seus sinais identificadores, recurso que precede o advento das fotografias de perfil. Do primeiro livro que aí encontramos, respeitantes aos anos de 1863 a 1870, transcrevemos dois registos relativos à freguesia de Alfeizerão, mais propriamente, a Vale de Maceira, e a dois irmãos - um deles com 15 anos - que emigram para destinos diferentes, Pará e Buenos Aires. 

A obra em causa é o Livro de Registo de Passaportes N.º 1, ADLRA, -1/III/65/C/9, f. 12v e 34r (Código de Referência PT/ADLRA/AC/GCLRA/H-D/001/0001).


<n.º 10, novembro, 9 [1868]>

«Passaporte a Francisco José Velho, solteiro, filho de Marcelino José Velho, de Maceira (sic), freguesia d’Alfeizerão, Concelho d’Alcobaça d’este Districto, para o Pará, no Império do Brazil. Abonado por Bento Mendez, solteiro, proprietário, do referido logar, como fica constando do respectivo termo lavrado na Administração d’aquele Concelho. Signaes do portador. Idade, 15 anos – altura, 1,54 – rosto comprido – cabelo castanho escuro – sobr’olhos pretos – olhos castanhos – nariz e boca regulares – côr trigueira. Assignado, José Fonseca da Cunha e Souza, Governador Civil».


<n.º 55>

«Termo de fiança que presta João António d’Oliveira d’esta cidade por Maria Marcelina, solteira, d’Alfeizerão, Concelho d’Alcobaça.

«Aos desaseis dias do mez de Julho de mil oito cento e setenta, n’esta Cidade de Leiria e Governo Civil do Districto, compareceu perante o Excellentissimo Governador Civil, Luiz Teixeira de Sampaio, Maria Marcelina, solteira, filha de Marcelino José Velho e de Maria Pereira, já fallecida, do logar de Valle de Maceira, freguezia de Alfeizerão, Concelho d’Alcobaça, a qual declarou que na data de hoje havia requerido ao dito Excellentissimo Governador Civil passaporte para Buenos Ayres, na República Argentina, mostrando por documentos authenticos que ficam junto ao seu requerimento, que nenhum impedimento se offerecia à concessão do passaporte, e que oferecia por seu abonador a João António d’Oliveira, estabelecido com hospedaria n’esta Cidade, o qual estando presente, disse que reconhecia a identidade de pessoa e a afiançava e por ella se responsabilizava nos termos dos regulamentos de policia em vigor. O que sendo ouvido pelo Excellentissimo Governador Civil e testemunhas abaixo mencionadas – José Miguel Pereira Maceirão e Claudino Joaquim Meirel, empregados d’este Governo Civil, e julgando o Excellentissimo Governador Civil idonea a fiança, que por isso aceitou, mandou, para constar e mais effeitos, lavrar este termo, que assigna com o fiador e ditas testemunhas, depois de todo o haver lido eu, Manuel Nicolau d’Abreu Castello Branco, Secretário Geral, o rubrico».

quarta-feira, 23 de março de 2022

Notícias de uma guerra quase esquecida

 [Nota: Este texto é um trecho de um apontamento mais vasto, divulgado com o título: Uma paróquia no século XVII: O testemunho do padre António de Moura Ferrão, vigário da freguesia de N. Sra. da Vitória de Famalicão, aldeia do (actual) concelho da Nazaré]


Detalhe da "Carta da fronteira entre o Alentejo e a Estremadura espanhola
de João Teixeira Albernaz, 1646 (BNP, C.C. 254 A.)

Notícias de uma guerra quase esquecida

            A Restauração da independência de Portugal em 1640 foi uma conquista histórica que se teve que defender e sustentar numa longa guerra com Espanha que se prolongará até 1668, ano em que se firma a paz entre os dois países e o reconhecimento da independência de Portugal pela dinastia dos Habsburgos espanhóis. Logo no ano de 1641 se organiza a defesa do país com as Companhias de ordenanças e Terços auxiliares e, verificando-se que o Alentejo era a área geográfica mais vulnerável à invasão espanhola e ao avanço sobre Lisboa, D. João IV ordena que para acudirem à defesa dessa fronteira e das suas praças fortificadas ("presídios") fossem dedicadas os Terços de Auxiliares de «toda a Provincia da Estremadura e parte da da Beyra» (Menezes, 1679:201-202). Nesses 28 anos de guerra podemos destacar no contexto deste estudo dois eventos militares proeminentes. Entre Julho e Outubro de 1658 o governador do Alentejo, Mendes de Vasconcelos reuniu em Elvas um exército de 17.000 soldados portugueses e tenta a conquista da cidade de Badajoz, o ambicioso projecto sai gorado e em quatro meses de cerco da cidade o exército perde 6.200 homens, mortos em combate ou pela peste ou simplesmente fugidos ¹. Depois dos portugueses levantaram o cerco, os espanhóis sob o comando de D. Luís de Haro tentam a conquista de Elvas e cercam a cidade durante três meses, mas acabam derrotados na Batalha das Linhas de Elvas a 14 de Janeiro do ano seguinte (Menezes, 1698:200-201), na cidade de Elvas o cerco causou a morte de centenas de pessoas pela fome e pela peste (eram, diz o cronista, mais soldados que mantimentos e já não havia onde enterrar tantos mortos - id. p. 141). Terminada a Guerra da Restauração, a guerra voltaria à faixa raiana no contexto da Guerra de Sucessão de Espanha (1665-1715), período durante o qual os exércitos de Filipe V de Espanha entraram no Alentejo e ocuparam diversas praças portuguesas, como Portalegre e Castelo de Vide no ano de 1704, assistindo-se durante mais dois anos aos episódios de batalhas e escaramuças em território alentejano entre as forças militares dos dois reinos (Serrão, 1982:226).

            Com os efectivos de Auxiliares da Estremadura a serem encaminhados para a defesa da fronteira do Alentejo, esta guerra com as suas centenas de mortos é perceptível nas fontes primárias da História local. Indicaremos os registos associados a ela na freguesia de Famalicão, antes de acrescentarmos a esses registos os que lhes são idênticos nas freguesias confinantes da Pederneira e Alfeizerão; não incluímos os registos paroquiais de S. Martinho do Porto porque não encontramos nenhum assento que estivesse relacionado com este tema, nem os da freguesia da Cela porque a data extrema inicial dos livros de assentos de óbito que nos chegaram da freguesia é o ano de 1739. A ausência na freguesia de S. Martinho do Porto de óbitos nas guerras da fronteira parece dever-se apenas à boa fortuna de não terem ocorrido; ao falar de Alfeizerão no seu Dicionário Geográfico, obra publicada em 1747 (Cardoso, 1747:278), o padre Luís Cardoso diz que não se fazem soldados nessa terra para as praças do Alentejo por acudirem os seus Auxiliares ao forte de S. Martinho do Porto quando havia sinal de rebate e o mesmo deveria suceder nesta vila e freguesia; mas essa isenção foi tardia para o  quadro cronológico das guerras de fronteira porque nas suas respostas aos quesitos do Inquérito de 1758, o padre-cura Manuel José Marcelino da paróquia de S. Martinho do Porto (Cf. Doc. 6, f. 461, resposta n.º 22) diz que o privilégio de não se fazerem soldados na vila de S. Martinho se devia a um despacho do Marquês de Marialva, publicado uns seis anos antes (um pouco mais, atendendo à informação do padre Luís Cardoso, de finais da década anterior).

Figura 6: A fronteira do Alentejo, parte do mapa "Limites de Portugal" de Brás Pereira (1642) ²

 

            Em Famalicão, freguesia de Nossa Senhora da Vitória, são seis os registos paroquiais que importa referir:

 

<Fronteiras. João do Cazal da Nuna>

Aos outo dias do mes de Setembro de 1658 fis hum ofiçio pella alma de João, filho de Domingos Fernandes do Cazal da Nuna e de Antonia Fernandes, soldado que deos levou na fronteira de Elvas e augmentei os quatro domingos do mes, seu pai e mai satisfizerão com a esmola de fevereiro de 659. O Vigr.o Antonio de Moura Ferrão.

[Cf. Doc. 1, f. 12r]

 

Faleçeo Domingos Dias da Cerra da Pescaria, marido de Maria Luis Peneda, nas partes do Alentejo de doença que deus lhe deu, fizerãoce por sua alma tres ofiçios nesta igreja e se augmentarão os quatro domingos do mes, ao que tudo satisfes sua mulher, fizerãocelhe os ofiçios ao dezouto e dezanove dias de agosto de mil e seis centos e sincoenta e nove, e por verdade fis este asento para lembrança, dia, mes, era asima dicto. O Vigr.o Antonio de Moura Ferrão.       

[Cf. Doc. 1, f. 17r]

 

<Panois, Manuel, filho de Francisco Alveres>

No mesmo tempo asima declarado [19 de Agosto de 1659] fis hum ofiçio e augmentei os quatro dominguos do mes pella [alma] de Manuel, filho de Francisco Alveres deste lugar, soldado que deus levou em Elvas, por não ter bens de sua ligitima para mais e por verdade fis este que asinei, dia, mes e era asima declarado. O Vigr.o Antonio de Moura Ferrão.    

[Cf. Doc. 1, f. 17r]

 

<Fronteira de Elvas, Antonio, filho de Antonio Lampreão do Casal do Bom Nome>

No anno de seis centos e sesenta e dous fis hum ofiçio e augmentei o mes pella alma de Antonio Mendiz, filho de Antonio Martinz Lampreão do casal de bom nome, herdado de sua mai por não aver legitima para mais, que faleçeo na cidade de Elvas sendo nella soldado e por verdade fis este asento para a todo o tempo constar, oje, 11 de maio de 662. O Vigr.o Antonio de Moura Ferrão.

[Cf. Doc. 1, f. 22v]

 

Em os vinte e hum dias do mes de Outubro de mil e sete sentos e sinco annos fis hum ofísio pela Alma de Manoel Luis dos Raposos, filho de Manoel Luis, o qual disem que faleseo nas guerras e para que conste fis este assento. O Cura Antonio de Oliveira. 

[Cf. Doc. 2, f.34r]

 

Em os vinte e tres dias do mes de fevereiro de mil e sete sentos e sete annos fis tres ofísios nesta igreja de Nosa Senhora da Victoria do lugar de Famalicam pela alma de Domingos Francisco, marido que foi de Maria Rodrigues Pequicha, moradora em Famalicam de Baixo, por ser absente [estar ausente] á dezouto annos e aver novas que era morto no Alentejo, lhe fis os tres ofísios e por verdade me assinei, oje, dia, mes, era ut supra. Antonio de Oliveira.          

[Cf. Doc. 2, 36v]

 

            Os Panoins (Panões) do assento de óbito de Manuel, filho de Francisco Álvares, é um elemento toponímico que ainda persiste na aldeia de Famalicão três séculos e meio depois e indica a Rua dos Panões que, na povoação actual liga à Rua das Flores que margina o alçado poente da igreja. No registo de óbito de António Dinis, o Zagalho, menciona-se expressamente a "Rua dos Panoins deste lugar de Famalicão" (Cf. Doc. 1, f. 78r). O topónimo pode ter-se originado eventualmente numa manufactura local de panos de lã - o Zagalho, alcunha deste António Dinis, tem como raiz "zagal", pastor, e nos registos paroquiais encontramos outra alcunha significativa de um residente nos Panões: Francisco Jorge Panoeiro (Cf. Doc. 1, f. 77v). Para os séculos XV/XVI possuímos esta indicação que de uma forma limitada fundamenta esta suposição: «Um pequeno núcleo de produção de tecidos de lã, sobretudo, de burel, ganhou alguma expressão na região de Alcobaça, justificada pela existência de numerosos coutos ligados à Abadia» (Garcia, 1986:328, apud: Costa, 2009:158) 


            Na freguesia de Nossa Senhora das Areias da Pederneira, recolhemos três assentos paroquiais:

 

Aos 30 dias do mes de Outubro faleceo Rodrigo Lopez, digo, veio recado a sua molher, moradora nesta villa em como o dito seu marido era morto na fronteira do Alentejo em o dito dia e mes ut supra desta era de 1658. [rubricado:] Lopez.   

[Cf. Doc. 3, f. 125r]

 

Aos dois dias de Agosto da ditta Era [1685] chegou nova em como o Mudo de Fanhais [sicera falecido na parte do Alentejo e para que conste fis este asento oje, dia, era ut supra. O Vigario João de Souto Velho.

 [Cf. Doc. 4, f. 2v]

 

Vindo da fronteira Domingos Bernardes do lugar do Vallado, faleceo em o Bispado de Portalegre, fis este assento para constar em todo o tempo em 28 de dezembro de 1663. Lopez.     

[Cf. Doc. 3, f. 143r]

 

            Por fim, na freguesia de S. João Baptista de Alfeizerão, recolhemos os seguintes:

 

Em os outo dias do mes de Fevereiro de mil e seis sentos e noventa e hum annos, fiz dois, digo, hum ofísio pela Alma de Manoel, filho de Siman Lopes desta villa, por aver novas sertas que falesera no Alimtejo  e para que conste fis este asento. Feci dicto die ut supra. Antonio de Oliveira.           

[Cf. Doc. 5, n.º fl. ilegível]

 

A sete de Julho de mil e sete sentos e dois annos, fiz dois ofisios pela Alma de Manoel de Oliveira, filho de Sebastiam de Oliveira e de Iria Jorge, moradores nesta villa, o qual faleseo no Alentejo e para que conste fiz este assento. O pe. Antonio de Oliveira.     

[Cf. Doc. 5, f. 49r]

 

Em os quatro dias do mês de Fevereiro de mil e sete sentos e seis anos, fiz hum ofiçio pela alma de Raymundo, filho de Manoel Simoins, do Vallado, e de Maria Madeira desta freguesia, o qual faleçeo no hospital de Campo Maior; por me constar por seus companheiros que o viram  morrer sendo soldado e para que conste o sobre ditto fiz este assento. O Cura Antonio do Couto.    

[Cf. Doc. 5, f. 54]

 

Em os vinte e sete dias do mes de Março de mil e sete sentos e seis annos, em esta Igreja de São João Batista da villa de Alfizirão, fis tres ofisios pella Alma de Joseph, filho de Francisco Mendes e de Ignes Luis, já defuntos, moradores que forão no lugar da Macalhona desta freguesia, o qual faleceo no Hospital de Estremoz, e para que conste o sobreditto fis este assento. O Cura Antonio do Couto.  

[Cf. Doc. 5, f. 54v]



¹ «Os soldados mortos e feridos nas occasioens erão muytos, os de doenças infinitos, e não menos os fugidos» (Menezes, 1698:117)

² DUARTE DE ARMAS (ca 1465) PEREIRA, Brás (1642) - Fronteira de Portugal Fortificada pellos Reys deste Reyno. tiradas estas fortalezas no tempo del Rey Dom Manoel / copiadas por Brás Pereira, manuscrito - BNP, PURL 24908  



FONTES:

Documentos:

Doc. 1 - ADLRA, IV/36/D/36, Registos de óbito da freguesia de Famalicão: 1649-1684 - PT/ADLRA/PRQ/PNZR01/003/0002

Doc. 2 - ADLRA, IV/36/D/37, Registos de óbito da freguesia de Famalicão: 1684-1731 - PT/ADLRA/PRQ/PNZR01/003/0003

Doc. 3 - ADLRA, IV/36/D/56, Registos de baptismo e óbito da freguesia de Pederneira da Nazaré: 1657-1664 - PT/ADLRA/PRQ/PNZR02/003/0002

Doc. 4 - ADLRA, IV/37/A/25, Registos de baptismo e óbito da freguesia de Pederneira da Nazaré: 1685-1712- PT/ADLRA/PRQ/PNZR02/003/0003

Doc. 5 - ADLRA, IV/24/C/11, Registos de óbito da freguesia de Alfeizerão: 1666-1747 - PT/ADLRA/PRQ/PACB02/003/0002

Doc. 6 - A.N.T.T., Memórias paroquiais, vol. 22, nº 71 - PT/TT/MPRQ/22/71


Bibliografia:

CARDOSO, Luís (1747) - Diccionario geografico, ou noticia historica de todas as cidades, villas, lugares, e aldeas, rios, ribeiras, e serras dos Reynos de Portugal, e Algarve, com todas as cousas raras, que nelles se encontraõ, assim antigas, como modernas, Lisboa : na Regia Officina Sylviana, e da Academia Real, Tomo I.

COSTA, Manuela Pinto da (2009) - “Tecidos e têxteis portugueses do século XVII ao século XVIII”, in Actas do IV Congresso Histórico de Guimarães, Guimarães.

MENEZES, Dom Luís de (1698) - Historia de Portugal Restaurado - Tomo I, Lisboa, na Oficina de João Galrão, 1679 / Tomo II, Lisboa : na Oficina de Miguel Deslandes.

SERRÃO, Joaquim Veríssimo (Dir. de) (1982) - História de Portugal [1640-1750], Vol. 5, Lisboa : Editorial Verbo

sexta-feira, 11 de março de 2022

Revisitar uma imagem gótica: a Virgem com o Menino (século XIV)

Em palavras:

                Em 1966, no decurso das obras na igreja de Alfeizerão apareceram enterradas duas imagens de calcáreo no solo da igreja, a do Arcanjo S. Miguel  e uma Virgem com o Menino. Avisado pelo padre Borges, aí acorreu o incansável Borges Garcia que as estudou detidamente, divulgando depois a sua análise num trabalho publicado em 1970: "Descoberta e estudo de imagens religiosas em S. Gião, Famalicão da Nazaré e Alfeizerão (Estremadura)" (in "Actas das I Jornadas Arqueológicas", Lisboa, 1969, Vol. II).

                Nesta breve anotação, vamos regressar a essa publicação de Eduíno Borges Garcia, mais particularmente, ao que escreveu sobre a imagem da Virgem com o Menino (op. cit., p. 9-11). Atendendo às caraterísticas da imagem, Borges Garcia atribuiu-a - com toda razão, cremos nós - à escola escultórica de Coimbra, mais propriamente à oficina de Mestre Pêro de Coimbra (século XIV). O que propomos aqui é apenas cotejar esta imagem da Virgem com pormenores de outras imagens atribuídas à mesma escola para enfatizar algumas afinidades.

                Mestre Pêro de Coimbra é uma figura de grande importância na evolução da escultura medieval no nosso país, supõe-se que tenha nascido em Aragão ou na Catalunha, e também de Aragão era a Rainha Santa Isabel que patrocinou o trabalho do escultor e a quem incumbiu de esculpir o seu túmulo, hoje estante no Mosteiro de Santa Clara a Nova. Outra das suas obras marcantes, foi o túmulo com jacente de Dom Gonçalo Pereira, Arcebispo da diocese de Braga, na Sé da mesma cidade; os anjos esculpidos nesse túmulo, cabeceira e pés da imagem do Arcebispo, são como um cânone no imaginário de Mestre Pêro.

                Sobre a imagem da Virgem com o Menino da igreja de Alfeizerão, podemos ensaiar um esquisso de descrição:

                A Virgem de pé e frontal olha em frente e segura no colo, sobre o braço esquerdo o Menino, que fixa atentamente a mãe. A Virgem apresenta um rosto de perfil ovalar de feições suaves e olhos amendoados e a boca com os lábios unidos, o rosto é emoldurado por cabelos cingidos por um véu seguro por uma pequena coroa no alto, enverga uma túnica abotoada e presa no ventre por um cinto de couro com a ponta pendente, a túnica desce sobre as pernas em pregas oblíquas em U aberto, e sobre ela tem um manto comprido lançado sobre os ombros e fechado sobre o peito por um firmal ou alfinete quadrilobado liso, o manto, agrupado sobre o antebraço direito estrutura-se em pregas escalonadas e bem definidas; a mão direita da Virgem segura flores azuis e amarelas com os seus dedos cilindricos e alongados, a mão esquerda, curvada em sentido oposto à que mal-segura as flores, abre ligeiramente os dedos alongados para segurar com firmeza os joelhos do Menino. O Menino, de tronco desnudado, tem a parte inferior do corpo enrolado num pequeno lençol e segura com ambas as mãos a pomba do Espírito Santo, possui os cabelos em linhas sinuosas e o rosto arredondado, as maçãs do rosto cheias, os lábios de comissuras encurvadas para baixo, quase em ricto de choro quando visto de frente, olhos e sobrancelhas descaídos. Estamos perante um conjunto escultórico tenuamente dinãmico com ligeiro torsão do corpo para a esquerda e o pé calçado desse lado a assomar sob as vestes, efeito acentuado pelo drapejamento das roupas e pela suave inclinação da cabeça da Virgem para o lado oposto. A policromia original anda é nítida, sobretudo no manto (azul), na túnica (vermelha) e nos pormenores em preto do cinto e do sapato.

                Sobre a arte da Escola de Mestre Pêro e a Virgem com o Menino encontrada em Alfeizerão, a filiação parece clara, os traços-chave encontram-se lá, outros pormenores mais heterodoxos, como o rosto mais arredondado da Virgem ou o cabelo do Menino por exemplo, podem dever-se à particular execução de um dado escultor ou conjunto de escultores da sua oficina e subscrevemos a conclusão de Borges Garcia: «se este bela imagem não é da autoria de Mestre Pêro, será indubitavelmente da sua Escola».

 

Em imagens:

- A Virgem com o Menino, de Alfeizerão



- As flores  na mão direita: em Alfeizerão (em cima) e, em baixo, duas imagens da Virgem com o Menino: da Igreja Matriz de Oliveira do Hospital e do Museu Machado de Castro em Coimbra




- A cabeça do Menino nesta imagem e a cabeça de dois dos anjos do túmulo de Dom Gonçalo Pereira na Sé de Braga




- A pomba do Espírito Santo nas mãos do Menino: a segunda imagem é de uma Virgem com o Menino do Museu Nacional de Arte Antiga.


- O firmal quadrilobado que prende o manto: a primeira imagem inferior é da mesma imagem do Museu Nacional de Arte Antiga e a segunda é uma imagem da Anunciação que se atribui a Mestre Pêro e que se encontra na Catedral de Santiago de Compostela



quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Sem (mais) palavras

 


<António Madeira>

Matou Bernardo Joam á sua porta a Antonio Madeira [entrelinhado: "conforme o que disem"] em 24 dias do mes de Novembro de 619 ás nove horas da noute, pouco mais ou menos, esteve vivo sem falar nem subir ao pée nem nada [sic] desasete horas pouco mais ou menos, porque faleceo aos 25, duas horas depois do meio dia, foi somente ungido e sem a confisão porque não falou mais, nem deu sinal algum todo este tempo de homem vivo, foi enterrado na igreja em os 26 do dito mes, depois que as justiças de Alfeiserão e o ouvidor o mandarão enterrar e por verdade, hoje, 26 de Novembro de 1619.

[O padre-cura] Henrique Baptista

 

[ADLRA, IV/36/C/30, Registos de batismo, casamento e óbito da freguesia de Famalicão: 1615-1621, sem n.º de fólio. Código de referência PT/ADLRA/PRQ/PNZR01/003/0001]


domingo, 13 de fevereiro de 2022

O foral manuelino da Cela Nova (01/10/1515) e o trabalho nas obras dos castelos e muros


Os Coutos de Alcobaça possuíam duas fortalezas de primeira ordem, os castelos de Alcobaça e Alfeizerão e manter essas fortalezas reparadas e prontas para o conflito era uma responsabilidade do Abade e Mosteiro de Alcobaça que para tal, contava com o trabalho prestado pelos moradores dos Coutos através da obrigação da adua ou anáduva. A contestação a essa obrigação estará na origem da sua fixação, a título de exemplo, na letra do foral novo de D. Manuel I à Cela Nova, cujo teor se declara extensivo aos restantes concelhos dos Coutos.

Desse documento, conservado na Câmara Municipal de Alcobaça, apresentamos aqui o trecho sobre as "Obras dos Muros" (fl. 14r-14v). Na transcrição operamos algumas ligeiras adaptações ao texto, nomeadamente o desenvolvimento das abreviaturas, a separação de palavras indevidamente unidas e a conversão na grafia do u com o valor de v.

 

[Fl. 14r] Outrossy foy ora movida demãda pollos ditos comçelhos comtra o dito dom abade y seu moesteiro por serem comstrangidos y apremados por sua parte pera servjrem nas obras y muros do dito moesteiro sobre a qual cousa foram per nos vistas as scripturas do moesteiro per que se prova y achamos seer dado o dito poder ao dito moesteiro per ElRey dom fernamdo por sua carta patente. E per bem della foy sempre em posse da dita servjntia o dito moesteiro. A qual nos decraramos per este nosso foral aversse de fazer desta maneira j que os vezinhos y moradores dos ditos coutos servam per mandado do abade do dito moesteiro ou de seus ofiçiaães daqui adiante nas obras y muros // [fl. 14v] das ditas suas fortellezas como atee qui fizeram. E isto soomente sera quando nos ouvermos por nosso servjço y bem de nossos regnos de se fazerem ou refazerem os ditos castellos y muros y obras delles as quaaes nos curtam [sic] per nosso espeçial mandado ao dito abade mandarmos fazer y doutra maneira nam servjram os moradores dos ditos comçelhos nas ditas obras sem embargo da dita carta. Item da posse em que disso o dito moesteiro estava. Salvo quando nos os ditos castellos mandarmos correger como dito he.