[Nota: Este texto é um trecho de um apontamento mais vasto, divulgado com o título: Uma paróquia no século XVII: O testemunho do padre António de Moura Ferrão, vigário da freguesia de N. Sra. da Vitória de Famalicão, aldeia do (actual) concelho da Nazaré]
Detalhe da "Carta da fronteira entre o Alentejo e a Estremadura espanhola"
de João Teixeira Albernaz, 1646 (BNP, C.C. 254 A.)
Notícias de uma guerra quase esquecida
A
Restauração da independência de Portugal em 1640 foi uma conquista histórica
que se teve que defender e sustentar numa longa guerra com Espanha que se
prolongará até 1668, ano em que se firma a paz entre os dois países e o
reconhecimento da independência de Portugal pela dinastia dos Habsburgos
espanhóis. Logo no ano de 1641 se organiza a defesa do país com as Companhias
de ordenanças e Terços auxiliares e, verificando-se que o Alentejo era a área
geográfica mais vulnerável à invasão espanhola e ao avanço sobre Lisboa, D.
João IV ordena que para acudirem à defesa dessa fronteira e das suas praças
fortificadas ("presídios")
fossem dedicadas os Terços de Auxiliares de «toda a Provincia da Estremadura e parte da da Beyra» (Menezes,
1679:201-202). Nesses 28 anos de guerra podemos destacar no contexto deste
estudo dois eventos militares proeminentes. Entre Julho e Outubro de 1658 o
governador do Alentejo, Mendes de Vasconcelos reuniu em Elvas um exército de
17.000 soldados portugueses e tenta a conquista da cidade de Badajoz, o
ambicioso projecto sai gorado e em quatro meses de cerco da cidade o exército
perde 6.200 homens, mortos em combate ou pela peste ou simplesmente fugidos ¹. Depois dos portugueses
levantaram o cerco, os espanhóis sob o comando de D. Luís de Haro tentam a
conquista de Elvas e cercam a cidade durante três meses, mas acabam derrotados
na Batalha das Linhas de Elvas a 14 de Janeiro do ano seguinte (Menezes,
1698:200-201), na cidade de Elvas o cerco causou a morte de centenas de pessoas
pela fome e pela peste (eram, diz o cronista, mais soldados que mantimentos e
já não havia onde enterrar tantos mortos - id.
p. 141). Terminada a Guerra da Restauração, a guerra voltaria à faixa raiana no
contexto da Guerra de Sucessão de Espanha (1665-1715), período durante o qual
os exércitos de Filipe V de Espanha entraram no Alentejo e ocuparam diversas
praças portuguesas, como Portalegre e Castelo de Vide no ano de 1704,
assistindo-se durante mais dois anos aos
episódios de batalhas e escaramuças em território alentejano entre as forças
militares dos dois reinos (Serrão, 1982:226).
Com os efectivos
de Auxiliares da Estremadura a serem encaminhados para a defesa da fronteira do
Alentejo, esta guerra com as suas centenas de mortos é perceptível nas fontes
primárias da História local. Indicaremos os registos associados a ela na
freguesia de Famalicão, antes de acrescentarmos a esses registos os que lhes
são idênticos nas freguesias confinantes da Pederneira e Alfeizerão; não
incluímos os registos paroquiais de S. Martinho do Porto porque não encontramos
nenhum assento que estivesse relacionado com este tema, nem os da freguesia da Cela
porque a data extrema inicial dos livros de assentos de óbito que nos chegaram da
freguesia é o ano de 1739. A ausência na freguesia de S. Martinho do Porto de
óbitos nas guerras da fronteira parece dever-se apenas à boa fortuna de não
terem ocorrido; ao falar de Alfeizerão no seu Dicionário Geográfico, obra publicada em 1747 (Cardoso, 1747:278),
o padre Luís Cardoso diz que não se fazem soldados nessa terra para as praças
do Alentejo por acudirem os seus Auxiliares ao forte de S. Martinho do Porto
quando havia sinal de rebate e o mesmo deveria suceder nesta vila e freguesia; mas
essa isenção foi tardia para o quadro
cronológico das guerras de fronteira porque nas suas respostas aos quesitos do
Inquérito de 1758, o padre-cura Manuel José Marcelino da paróquia de S.
Martinho do Porto (Cf. Doc. 6, f.
461, resposta n.º 22) diz que o privilégio de não se fazerem soldados na vila de
S. Martinho se devia a um despacho do Marquês de Marialva, publicado uns seis
anos antes (um pouco mais, atendendo à informação do padre Luís Cardoso, de
finais da década anterior).

Figura 6: A fronteira do Alentejo,
parte do mapa "Limites de Portugal"
de Brás Pereira (1642) ²
Em
Famalicão, freguesia de Nossa Senhora da Vitória, são seis os registos
paroquiais que importa referir:
<Fronteiras. João
do Cazal da Nuna>
Aos outo dias do mes
de Setembro de 1658 fis hum ofiçio pella alma de João, filho de Domingos
Fernandes do Cazal da Nuna e de Antonia Fernandes, soldado que deos levou na
fronteira de Elvas e augmentei os quatro domingos do mes, seu pai e mai
satisfizerão com a esmola de fevereiro de 659. O Vigr.o Antonio de
Moura Ferrão.
[Cf. Doc. 1, f. 12r]
Faleçeo Domingos Dias da
Cerra da Pescaria, marido de Maria Luis Peneda, nas partes do Alentejo de
doença que deus lhe deu, fizerãoce por sua alma tres ofiçios nesta igreja e se
augmentarão os quatro domingos do mes, ao que tudo satisfes sua mulher,
fizerãocelhe os ofiçios ao dezouto e dezanove dias de agosto de mil e seis
centos e sincoenta e nove, e por verdade fis este asento para lembrança, dia,
mes, era asima dicto. O Vigr.o Antonio de Moura Ferrão.
[Cf. Doc. 1, f. 17r]
<Panois, Manuel,
filho de Francisco Alveres>
No mesmo tempo asima
declarado [19 de Agosto de 1659] fis
hum ofiçio e augmentei os quatro dominguos do mes pella [alma] de Manuel, filho
de Francisco Alveres deste lugar, soldado que deus levou em Elvas, por não ter
bens de sua ligitima para mais e por verdade fis este que asinei, dia, mes e
era asima declarado. O Vigr.o Antonio de Moura Ferrão.
[Cf. Doc. 1, f. 17r]
<Fronteira de Elvas,
Antonio, filho de Antonio Lampreão do Casal do Bom Nome>
No anno de seis centos
e sesenta e dous fis hum ofiçio e augmentei o mes pella alma de Antonio Mendiz,
filho de Antonio Martinz Lampreão do casal de bom nome, herdado de sua mai por
não aver legitima para mais, que faleçeo na cidade de Elvas sendo nella soldado
e por verdade fis este asento para a todo o tempo constar, oje, 11 de maio de
662. O Vigr.o Antonio de Moura Ferrão.
[Cf. Doc. 1, f. 22v]
Em os vinte e hum dias
do mes de Outubro de mil e sete sentos e sinco annos fis hum ofísio pela Alma
de Manoel Luis dos Raposos, filho de Manoel Luis, o qual disem que faleseo nas
guerras e para que conste fis este assento. O Cura Antonio de Oliveira.
[Cf. Doc. 2, f.34r]
Em os vinte e tres
dias do mes de fevereiro de mil e sete sentos e sete annos fis tres ofísios
nesta igreja de Nosa Senhora da Victoria do lugar de Famalicam pela alma de
Domingos Francisco, marido que foi de Maria Rodrigues Pequicha, moradora em
Famalicam de Baixo, por ser absente [estar ausente] á dezouto annos e aver novas que era morto no Alentejo, lhe fis os
tres ofísios e por verdade me assinei, oje, dia, mes, era ut supra. Antonio de
Oliveira.
[Cf. Doc. 2, 36v]
Os Panoins
(Panões) do assento de óbito de Manuel, filho de Francisco Álvares, é um
elemento toponímico que ainda persiste na aldeia de Famalicão três séculos e
meio depois e indica a Rua dos Panões que, na povoação actual liga à Rua das
Flores que margina o alçado poente da igreja. No registo de óbito de António
Dinis, o Zagalho, menciona-se expressamente a "Rua dos Panoins deste lugar de Famalicão" (Cf. Doc. 1, f. 78r). O topónimo pode
ter-se originado eventualmente numa manufactura local de panos de lã - o
Zagalho, alcunha deste António Dinis, tem como raiz "zagal", pastor, e nos registos paroquiais encontramos outra
alcunha significativa de um residente nos Panões: Francisco Jorge Panoeiro (Cf. Doc. 1, f. 77v). Para os séculos
XV/XVI possuímos esta indicação que de uma forma limitada fundamenta esta
suposição: «Um pequeno núcleo de produção
de tecidos de lã, sobretudo, de burel, ganhou alguma expressão na região de
Alcobaça, justificada pela existência de numerosos coutos ligados à Abadia»
(Garcia, 1986:328, apud: Costa, 2009:158)
Na freguesia
de Nossa Senhora das Areias da Pederneira, recolhemos três assentos paroquiais:
Aos 30 dias do mes de
Outubro faleceo Rodrigo Lopez, digo, veio recado a sua molher, moradora nesta
villa em como o dito seu marido era morto na fronteira do Alentejo em o dito
dia e mes ut supra desta era de 1658. [rubricado:] Lopez.
[Cf. Doc. 3, f. 125r]
Aos dois dias de
Agosto da ditta Era [1685] chegou
nova em como o Mudo de Fanhais [sic] era falecido na parte do Alentejo e para que
conste fis este asento oje, dia, era ut supra. O Vigario João de Souto Velho.
[Cf.
Doc. 4, f. 2v]
Vindo da fronteira Domingos
Bernardes do lugar do Vallado, faleceo em o Bispado de Portalegre, fis este
assento para constar em todo o tempo em 28 de dezembro de 1663. Lopez.
[Cf. Doc. 3, f. 143r]
Por fim, na
freguesia de S. João Baptista de Alfeizerão, recolhemos os seguintes:
Em os outo dias do mes
de Fevereiro de mil e seis sentos e noventa e hum annos, fiz dois, digo, hum
ofísio pela Alma de Manoel, filho de Siman Lopes desta villa, por aver novas sertas
que falesera no Alimtejo e para que
conste fis este asento. Feci dicto die ut supra. Antonio de Oliveira.
[Cf. Doc. 5, n.º fl. ilegível]
A sete de Julho de mil
e sete sentos e dois annos, fiz dois ofisios pela Alma de Manoel de Oliveira,
filho de Sebastiam de Oliveira e de Iria Jorge, moradores nesta villa, o qual
faleseo no Alentejo e para que conste fiz este assento. O pe. Antonio de
Oliveira.
[Cf. Doc. 5, f. 49r]
Em os quatro dias do
mês de Fevereiro de mil e sete sentos e seis anos, fiz hum ofiçio pela alma de
Raymundo, filho de Manoel Simoins, do Vallado, e de Maria Madeira desta
freguesia, o qual faleçeo no hospital de Campo Maior; por me constar por seus
companheiros que o viram morrer sendo
soldado e para que conste o sobre ditto fiz este assento. O Cura Antonio do
Couto.
[Cf. Doc. 5, f. 54]
Em os vinte e sete
dias do mes de Março de mil e sete sentos e seis annos, em esta Igreja de São
João Batista da villa de Alfizirão, fis tres ofisios pella Alma de Joseph,
filho de Francisco Mendes e de Ignes Luis, já defuntos, moradores que forão no
lugar da Macalhona desta freguesia, o qual faleceo no Hospital de Estremoz, e
para que conste o sobreditto fis este assento. O Cura Antonio do Couto.
[Cf. Doc. 5, f. 54v]
FONTES:
Documentos:
Doc. 1 - ADLRA, IV/36/D/36, Registos de óbito da freguesia de Famalicão: 1649-1684 - PT/ADLRA/PRQ/PNZR01/003/0002
Doc. 2 - ADLRA, IV/36/D/37, Registos de óbito da freguesia de Famalicão: 1684-1731 -
PT/ADLRA/PRQ/PNZR01/003/0003
Doc. 3 - ADLRA, IV/36/D/56, Registos de baptismo e óbito da freguesia de Pederneira da Nazaré:
1657-1664 - PT/ADLRA/PRQ/PNZR02/003/0002
Doc. 4 - ADLRA, IV/37/A/25, Registos de baptismo e óbito da freguesia de Pederneira da Nazaré:
1685-1712- PT/ADLRA/PRQ/PNZR02/003/0003
Doc. 5 - ADLRA, IV/24/C/11, Registos de óbito da freguesia de Alfeizerão: 1666-1747 -
PT/ADLRA/PRQ/PACB02/003/0002
Doc. 6 - A.N.T.T., Memórias
paroquiais, vol. 22, nº 71 - PT/TT/MPRQ/22/71
Bibliografia:
CARDOSO, Luís (1747) - Diccionario
geografico, ou noticia historica de todas as cidades, villas, lugares, e
aldeas, rios, ribeiras, e serras dos Reynos de Portugal, e Algarve, com todas
as cousas raras, que nelles se encontraõ, assim antigas, como modernas,
Lisboa : na Regia Officina Sylviana, e da Academia Real, Tomo I.
COSTA, Manuela Pinto da (2009) - “Tecidos e têxteis portugueses do século XVII ao século XVIII”, in Actas do IV Congresso Histórico de Guimarães,
Guimarães.
MENEZES, Dom Luís de (1698) - Historia de Portugal Restaurado - Tomo I, Lisboa, na Oficina de
João Galrão, 1679 / Tomo II, Lisboa : na Oficina de Miguel Deslandes.
SERRÃO, Joaquim Veríssimo (Dir. de) (1982) - História de Portugal [1640-1750], Vol. 5, Lisboa : Editorial Verbo