quinta-feira, 4 de novembro de 2021

A lápide romana de Terência Camira

 1. “Biografia” de uma pedra gravada

     Entre os muitos vestígios romanos encontrados na região, contam-se as lápides sepulcrais, desenhadas e interpretadas, por exemplo, pelo cronista Frei Bernardo de Brito na “Monarchia Lusitana” (Parte Primeira, Livro Terceiro, Most. Alc., 1597). Quase todas elas desapareceram, à excepção de uma, convenientemente guardada em Alcobaça, cujo historial evoco em seguida.

     Em 1721, nas respostas ao inquérito da Academia Real da História Portuguesa (BGUC – Ms. 503, fl. 82, 83), o Ouvidor da Comarca de Leiria, Cristóvão de Sá Nogueira, refere a existência em Alfeizerão de duas lápides romanas no castelo e uma outra que existia no corpo da vila, que é aquela que nos interessa, lápide que ele apresenta da seguinte forma: «á porta de João de Charia Henriques achey huma pedra que serve de assento, em a qual está exculpido o Letreiro seguinte, e no fim da terceira Regra estão tres signaes q. parecem letras, e o dito Letreiro tem sinco Regras». O ouvidor da Comarca não transcreve nem traduz o texto da lápide, mas o desenho que fez (Figura 1) é inequívoco:

 

Figura 1: o primeiro desenho da lápide (BGUC – Ms. 503, fl. 83)


     Sensivelmente sessenta anos depois, o cronista cisterciense Frei Manuel de Figueiredo regista em dois códices manuscritos distintos, preservados na Biblioteca Nacional de Lisboa (BNP, cod 1492 e BNP, cod 1484) as suas notícias corográficas sobre a comarca de Alcobaça. O primeiro códice foi transcrito e publicado pelo professor Gérard Leroux (Leroux, 2020), do segundo, Carlos Casimiro de Almeida transcreveu o trecho relativo a Alfeizerão, transcrição disponibilizada na Web na nossa página e num artigo publicado no portal Academia.edu (Vd. “Apontamentos corográficos de Frei Manuel de Figueiredo sobre Alfeizerão”).

     Frei Manuel de Figueiredo encontra novamente a lápide romana de Terência: “uma inscrição aberta num padrão de mármore branco que existe encostado ao cunhal das casas de António de Sousa, da parte do norte” (cod 1484) ou “uma pedra de mármore pegada ao cunhal das casas de António de Sousa” (cod 1492). O cronista desenha as letras (figura 2) e adianta a sua interpretação: «Parece quer dizer que Terência Máxima, filha de Quintino, pôs esta memória a sua filha Terência Camira”.

 

Figura 2: o desenho de Frei Manuel de Figueiredo (BNP, cod 1484)


     Talvez por ter o feitio e a utilidade de um banco, de “uma pedra que serve de assento”, nas palavras de Cristóvão de Sá Nogueira, a lápide sepulcral sobreviveu até aos nossos dias, permaneceu junto às casas da vila até ser recuperada por um sacerdote, o padre Poças Júnior, e foi parar às mãos do ganadeiro e cavaleiro Vitorino Fróis, que o ofereceu ao seu dileto amigo Manuel Vieira Natividade, tendo este guardado a dita lápide no seio do seu valioso acervo museológico de arqueologia e etnografia (a imagem que reproduzimos da lápide foi capturada pelo engenheiro silvicultor Carlos Paixão Correia). Isto é narrado por Afonso do Paço (Paço, 1962) num artigo sobre a carreira e os sucessos de Manuel Vieira Natividade, onde cita a descrição que Natividade fez da peça em seu poder: «é constituída por um bloco de mármore de 0,66 m de altura, 0,51 de largura e 0,41 de espessura, com belas letras de 0,06 de altura (...) está bastante estragada e mesmo cortada do lado direito na parte superior».

 


Figura 3: A lápide de Terência, em Alcobaça (foto de Carlos Paixão Correia)

 

     A inscrição de Terência tinha já sido reproduzida no Corpus (Corp. Inscr. Lat., II, 360), mas de posse do original, Manuel Vieira Natividade faz um decalque da inscrição que é transcrita e publicada n'O Archeologo Português por José Leite de Vasconcelos (vol. VII, Outubro de Novembro de 1902, nrs. 10 e 11, p. 16), aí desenvolve uma leitura algo diferente do texto: «A Terencia Camira, filha de Quinto, sua mãe Terencia Maxima, filha de Doquiro [ou Doquirico], consagrou este monumento».


Figura 4: a transcrição publicada por Leite de Vasconcelos


     A lápide de Terência, valioso testemunho do passado romano de Alfeizerão, a par do marco miliário de Adriano, é hoje propriedade do Estado e esperamos (como muitos) que não falte muito para poder ser admirada pelo público em geral, com a restante colecção museológica de Manuel Vieira Natividade. A Casa-Museu de Vieira Natividade foi formalmente criada por Decreto-Lei n.º 217/92 de 15 de Outubro e desde 10 de Julho de 2019, existe um protocolo estabelecido entre o município de Alcobaça e o DGPC para viabilizar a abertura ao público da referida Casa-Museu, após as obras e trabalhos que se julgar necessários.

     A médio prazo, quando a colecção de Natividade estiver, finalmente, exposta ao público, seria uma iniciativa oportuna se a autarquia obtivesse através das entidades competentes um decalque ou um molde em gesso dessa inscrição para poder ser exposto publicamente em Alfeizerão com toda a informação pertinente, como mais um fragmento inestimável do seu rico passado histórico.

 

Figura 5: a casa-museu Vieira Natividade, com o obelisco fronteiro, erguido em sua homenagem


 2. Uma nota de rodapé à inscrição

     A inscrição tumular de Terência Camira, é dedicada pela sua mãe Terência Máxima, indicando a sua ascendência paterna: Terência Camira era filha de Quintus e neta de Doquiro. O nomen Terência (Terentia) é a forma feminina do nome da família de que provinham (Terentius).

     Alguns detalhes mais.

     O nome Terência não é único na região, encontrando-se muito próxima a lápide sepulcral de Terência, filha de Lauro, mandada erigir por Júnia, sua mãe. O estudo desta lápide foi publicado em 1991 por José d’Encarnação e Maria da Conceição Lopes; inicialmente, era suposto ter sido encontrada num desaterro efectuado no Reguengo da Parada (concelho de Caldas da Rainha), mas informações posteriores dão-na como achada efectivamente no Casal do Pardo (D'ENCARNAÇÃO, José, LOPES, Maria da Conceição, Ficheiro Epigráfico, 70, FLUC, 1991) – a dúvida sobre todo o processo persiste de certa forma.

     Quinto (Quintus) era um dos prenomes mais comuns entre os romanos, a sua ocorrência nesta lápide pode significar apenas a sua adopção por populações autóctones romanizadas.

     O cognome Máxima também era frequente, como exemplo, a lápide de uma mulher de cognome Máxima, filha de Quinto, de um epitáfio de Collipo, S. Sebastião do Freixo (Brandão, 1972, p. 80). O antropónimo Camira, por seu turno, é mais invulgar – Maria Manuela Alves Dias adianta que ele «apresenta uma distribuição geográfica muito bem caracterizada, concentrando-se quase exclusivamente na Beira Baixa e na Estremadura Espanhola» (Dias, 1986).

     De Doquiro, Domingos de Pinho Brandão (Brandão, 1971, p. 59), num estudo sobre uma lápide romana do Crato (Alto Alentejo) diz tratar-se de nome de origem celta, sendo encontrado também sob as formas Docquirus e Docquiricus. Sobre a sua ocorrência na Península, além da lápide de Terência Camira, de Alfeizerão, indica os epitáfios descobertos em Idanha-a-Velha, Freixo de Numão, Trujilo e Mérida. A confirmar a raiz celta do nome, está uma lápide descoberta por Leite de Vasconcelos em 1930, perto de Canas de Senhorim, onde se lê que “Doquiro, filho de Céltio, cumpriu a promessa” - Doquirus, Celti filius, votum fecit (Archeologo Português, vol. XXVIII, 1927/1929, p. 214).


3. Uma anedota fora de contexto

     No trabalho de Afonso do Paço sobre Manuel Vieira Natividade encontra-se uma narrativa bem-humorada, que não resisto a endossar, sobre a primeira vez que Leite de Vasconcelos se entrevistou com o investigador do Casal do Rei (Paço, 1962, p. 86-87). Leite de Vasconcelos andava (como muitos acólitos dele) a percorrer o país em busca de antiguidades e objectos arqueológicos para o Museu Etnológico Português em Lisboa e, chegado a Alcobaça, lembrou-se de perguntar ao velho guia do Mosteiro se não conhecia ninguém na terra que tivesse em seu poder machados de pedra polida, artefactos a que o povo chamava amiúde “pedras de raio” por se acreditar que eram os raios que os frechavam sobre o solo ou as árvores. O guia indicou-lhe o Manuel Natividade, que vivia defronte do Mosteiro e acompanhou-o até lá. Feitas as devidas apresentações, Leite de Vasconcelos, com alguma ansiedade, pergunta a Manuel Natividade se tinha com ele "pedras de raio", ao que este respondeu que tinha efetivamente algumas, o que leva Vasconcelos a perguntar como as arranjava.

Manuel Vieira Natividade, um tanto trocista, cofiando a barbinha, disse para o seu interlocutor, também de barbas:

     - Quando está para trovejar, subo à torre do Mosteiro e reparo onde elas caem. Depois, vou lá buscá-las!



Fontes:

BRANDÃO, Domingos de Pinho - Epigrafia romana Coliponense, in "Conimbriga", Faculdade de Letras - Instituto de Arqueologia, Coimbra, 1972

BRANDÃO, Domingos de Pinho - Estela funerária com inscrição latina do Crato (Alto Alentejo), in "Trabalhos de Antropologia e Etnologia”, vol. 22, fasc. n.º 1, Porto, Faculdade de Ciências, 1971

 DIAS, Maria Manuela Alves - "Inscrição funerária de São Bento do Cortiço, Estremoz", Ficheiro Epigráfico, n.º 16, Coimbra, FLUC, Coimbra, 1986

LEROUX, Gérard, Frei Manuel de Figueiredo – Memórias de várias vilas eterras dos Coutos de Alcobaça (1780-1781), Alcobaça, edição do Jornal O Alcoa, 2020.

PAÇO, Afonso do - M. Vieira Natividade e as raízes de Alcobaça, in "Arqueologia e História", 8.ª série, Volume IX, p. 78-93, Associação dos Arqueólogos Portugueses, Lisboa, 1962

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

O primeiro casamento na capela do Valado (ano de 1737)

 


A capela de Santa Quitéria, no Valado, foi erigida «com provizão de Sua Eminência de doze de Junho de mil e sete sentos e trinta», como descreve o pároco de Alfeizerão em 1758, o Dr. Manuel Romão (ANTT, Memórias paroquiais, vol. 2, nº 53, p. 468). É a partir daí que, naturalmente, se afirma o topónimo Valado de Santa Quitéria, quando antes era referido apenas como Valado, lugar do Valado ou Casal do Valado. A capela é muitas vezes designada nos documentos por “ermida de Santa Quitéria”, tomada apenas como sinónimo de templo ou capela e não por se situar num lugar ermo porque, tal como a “ermida do Espírito Santo” em Alfeizerão, a capela fora erguida no coração da próspera povoação.

Evocamos aqui a primeira cerimónia de casamento aí realizada no ano de 1733; o padre Manuel do Couto que celebra esse matrimónio com licença do prior, tem as suas raízes nessa terra, como se percebe por alusões a familiares seus nos assentos paroquiais de Alfeizerão, como exemplo, o seu tio Domingos do Couto do Valado, de quem foi testemunha testamentária (Arquivo Distrital de LeiRiA, IV/24/C/11, Registos de óbito da freguesia de Alfeizerão: 1666-1747, fl. 109r).

Na transcrição desse assento de casamento, introduzimos alterações mínimas na grafia de algumas palavras.   


1737, Fevereiro, 25, Valado – Assento de casamento de António Luís e Maria Pereira

(ADLRA, IV/24/B/52, Registos de casamento da freguesia de Alfeizerão: 1660-1761, fl. 69r)


António Luís, solteiro, filho de João Luís e de sua mulher Domingas Luís, moradores que forão no lugar dos Mosqueiros e Maria Pereyra, solteira, filha de Manoel Pereyra e de sua molher Joanna Maria do lugar do Valado, todos desta freguezia de S. João Baptista desta villa de Alfeizerão, se Receberão por palavras de prezente na forma do C. [Concílio] Tridentino e Constituição deste Patriarcado de Lisboa Occidental, precedendo as tres denunciações sem impedimento, na prezença do Reverendo Pe. Manuel do Couto desta vila de minha licença, e na prezença de Lucas Fialho e Antonio Pereyra e de muita parte do povo em a Ermida da Nossa Sta. Quiteria do Valado, com licença por escrito do Reverendo Dr. Vigário Geral de Óbidos, do que fiz este assento que assignei, e declaro se Receberão em os vinte e sinco dias do mês de Fevereiro de mil e sete centos e trinta e sete annos. Alfeizerão, dia, mês, Era ut supra.

O Prior e Vigario Dr. Manuel Romão

[rubricas das testemunhas]

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Uma herdade ao castelo (ano de 1435, aprox.)

 


     Um inventário (tombo) das herdades do Mosteiro de Alcobaça, iniciado em 1435; apresenta uma relação minuciosa dessas propriedades em cada um dos Coutos, com as suas confrontações e demarcações.

     De seu nome “Livro do Tombo de todas as herdades que o Mosteiro tem (ANTT, Ordem de Cister, Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, liv. 15), ele contempla também, como é natural, as herdades do Mosteiro em Alfeizerão, a começar pela Quinta da Cavalariça. Do conjunto dessas herdades, destacamos, pela sua curiosidade, um conjunto delas sito junto ao castelo de Alfeizerão que aparentemente, foi doado aos seus moradores pelas cartas de povoamento, mas cuja doação é reiterada pelo abade Dom Fernando (Dom Fernando de Quental, abade de Alcobaça entre 1415 e 1426). O texto obtido conserva algumas incertezas, tanto pela sua transposição como pela “decifração” que ela impunha. O trecho apresentado encontra-se no fólio 86-verso da obra referida.

Item hu[m]as herdades que jazem darredor do castello, aas quais chamom a vinha da ordem, que foron e som sempre appartadas ao castello e aos poboradoores antigamente forom dadas e a que agora deu nouamente o abbade dom Fernando, logo para si tirou [?] o sobredito herdamento, o quall parte por o caminho do mouro e com [a vinha da] ordem ao ___ [lugar?] onde chamom do porto [porto? porteiro?] e a uzon por ella os dittos lauradores do dito lugar por quanto for mandado do dom abbade e ham de pagarem [de] guisa em cada hum anno de todo o que lhes der em ellas, o quanto o dizimo pagado nos lugares acustumados.


sexta-feira, 24 de setembro de 2021

O alcaide de Alfeizerão e a cobrança da dízima do pescado (ano de 1443)

 


     Em meados do século XV, a cobrança para o Mosteiro da dízima do pescado estava confiada na lagoa da Pederneira ao almoxarife da vila e na lagoa de Alfeizerão ao alcaide-mor da vila e castelo de Alfeizerão, exceptuando o peixe que fosse descarregado no porto realengo de Salir. Deste período, é tratada em vários documentos a acção do alcaide-mor João Afonso («Joam Affonso, mateyro e alcayde dalfeyziram»), nomeadamente, uma queixa de Martim Vasques e Martim Anes, pescadores da Pederneira, por certa dízima de sardinha cobrada à força pelo alcaide antes de a levar para o Mosteiro – litígio recuperado neste documento que agora reproduzimos – ou outros que mencionam a entrada de minério de ferro pelo porto de Alfeizerão[i].

     Neste documento, o infante D. Pedro, regente de Portugal na menoridade de Afonso V, confirma o direito do Mosteiro de cobrar a dízima sobre todo o peixe descarregado nos portos do território da ordem, enunciando o título introdutório que a cobrança da dízima era realizada em Alfeizerão.

     Na transcrição desenvolvemos as abreviaturas mais obscuras e acrescentamos, entre parênteses rectos, algumas letras ou pequenas notas; pontualmente, foi preciso inserir sinais de pontuação ou conjunções coordenativas para facilitar a leitura do texto.

 

1443, Novembro, 16, Alcobaça – Alvará em que o Infante D. Pedro reconhece ao Mosteiro e Ordem de Alcobaça o direito de cobrar a dízima do pescado em todos os portos do seu território.

(ANTT, Ordem de Cister, Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, liv. 12, doc. 65, f. 127v-128v)

 

Sentença de huã carta per que elRey mandou e ouue por bem que o Moesteiro leuasse a dizima dos pescadores de fora e dos da terra em Alfeizirã.

 

Saybam quantos este stromento de tre[s]lado em publica forma per autoridade de Justiça virem que no anno do nacimento de nosso Senhor Jhesu Xristo de mil e quatrocentos e quarenta e tres annos, dezasseis dias do mes de nouẽbro, no moesteiro Dalcobaça aas oliueiras onde se custumam de fazer as audiências, stando hy Joã Froez, Juiz ordinario no Julgado do dito Moesteiro em presença de mim, Lopo Fernandez, tabeliam nos coutos do dito Moesteiro por elRey meu senhor e das testemunhas que ao diante som nomeadas perante o dito Juiz [a]pareceo Ruy Fernandez, gouernador da casa do muyto honrado senhor dom Esteuam daguiar, Abbade do dito Moesteiro, do conselho delRey e seu smoler mor como seu procurador e apresentou huũ aluara de nosso senhor elRey scripto ẽ purgaminho [sic] e assinado per o I[n]ffante dom Pedro regedor e com ajuda de Deos defensor por el em seos reynos e s[e]n[h]orio, do qual o teor tal he. Nos elRey fazemos saber a vos, Affonso de Lixboa, Almoxarife dos direytos que a Reinha minha sposa há ẽ Obydos e ẽ Sylir, que o dom Abbade Dalcobaça do nosso conselho e smoler mor, veyo a nossa corte per rezam de huã citaçam que ao nosso requiremẽto mandamos fazer e ao seu celareyro do dito Moesteiro, e a Joam Affonso, alcayde do seu castello Dalfeiziram e a Diogo affonso seu veedor, esso mesmo por as suas rẽdas de torres Vedras que lhe mandamos poer ẽ seu arresto por a dizima da sardinha que no ano passado de quatrocentos e quorenta e dous, o dito dom Abbade ouue per ao dito seu Moesteiro, de Martim Vazquez e de Martim anes e outros pescadores que vieram [a]portar e descarregar no seu logar de Sam Martinho. Aos quaes fostes tomar os batees [batéis] que hy tinham por a dita dizima, asy auer o dito Moesteiro dizendo que a deuia dauer a Renda, posto que fosse descarregada na terra da ordem, da qual cousa o dito dom Abbade se nos agrauou dizendo que nom auia por que lhe serẽ feytas taes cousas por que ao dito Moesteiro pertenciam dauer as ditas dizimas assi no dito logo de sam Martinho como nos outros lugares de sua terra quando ẽ ella portassẽ e descarregassem, assy dos moradores da terra como dos de fora della. E esto por bẽ das doaçoões que dello ao dito Moesteiro per os Reys nossos antecessores foram feytas, os quaes per nos eram cõfirmadas. E per posse que dello tinham assy per carta de determinaçam que dello auiam delRey dom Affonso de boa memoria e per outro liuramẽto da dona constansa q̃sa»] de Borgonha minha tia [ii], que teue a dita terra, ẽ os quaes tempos sobre esto fora posto embargo. E per outras scripturas pubricas [sic - públicas] per que possuem e uzam ataa ora auerem as ditas dizimas, pidindonos o dito dom Abbade por mercê que víssemos as ditas scripturas per as quaes acharamos que era assy como el dizia. E que mandassemos que o dito Moesteiro ouuesse as ditas dizimas e nõ lhe fosse sobrello posto mais embargo, mandandolhe desarrestar as ditas suas rendas e tornar os batees aos ditos pescadores, ou lhe ouuesses por desatada alguã fiança sea [que] sobre ello ouuestes. E nos, vendo seu dizer e pidir, mandamos presente nos vir todas as doações e scripturas per ell allegadas, e vistas per nos achamos que o dito Moesteiro tẽ asaz de boas scripturas per que se mostra o dito Moesteiro ter direyto dauer as ditas dizimas dos ditos pescadores, assy da terra como de fora, porẽ vos mandamos que leyxees [deixeis] buscar o dito dom Abbade e seu Moesteiro e seus officiaes dauer as ditas dizimas como sempre ata ora ouuerã. E daqui diamte nõ lhe ponhaes sobrellas nenhuũ embargo. E se os ditos batees ou outros penhores polla dizima da dita sardinha tendes tomados aos ditos pescadores tornaulhos logo. E se vos derõ por ello fiança, auemos os fiadores por desatados della. E per este aluara mandamos aos Juizes de Torres Vedras que as ditas suas rẽdas per nosso mandado poseram ẽ soeresto [sob arresto]e a outros quaes quer que esto ouuerẽ de ver, que lhas desarestẽ logo e se algũa cousa dellas per seu mandado he recebida per alguã pessoa, que façam logo todo compridamente entregar a certo creado do dito dom Abbade sem outro nenhuũ embargo. E o dito dom Abbade tenha este aluara pera sua guarda e de seu Moesteiro onde al nom façades. Feyto ẽ cidade de Lyxboa, doze dias de Junho per autoridade do Senhor Iffante dom Pedro, tutor e curador do dito Senhor Rey, regedor cõ ajuda de Deus defensor por el ẽ seos regnos e senhorio. Pero Gonçalvez o fez, anno de nosso Senhor Jhesus de 1443. Do qual aluara assy apresentado pello dito Ruy fernandez, o dito Ruy fernandez disse que req[ue]ria ao dito Juiz que porquanto se o dito senhor dom Abbade e o dito seu Moesteiro per o dito Aluara se entendiam dajudar que lhe mandasse dar o trelado delle ẽ pubrica forma e o dito Juiz visto o dito Aluara como era boõ e verdadeyro, nõ roto nẽ respançado nẽ antrelinhado nẽ cancellado nẽ ẽ outro nenhuũ lugar sospeyto, mandou a mim, tabeliam, que lhe desse o dito aluara em pubrica forma. Testemunhas. Diogo Lourẽço e Joam Vaaz e Stevam Vaz e outros. Eu sobredito tabeliam que este stromento per autoridade do dito Juiz se veem ẽ o qual meu sinal fiz que tal he.

[validatio e assinaturas]

 


[i] Vide: GONÇALVES, Iria – O Património do Mosteiro de Alcobaça nos séculos XIV e XV, edição da Universidade Nova de Lisboa – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Lisboa, Julho de 1989.

[ii] Constança de Castela, duquesa de Lencastre e segunda esposa de João de Gante era, em rigor, madrasta da sua mãe, Filipa de Lencastre.

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Um noivo na prisão (ano de 1718)

    


Durante o ano de 1718, o padre-cura de Alfeizerão, António do Couto, lavra uma anotação no Livro de Registos de Casamento da freguesia sobre o casamento entre António Cota e Josefa Ramos, celebrado na freguesia de São Tiago de Óbidos pelo padre Pedro Alves Madeira. O motivo dessa união na vila acastelada, é explicada pelo padre-cura de forma lacónica: o noivo, António Cota encontrava-se então preso no aljube de Óbidos (ADLRA - Arquivo Distrital de Leiria, IV/24/B/52, Registos de casamento da freguesia de Alfeizerão: 1660-1761, fl. 42v).

Dos assentos paroquiais da freguesia de São Tiago de Óbidos (ADLRA, IV/38/B/50, Registos de casamento da freguesia de São Tiago de Óbidos: 1695-1775, f. 35r), recuperamos o teor desse assento de casamento, ainda que ele seja omisso sobre a situação do noivo - na transposição do texto, desenvolvemos as abreviaturas utilizadas:

 

«Em os onze dias do mes de Junho do anno de mil e sete centos e dezoito em esta igreja de S. Tiago de Obidos pellas onze horas da menham perante mim e as testemunhas abaixo assignadas por mandado do muito Reverendo Vigairo geral desta dita villa e com licensa do Reverendo Cura da villa de Alfeizerão, António do Couto, se reseberam por palauras de prezente na forma do Sagrado Concilio Tridentino e Constituição deste Patriarcado, António Cotta, filho de Manuel Cotta e de sua mulher Izabel Francisca, natural e morador em a villa de Alfeizerão, freguezia de S. João Baptista da dita villa donde elle contrahente foi baptizado, com Josepha Ramos, filha de Antonio Luis, já defunto, e de Antonia Ramos, natural da dita vila de Alfeizerão, freguezia da mesma Igreja onde a contrahente foi baptizada, os quais me constou nam terem canonico impedimento por papeis que aprezentarão, ao que tudo forão testemunhas entre outras muitas [pessoas] que prezente estavão, Aires Monteiro, tezoureiro em esta vila, os quais aqui comigo asignaram, dia, mês, era ut supra. O Cura Pe. Alues Madeira».