O fim da livraria e algumas notas sobre as suas obras
Nos
alvores do século XIX, a Livraria ou biblioteca do Mosteiro de Alcobaça está
implantada no seu novo espaço, no edifício sobranceiro ao claustro do
Rachadouro. A obra em epígrafe a estas linhas, o Livro das Contas da Livraria do Real Mosteiro de Alcobaça,
transmite-nos, como teremos oportunidade de expor, a ideia de uma Biblioteca
com uma grande vitalidade, adquirem-se periodicamente novas obras em livrarias
e espólios (livros, panfletos, mapas), assinam-se periódicos (uma das grandes
inovações dos novos tempos) que são depois encadernados para se guardar nas
estantes, e desenvolve-se algum trabalho de impressão. Para fazer face a esse
trabalho e às despesas originadas por ele, a biblioteca tinha de ter
rendimentos próprios consignados pelo Mosteiro, disposição que encontramos já
para a Biblioteca do princípio de 1700, segundo nos conta na sua Corografia o
padre António Carvalho da Costa COSTA, 1706, P. 89): «A Religião lhe tem
consignada renda em cada hum anno para a reforma & augmento dos livros».
A
vida efémera desta nova Biblioteca, desde os primeiros anos do século à partida
dos monges, permitiu-lhe ainda assim conhecer um flagelo sem paralelo na
História do cenóbio, com as destruições provocadas no Mosteiro pelas tropas de
Massena no ano de 1811.
Um
testemunho eloquente dessa destruição é uma carta, não assinada, publicada na Gazeta de Lisboa de 9 de Maio de 1811 (Gazeta de Lisboa, n.º 110, Impressão
Régia, Lisboa), pouco depois dos eventos. A referência na carta ao «meu Prelado
maior» deixa suspeitar que seria um religioso (monge de Alcobaça?), impressão
reforçada pelas duas referências feitas à literatura francesa, Fénelon e
Bossuet, dois teólogos que se posicionaram nos dois extremos do espetro político,
liberalismo e absolutismo. Transcrevemos literalmente essa carta:
LISBOA, 9 de Maio
Cópia de huma Carta de Alcobaça, de 30 de
Abril
Cheguei a esta Villa, e
encontrei ainda muitos vestigios da precipitada fugida de Massena; e juntando a
estes muitos outros, que tenho diante dos olhos, penso que o Redactor da Gazeta
de Lisboa não deve ser acusado de exaggeração, quando elevou a sua perda em
cavallaria em mais de 80 praças. O contagio, que he a consequencia natural do
abandono e miseria em que ficarão muitas povoações que não forão evacuadas
inteiramente á chegada dos Francezes, continua a fazer muitos estragos
naquellas, em que os auxilios de Medicina são ainda muito escaços. Nesta Villa,
porém, graças ao meu Prelado maior, que trouxe uma grande quantidade de Agoa de
Inglaterra, e hum Medico para assistir aos enfermos, estes são já em pouco
número, e ha oito dias que cheguei aqui, tem morrido 2 ou 3 pessoas, o que não
tem proporção alguma com o estrago de outras povoações, onde morrem todos os
dias, pelo menos, 6 pessoas.
Tenho observado com atenção as
espantosas ruinas deste Mosteiro; confesso-lhe que me parecem mais horríveis do
que julgava. A Igreja toda denegrida pelas chamas, que consumirão totalmente o
Coro; as naves que sustentavão os órgãos, todas estaladas, offerecem hum golpe
de vista muito desagradavel. Nota-se que as Imagens de Jesu Christo, Nosso
Salvador, e de Nossa Senhora forão as mais insultadas, apparecendo quasi todas
inteiramente desfiguradas, ou com as cabeças cortadas. Outras tem os rostos
denegridos, e conhece-se que he por lhes terem applicado vellas acezas; em fim
a Religião dos Soldados de Buonaparte apparecerá em toda a sua luz a quem
examinar a Igreja de Alcobaça.
Na casa dos Tumulos Reaes
fizerão insolencias, que revoltão os espiritos mais indiferentes. Abrirão quasi
todas com martello e picareta, donde resultou ficarem estragados, e mormente os
do Sr. D.Pedro I, e D. Ignez de Castro, que erão primorosamente lavrados. As
Rainhas D. Beatriz e D. Urraca, apparecerão inteiras, e aquella ainda com os
proprios vestidos com que foi sepultada. O Corpo do Sr. D. Pedro I, estava
perfeitamente organisado, não assim o de D. Ignez, de quem só existião ilesos
os cabellos. Em tres pequenos tumulos jazião tres Infantes, cujos restos não
apparecem. As grandes aberturas que fizerão nos mais, já forão tapadas.
Na Livraria deixarão monumentos
incontrastáveis do seu amor ás letras. despedaçarão mezas, cadeiras, escadas,
vidros, parte das varandas, e lançarão para a cerca muitos livros, que se
estragarão com o tempo, e que felizmente não eram os melhores, que muito antes
forão postos a salvo. Rasgarão muitos, e he sensivel a perda de quatro globos,
dois terraqueos, e dois celestes, de que só existem alguns pedaços.
Na Hospedaria ficou salva huma
casa ou sala, chamada dos Reis, ou por acaso, ou para vermos os nossos
Monarchas viipendiados, e com effeito estragarão, ou rasgarão todas as suas
pinturas.
Da relação antecedente se póde
colligir qual he o gosto, que tem pelas sciencias, e pelas artes os satellites
do Tyrano Napoleão. Com he crível que estes homens sejão os habitantes da mesma
Patria dos Fenelons, e dos Bossuetes? Huns monumentos augustos, como os de
Alcobaça, e da Batalha, que tinhão respeitado os seculos, vierão a ser
destruidos por esta raça perversa de Soldados embrutecidos! A sua destruição
porém não pôde ser completa, e cuida-se em reparar os seus estragos; aquelles
que forem reparaveis.
Pela
carta, ficamos a saber que os monges se haviam precavido contra a ação dos
franceses, escondendo as suas obras mais importantes. Depois deles partirem,
foi chegada a hora de reparar alguns dos estragos, e os restauros na Livraria
devem ter acompanhado os do resto do Mosteiro, reconstrução que pela sua
dimensão, terá sido demorada. O Livro das
Contas da Livraria (BNP, cod-7353), que se inicia de forma não regular a 5
de Outubro de 1811, não menciona obras no primeiro triénio (1810-1811-1812),
mas o ano que abre o triénio seguinte, 1813, descrimina restauros na Livraria
coerentes com o teor da carta: madeira e ferragens para as mesas pequenas e a
jorna dos oficiais que consertaram as ditas; vidros e caixões (caixilhos) para
eles e «outras coisas precisas para o conserto das vidraças da Livraria». No
ano de 1814 prossegue a recuperação da Livraria: compra-se um pranchão de
madeira para se consertar as mesas grandes da Livraria, pagando-se as jornas
dos carpinteiros para a obra. Paga-se também a jorna de homens contratados para
raspar as estantes, certamente para as restaurar.
A
Biblioteca e o Mosteiro refazem-se como podem no coração dos coutos de Alcobaça
onde a passagem dos franceses e a epidemia que campeava pelas terras matou
muita gente, deixando aos que regressavam às suas terras e casas, a certeza de
uma vida difícil envolta pelo espetro da fome. Um decreto de 31 de Março de
1811 (GAZETA DE LISBOA, nº 79, de 2
de Abril de 1811, Impressão Régia, Lisboa), assinado em nome do Príncipe por D.
Miguel Pereira Forjaz e pelo desembargador Sebastião Xavier Botelho, determina
que se regularize os portos do Tejo para daí se fazer remessas para os pontos
da costa de forma a aprovisionar mais facilmente as comarcas do interior como
Leiria ou Alcobaça. Estabelece-se que, de quinze em quinze dias, partiriam de
Lisboa embarcações carregadas com os géneros que as pessoas pudessem oferecer,
e que se dirigiriam aos portos de Peniche, S. Martinho e Figueira para levar
essa ajuda aos que dela precisavam. Noutro despacho, datado de 15 de Abril de
1811 (GAZETA DE LISBOA, nº 89, de 15
de Abril de 1811, Impressão Régia, Lisboa), declara-se que o Governo, procurando aliviar as calamidades causadas
pelo inimigo com a invasão das terras que ocupou, determinou a efetiva
distribuição pelo território do reino, de 1000 moios de grão a um preço
simbólico (1050 réis a metal cada alqueire), que deveriam ser embarcados para
dez pontos da costa. Ao porto de S. Martinho seriam enviados 120 moios de grão
para a comarca de Alcobaça, enquanto a comarca de Leiria teria direito a 230 moios
de grão que lhe chegaria por S. Pedro de Muel. No que toca apenas às rendas
atribuídas à Livraria ou Biblioteca, sabemos pelo respetivo Livro das Contas
que no ano de 1810, quando os Franceses ocupavam a região, o Mosteiro perdoou
ou declinou as rendas ordinárias que lhe eram devidos e alguns foros das
Quintas do Mosteiro; e que em 1811, perdoou metade das rendas ordinárias para,
no ano seguinte, 1812, escusar à cobrança um quarto das rendas ordinárias que
recebia, sendo depois disso cobrados normalmente esses rendimentos.
Com
a Revolução de 1820, o Mosteiro de Alcobaça entra num período delicado da sua
existência com os progressos dos liberais no sentido de abolir a estrutura
senhorial do reino a servir de estímulo para a contestação social crescente dos
direitos e foros que se encontravam fixados nos forais das vilas dos coutos. A
20 de Março de 1821 é publicado o decreto (COLLEÇÃO DA LEGISLAÇÃO MODERNA
PORTUGUESA, 1823, pp. 30-31) que, entre outras especificações, extingue todos
os serviços pessoais feitos pela própria pessoa ou com animais, fundados em
Foral (artigo 1.º) e igualmente, «todos os Direitos chamados Banaes que são os
de Fornos, Moinhos e Lagares de toda a qualidade» (artigo 2.º), obrigações e
prestações consistentes em frutos, dinheiro, aves ou cereais impostas aos habitantes
de qualquer povoação, ou distrito, a favor de algum Senhorio (artigo 3.º); e
finalmente, no Artigo 4.º, extingue-se «o Privilégio chamado de Relêgo, pelo
qual «a Coroa, Donatarios della, ou quaesquer outros agraciados, tinhão a venda
exclusiva dos Vinhos em certos meses do anno». A 5 de Junho de 1822, um novo
Decreto (COLLEÇÃO DA LEGISLAÇÃO MODERNA PORTUGUESA, Tomo II, 1823, pp. 34-38) determina
a reforma dos Forais «considerando que os foraes dados às diversas terras do
Reino nos primeiros tempos da Monarquia excessivamente oprimem a Agricultura,
tornando-se indispensável diminuir ao menos este gravame quanto seja possível e
prescrever regras certas, e claras, que substituão a confusão, e quasi infinita
variedade daquelles antigos títulos». Entre outras disposições (o decreto
compõem-se de 25 artigos diferentes), dita-se que as quotas incertas
estabelecidas por forais e os foros e pensões certas nelas contidas seriam
reduzidas a metade da sua vigente importância (Artigo 1.º), a suspensão dos
laudémios (Artigo 4.º), abrindo-se ainda a possibilidade do lavrador ou foreiro
proceder à remissão da pensão ou foro segundo condições estabelecidas no próprio
decreto (Artigo 18.º).
O
decreto de 1821 e o da reforma dos forais refletem-se de imediato no Livro das Contas da Livraria. No período
entre 1 de Maio de 1821 e o último dia de Abril do ano seguinte, o Mosteiro
apenas consegue receber os direitos de cinco das oito Quintas em que
habitualmente os cobrava, e apenas um dos foros costumeiros (o de uma azenha na
Mata da Torre), ficando os outros em dívida. Nos dois anos seguintes, o quadro
mantém-se nas suas linhas gerais.
A
situação financeira do Mosteiro sofre um grande impacto com estes dois
decretos, e na sessão das Cortes Constituintes, é apresentado um requerimento
dirigido à Comissão de Agricultura pelo Abade do Mosteiro de Alcobaça (DIÁRIO
DO GOVERNO, 1822, p. 1219), no qual este pede certas alterações na Lei dos Forais e
«expõe que ela reduz as rendas daquela Corporação ao mais lamentável estado, e
que finalmente ela tem por fim promover a anarquia entre os povos». Depois de
alguns debates, e seguindo a opinião da Comissão, o requerimento é indeferido,
e chega-se a ponderar a possibilidade do Abade ser repreendido nas Cortes por
denegrir a finalidade da Lei dos Forais.
A
«anarquia» mencionada pelo Abade traduz o clima de instabilidade e revolta que
se instalara nos coutos, com foreiros e Câmaras a desafiarem os quarteiros
enviados pelo Mosteiro para arrecadar os direitos e foros. A reação aos
decretos do vintismo vai proporcionar ao Mosteiro um novo alento e um último período
de prosperidade - o seu canto de cisne. A Carta de Lei de D. João VI de 4 de
Junho de 1824, publicada em suplemento na Gazeta de Lisboa do dia 5 desse mês
(GAZETA DE LISBOA, 1824, p. 625) revoga as leis e decretos da «monstruosa
Constituição de mil, oitocentos e vinte e dois», e restitui a vigência dos
forais tradicionais, mantendo no entanto suprimidos os Direitos Banais.
Precedido por diversas tentativas políticas e militares de conduzir D. Miguel
ao poder, este regressa do exílio e é aclamado rei a 23 de Junho de 1828, apressando-se
a contrariar o que fora implementado pelos liberais.
Para
o mosteiro e convento de Alcobaça, a opção era óbvia entre uma fação liberal
que era a antítese do seu domínio senhorial e dos seus privilégios, e um rei
contrarrevolucionário e tradicional na pessoa do qual os seus interesses ficariam
escudados. O apoio incondicional ao rei D. Miguel ficou claro no Auto de Preito
e Vassalagem que lhe consagraram, redigido a 9 de Outubro de 1831, onde, além
do próprio Abade, assinaram Frei Francisco de Castro, Secretário-geral da
Congregação; Frei Manuel de Morais, Visitador Geral; e Frei José de Mendonça,
Definidor.
Esse
compromisso sitiou os religiosos do Mosteiro após as vitórias liberais de 1833
e, sobretudo, a capitulação de Lisboa a 24 de Julho de 1833. Mesmo com a corte
de D. Miguel deslocada para Santarém, a causa sabia-se perdida e o desfecho
inevitável.
Narra
Manuel Vieira Natividade (NATIVIDADE, 1885): A primeira vez que os frades de Alcobaça abandonaram o mosteiro foi em
Julho de 1833. Voltaram depois, e essa fuga repetiu-se com pequenos intervalos
até princípios de Outubro em que um grito de alarme mais positivo os obrigou a
sair de vez (...) em 16 de Outubro de 1833 opera-se em Alcobaça um levantamento
liberal, destruindo de uma vez todas as dependências que havia dos senhores dos
coutos (...) Apossaram-se da livraria, das alfaias, das mobílias, de tudo o que
sem grande custo podiam levar, e senhores de tudo, destruíram, venderam,
inutilizaram. Foi um verdadeiro saque que durou onze dias sem que ninguém se
lhe opusesse, sem que ninguém lhe lembrasse que faziam um roubo às artes, às
ciências e ao Estado. Os soldados de uma divisão francesa que estava em
Peniche, e que acudiu aos gritos dos revoltosos, foram os que mais prejudicaram
o mosteiro. A livraria foi na maior parte dividida entre eles, sendo-lhes ainda
apreendidos nas Caldas muitos livros de grande importância.
Uma
narrativa aproximada é-nos dada por uma carta coletiva enviada ao redator do
jornal Nacional, e que integrou o
processo do Corregedor António Luís de Seabra (SEABRA, 1871, pp. 27-28): Os monges de S. Bernardo abandonaram o
convento em 26 de Julho de 1833; e só três meses depois, em 27 de Outubro
seguinte, deu entrada nesta vila o Corregedor António Luís de Seabra. Foi nesse
período que os povos dos coutos de Alcobaça e da serra vizinha, que odiavam nos
frades os seus opressores e viam neles a causa das perseguições políticas que o
governo de D. Miguel tinha por aqui exercido em larga escala, foi então,
repetimos, que os povos invadiram e talaram as ricas propriedades do mosteiro,
apoderando-se a seu bel-prazer dos móveis, alfaias e frutos que encontraram ao
abandono. Nestas correrias tomaram uma parte importante a guerrilha do Vasa, de
Santa Catarina, e uma força de franceses dos que estavam nesse tempo em Peniche.
Na
sua fuga em direção aos mosteiros cistercienses de Salzedas e Maceira Dão, os
monges haviam já levado consigo os livros que compunham o seu Cartório, e
aqueles ditos livros proibidos que se guardavam aos olhares dos comuns nos
gabinetes contíguos ao salão da Biblioteca; os livros do Cartório foram depois
apreendidos na Beira Alta pelo seu Prefeito (SEABRA, 1871, p. 16). O Auto de
Exame da Livraria de Alcobaça, de 15 de Novembro de 1834, confirma que se havia
recuperado os livros do Cartório, e que este havia sido achado no convento de
Maceira Dão (RASQUILHO, 2015).
Num
nosso artigo anterior (
O
trilho dos manuscritos do Mosteiro, de Fevereiro de 2015), delineamos o
caminho dos códices da Livraria a partir das alegações do Visconde de Seabra
(SEABRA, 1835; e SEABRA, 1871) e dos estudos sobre o tema do historiador Paulo
J. S. Barata (BARATA, 2003; e BARATA, 2004). Os manuscritos, descobertos pelo Corregedor interino de Alcobaça, António Luís de Seabra, num
esconderijo na sacristia da igreja do Valado dos Frades, são encaixotados e enviados para
Alfeizerão, onde o Corregedor os vai inventariar, antes dos 27 caixotes serem
fechados novamente e levados para o porto de S. Martinho para serem embarcados
para Lisboa. Um ofício de 24 de Abril de 1839 do Administrador do Concelho de
S. Martinho do Porto, dirigido ao Vice-Secretário da Comissão Administrativa do
depósito das Livrarias dos extintos Conventos, informa também da existência de
onze estantes que pertenciam à Livraria de Alcobaça e que estavam guardadas em
S. Martinho, no Armazém Nacional da Administração dos Pinhais Nacionais de
Leiria (NASCIMENTO, 1979, p. 280), provavelmente aguardando o embarque para a
capital.
Um
índice impresso dos manuscritos da Livraria, o Index Codicum Bibliothecae Alcobatie, sem nome de autor e impresso
em Lisboa, na Tipografia Régia no ano de 1775, recenseia e descreve na
Biblioteca do Mosteiro 476 códices diferentes. Essa cifra não é alcançada pelo
número de códices alcobacenses que sobreviveram em Lisboa: 456 na Biblioteca
Nacional de Portugal e 8 no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (NASCIMENTO,
1979). Dos doze códices em falta, alguns terão sido desencaminhados antes e
depois da partida dos monges de Alcobaça em 1833, mas alguns terão sido
simplesmente destruídos depois do saque do Mosteiro, como testemunha em
Alcobaça Manuel Vieira Natividade (NATIVIDADE, 1885): Folhas de pergaminho com lindíssimas iluminuras temos nós visto
dispersas, cortadas, e muitos livros manuscritos estupidamente mutilados.
Entre
os códices cuja natureza e localização foi estudada por Aires Augusto
Nascimento (NASCIMENTO, 1979, pp. 282-283), existe o caso exemplar de três grandes
volumes em pergaminho (Códices 350, 351 e 352) que constituíam uma versão das
obras de Flávio Josefo, compostos em fins do século XIII ou
princípios do XIV por um frade de Alcobaça, Frei Damião de Óbidos. Esses
volumes estavam desaparecidos da Biblioteca quando Frei Fortunato de S.
Boaventura compôs a sua Historia
Chronologica (S. BOAVENTURA, 1827, p. 60), e escreveu nessa mesma obra o
cronista: presumo que forão roubados pela
Divisão Franceza que incendiou o Mosteiro de Alcobaça. No seu estudo, Aires
Augusto Nascimento localizou essas obras perdidas no acervo do Museu Britânico,
ou seja, tinham sido levados, não pelos bárbaros franceses, mas pelos nossos
aliados na guerra peninsular; os mesmos que, nas memórias de um militar inglês,
William Grattan (GRATTAN, 1902 – a sua passagem por Alcobaça ocupa as páginas
43 a 46), se dá testemunho da sua conduta irrepreensível no teatro de guerra.
Sobre
os manuscritos, e sobre as obras impressas que se contavam em vinte e cinco milhares,
existem diversos dados, mas também algumas incertezas que se perfilam como
pontas soltas deste tema.
Um
dos testemunhos abonatórios da atuação de António Luís de Seabra (SEABRA, 1871,
p. 81) fala-nos de dois baús com manuscritos que presumivelmente, teriam sido
também encaminhados para Lisboa, mas na exposição transparece alguma incerteza
sobre essa asserção. Joaquim António de Carvalho, de Porto de Mós, disse que
havia sido confiado em tempos ao pai de Joaquim do Nascimento Pereira do Vale
(Escrivão da Fazenda do concelho de Alcobaça) por dois padres (frades?) dois
caixotes ou baús com coisas preciosas, e que ele, testemunha e um seu irmão,
espiaram o conteúdo dos baús e viram que continha «livros com capas de pergaminho,
alguns com folhas douradas, e manuscritos», havendo também aí «um instrumento
bem trabalhado com rodas de metal, cuja aplicação ele, Nascimento, não soube,
nem ninguém lhe pôde dizer e explicar, apesar da descrição que dele fez a
muitas pessoas». Os baús teriam sido entregues pelo pai de Joaquim do
Nascimento à autoridade constituída pelo governo constitucional, mas o tal misterioso
instrumento com rodas de metal, a testemunha voltou a encontrá-lo num lugar
inusitado, a casa do Escrivão do Juízo de Alcobaça, Joaquim Custódio Freire.
Sobre
os livros impressos, é-nos dito que «alguns soldados franceses venderão livros
nas Caldas e em Alfeizirão, [e] que uma grande cópia delles foi levada para
Peniche» e que «[se vira] as camas, colxas do convento,vendendo-se pela villa
de Obidos, Caldas, Peniche, e os livros da livraria vendiam-se em Lisboa» ( [SEABRA,
1835, p. 13 e p. 125). Por seu turno, António Vitorino da Fonseca Froes (tio de
Victorino de Avelar Froes), testemunha que viu «vender publicamente, pelos
soldados franceses e batalhão dos Polacos da Serra, livros pertencentes ao
mosteiro e que dali tinham furtado e que vendiam às cargas pelo insignificante
preço de um pataco» (SEABRA, 1875, p. 70).
O
governador da praça de Peniche, segundo informação de António Luís de Seabra,
tinha tratado de apreender e recolher os livros de Alcobaça que para ali tinham
sido levados (SEABRA, 1835, p. 33). É o que nos dá conta a Relação dos Livros, pertencentes ao Mosteiro de
Alcobaça, aprehendidos em Peniche que
ficarão em poder do juis de fora desta ultima villa (BNP, co-cx19), uma
relação que impressiona pela vastidão dos títulos, mas também pela sua
diversidade – livros religiosos, livros de viagens, biografias, tratados de
medicina…
Um
último reparo sobre o fim da livraria. Nas memórias do Dr. António Maria da
Silva Brilhante (BIOGRAPHIAS, 1877, p. 206), nascido em Alcobaça a 2 de
Fevereiro de 1821, e que Manuel Vieira Natividade diz ter sido o primeiro
médico homeopata do nosso país (NATIVIDADE, 1885), ele fala da extinta Livraria de
Alcobaça e surpreendentemente, de livros encaixotados a apodrecer sob as
abóbadas do Mosteiro. Cito o parágrafo sobre a Livraria: «Estava
avaliada em dois mil e quinhentos contos de réis. Eu não conheço maior sala em
todo o reino: quem for visitar a livraria do Convento de Jesus nesta cidade,
pode fazer ideia do molde. Lá está a casa, nua de livros, estantes e ornatos!
Haverá dois anos vi estes já pôdres, encaxotados e metidos debaixo das abóbadas
onde quizeram fazer a sala da exposição das Bellas Artes! E que Bellas Artes
estas!...».
Bibliografia:
BARATA, Paulo J. S., Os Livros e o
Liberalismo: da Livraria Conventual à Biblioteca Pública, edição da Biblioteca
Nacional de Portugal, Lisboa, 2003
BARATA, Paulo J. S. Roubos, Extravios e Descaminhos nas
Livrarias Conventuais Portuguesas após a Extinção das
Ordens Religiosas: um Quadro Impressivo, Revista Lusitânia Sacra, 2ª série,
nº 16, Lisboa, 2004.
BIOGRAPHIAS
DOS MUI DISTINCTOS E MUITISSIMOS MÉDICOS, OS SRS. DR. ANTÓNIO JOSÉ DE LIMA
LEITÃO E DR. ANTÓNIO MARIA DOS SANTOS BRILHANTE, Tipografia Universal,
Lisboa, 1877.
COLLEÇÃO
DA LEGISLAÇÃO MODERNA PORTUGUESA - Da instalaçção das Cortes Extraordinarias
e Constituintes em Diante, Legislação de 1821, Tomo I, pp. 30-31, Tipografia
Maigrense, Lisboa, 1823.
COLLEÇÃO
DA LEGISLAÇÃO MODERNA PORTUGUESA - Da instalaçção das Cortes
Extraordinarias e Constituintes em Diante, Legislação de 1822, Tomo II, pp. 30-31,
Tipografia Maigrense, Lisboa, 1823.
COSTA, António Carvalho da, Corografia portugueza e descripçam
topografica do famoso Reyno de Portugal, com as noticias das fundações das
cidades, villas, & lugares, que contem; varões illustres, gealogias das
familias nobres, fundações de conventos, catalogos dos Bispos, antiguidades,
maravilhas da natureza, edificios, & outras curiosas observaçoens, Tomo I, Lisboa, officina de Valentim da Costa
Deslandes, 1706.
DIÁRIO
DO GOVERNO, n. 168, p. 1219, de 19 de Julho de 1822, Lisboa
GAZETA
DE LISBOA, n.º 133, de 5 de Junho de 1824, Impressão Régia, Lisboa
GRATTAN, William, Adventures with the Connaught Rangers
(1809-1814), Edward Arnold, London, 1902. (versão eletrónica em
https://archive.org/details/adventureswithc01omangoog).
INDEX
CODICUM BIBLIOTHECAE ALCOBATIE, Lisboa, na Tipografia Régia, 1775.
NASCIMENTO, Aires Augusto, Em busca dos códices alcobacenses perdidos,
revista Didaskalia, volume IX, pp.
279-288, Lisboa, 1979.
NATIVIDADE, Manuel Vieira, O
Mosteiro de Alcobaça - notas históricas, Coimbra, Imprensa Progresso, 1885.
RASQUILHO, Rui (2015), “As três
Bibliotecas do Mosteiro de Alcobaça”, in Caderno
de Estudos Leirienses, Textiverso, Leiria, 2015.
RELAÇÃO
DOS LIVROS, PERTENCENTES AO MOSTEIRO DE ALCOBAÇA, APREHENDIDOS EM PENICHE, QUE
FICARÃO EM PODER DO JUIS DE FORA DESTA ULTIMA VILLA, Alcobaça, 11 de Abril
de 1834 (BNP, co-cx19). Versão eletrónica no endereço http://purl.pt/27233, visitado pela última vez em 3 de Agosto de
2016.
S. BOAVENTURA, Fr. Fortunato de,
Historia Chronologica e Critica da Real Abbadia de Alcobaça da Congregação
Cisterciense de Portugal para servir de continuação à Alcobaça Illustrada do
chronista Fr.Manoel dos Santos, Lisboa, Impressão Régia, 1827.
SEABRA, António Luís de, Observações
do ex-corregedor de Alcobaça sobre um papel enviado à Camara dos Senhores
Deputados a cerca da arrecadação dos bens do mosteiro daquella villa, Typographia
de Eugenio Augusto, Lisboa, 1835.
SEABRA, António Luís de, Resposta do Visconde de Seabra aos seus
calumniadores, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1871.