Alfeizerão e o mar – os navios
Na carta régia de 1493 cujo resumo
aqui transcrevemos, mencionava-se a construção em Alfeizerão de quatro navios
no espaço de quatro anos, navios que se destinavam à armada D’El Rei. Esta
carta régia surge em confirmação de outra de teor semelhante de D. Afonso V,
dada quase quarenta anos antes.
O que documentos como este nos
transmitem sobre Alfeizerão, é que existia aí uma intensa construção naval,
iniciada pelo menos no século XIV, já que D. Afonso IV mandara construir aí as
suas galés (GONÇALVES, Iria; e SILVA, Manuela Santos, São Martinho do Porto e a
Lagoa de Alfeizerão na Idade Média, in A Baía de S. Martinho do Porto –
Aspectos Geográficos e Históricos, Edições Colibri/Associação de Defesa do
Ambiente de São Martinho do Porto, Lisboa, 2005). Segundo estas autoras, foi
nos séculos XV e XVI que os estaleiros de Alfeizerão laboraram no seu máximo, e
acrescentam: A atividade do estaleiro
envolvia toda a população. Havia trabalho para todos, desde os que se aplicavam
diretamente na construção do barco, aos que aprontavam e transportavam para o
local os materiais a empregar, sobretudo a madeira; aos que vendiam,
confecionavam e acarretavam os alimentos e tudo o mais que o viver quotidiano
necessita; aos que se viam obrigados a alojar os armadores, por vezes grandes
potentados, que se faziam acompanhar de grandes séquitos e se demoravam bem
mais tempo do que os locais desejariam.
Nestas empreitadas de construção de
navios, alguns seriam construídos aí de fio a pavio com os homens, materiais e
meios que aí existiam, noutros, o barco era posto de pé com os arrais,
calafates e carpinteiros enviados para o local, tal como sucedeu com as
galés mandadas construir por D. Afonso IV. O foral da vizinha Salir da Foz
serve-nos, uma vez mais, como referência, agora, para perceber como se
articulava essa atividade: E assy se
pagará dos navyos que homeens de fora hy comprarem e tirarem dizima da vallia
que custou. E assy se pagará do navyo que se hy fizer per homens de fora e se
tirar. Do qual se descontará tanta parte da dizima quanta teverem pago de
portagem da madeyra, ferro e cousas que se pera ho fazimento delle trouxerem. E
da madeyra outra que nom seja lavrada de torno, se levara por carga a dous
Reaes. E por carretada a quatro Reaes (L. F. Carvalho DIAS, v.
Bibliografia).
Os dados transmitidos por esse
foral são enriquecidos por um documento de 1478 publicado por Laranjo Coelho
(v. Bibliog.) que nos fala precisamente de um requerimento ao rei D. Afonso V feito pelos carpinteiros dos estaleiros da Pederneira, Salir e Alfeizerão:
Faço saber a quantos este meu
alvara virem que os carpinteiros das vilas da Pederneira, Salir e Alfeizeram
sse agravaram a mym dizendo que ora novamente sam constrangidos que paguem sisa
das empreitadas que tomam dalgumas pessoas pera lhe fazerem navyos de toda a
sorte segundo se com eles concertam pera lhos darem acabados: a saber : brancos
no estaleiro e pretos na aguoa o que nunca atee ora pagaram. Pedindo me que
nello lhe ouvesse remedio e visto em seu rreuquerimento. A mym apraz que posto
que seja achado que per direito eles deuem de pagar tal sisa, que eles seiam
della escusados e rreleuados daqui em diante em quamto minha mercee for e nesto
se nam emtenda algum direito seo acerca dello teueram os rrendeiros que foram o
anno passado de myl e quatroçentos e setenta e sete anos e este presente de
satenta e oyto. E porem mando a todollos meus ofiçiaaes e pessoas a que o
conhecimento desto pertencer que nam costramgam nem mandem constranger os ditos
carpinteiros pella dita sisa daqui em diante em quanto mjnha mercee for como
dito he nem lhe façam nem conssentam por elle fazer nem huum nojo nem sem
rrezam porque assij ho ey por bem ficando aos sobre ditos rrendeiros
rresguardado sseu direito pela guisa sobre dita sem outra duvjda nem embarguo
alguum. Ffeito em a mjnha Çidade de Lisboa a dous dias do mês de Janeiro. Johan
da Fonsseca a fez anno de mjll e quatroçentos e satenta e oyto anos
(Arquivo Nacional da Torre do
Tombo, Estremadura, liv 7º, fl. 109)
A distinção entre
navios brancos e
navios negros merece uma anotação, que já se infere do texto. Os
dois termos indicam o estado em que a empreitada era dada como concluída, em função da encomenda que lhe dera origem.
Navios
brancos, designava o barco depois de construído, com as suas cobertas e
costados pregados; o
navio negro, o
barco pronto a ser colocado na água: depois de isoladas uma ou duas vezes com
estopa todas as fendas no tabuado, o barco era chamuscado, e dava-se algumas
demãos de breu, dai o termo «negro». Isto constituía a fase de calafetagem do
navio e é descrita com minúcia no
Ars Nautica, ou
Livro da Fábrica das Naus, tratado escrito em
latim pelo padre Fernando Oliveira e publicado em 1580. Servimo-nos do estudo sobre esse tratado
realizado por Filipe Vieira de CASTRO (
O
Livro da Fábrica das Naus no contexto da construção naval oceânica do século
XVI, documento eletrónico disponível em:
http://nautarch.tamu.edu/shiplab/00-pdf/Castro%202010%20-%20Fernando%20Oliveira%20491-522.pdf, consulta mais recente a 24/09/2015).
Um dos temas recorrentes sobre os
estaleiros que laboravam na Lagoa de Salir é a feitura das naus que o malogrado
rei D. Sebastião levou para o Norte de África. É repetido, autor após autor,
que a maior parte delas foi construída em São Martinho do Porto, enquanto a
Dra. Paula Lourenço (São Martinho do
Porto na Época Moderna, v. Bibliog.) regista a seguinte reflexão: é plausível que a maior parte das naus de
guerra, que partiram para a Índia e tantas outras que acompanharam D. Sebastião
a terras do Norte de África, em 1578, tenham sido construídas em Alfeizerão e
na Pederneira.
Fernando Castelo-Branco, num
trabalho histórico incontornável sobre a enseada de S. Martinho (Os Portos da Enseada de S. Martinho e o seu
tráfego através dos tempos), relativiza essa tradição, que parece apoiada
em autores novecentistas, contrapondo uma outra fonte, o historiador José Maria
de Queirós Veloso, que escreveu em 1935 que as embarcações da expedição de D. Sebastião
haviam sido requisitadas em portos do
reino, ou fretadas no estrangeiro.
Algo de semelhante encontramos nós
na Crónica D’El-Rei D. Sebastião,
escrita em finais do século XVI por Fr. Bernardo da Cruz (o destaque no texto é nosso):
(...)
e o porto cheio de naus, umas
d'armada d'El-Rei, outras de fidalgos particulares que faziam prestes pera suas
pessoas, gente e mantimentos, outra grande quantidade de caravelas e barcos,
para cavalos, palha e lenha, excepto outras muitas embarcações que El-Rei tinha
mandado aparelhar aos portos do Algarve, para passar a gente d'Alentejo, de que
era coronel Francisco de Távora, com outros muitos fidalgos e homens honrados,
que lá mandavam aviar suas embarcações, por dali estarem mais acomodados a seu
modo. Da mesma maneira, no porto de Aveiro e outras partes do reino, estavam
navios aviando-se com gente e munições, os quais se haviam de ajuntar em África
debaixo da bandeira de Dom Diogo de Sousa.
Alfeizerão
e o mar – os nautas
Na suposição de que esses documentos existam, inéditos ou por estudar, são escassos os documentos
publicados sobre o porto de Alfeizerão (a mesma lacuna para os primeiros
séculos do porto medieval de São Martinho), mas o pouco que existe permite determinar
que se encontrava ligado por um comércio de cabotagem a Lisboa e à Galiza, e
que a madeira e o sal eram os principais produtos que por ele saíam. A
circunstância do porto figurar nos roteiros publicados em Itália é uma indicação
mais ou menos segura de que constituía uma escala para os barcos estrangeiros
que comerciavam na nossa costa. Refiro-me concretamente ao
Portolano per tutti i naveganti de Bernardino Rizzo (1490), que
recentemente aqui tratei, e a um outro do ano de 1578 do geógrafo italiano
Giovanni
Lorenzo d’Anania.
A Doutora Iria Gonçalves (O Património do Mosteiro de Alcobaça nos
séculos XIV e XV), assinala a entrada em Alfeizerão de consideráveis
quantidades de ferro, que era encaminhado para o Mosteiro. João Afonso, alcaide
de Alfeizerão, registou a entrada de setenta quintais de ferro num período de
quatro anos (1436 a 1440). Havendo incertezas sobre a proveniência desse metal,
como sublinha a investigadora, pesa grandemente a possibilidade dele ter
entrado pelo porto de Alfeizerão.
Sobre o sal, há uma referência
registada em Alcobaça – a de que, no ano de 1443, Garcia Pires, de Alfeizerão,
ficou por fiador de Afonso de Panjam, para pagar por ele a dízima de um navio
de sal que carregou em Alfeizerão (Livro
de Privilégios, Jurisdições, Sentenças, Igrejas deste Real Mosteiro de Santa
Maria de Alcobaça, Direção Geral de Arquivos/TT, Ordem de Cister, Mosteiro
de Santa Maria de Alcobaça, liv. 92).). António José Sarmento que menciona o mesmo documento, diz que o mercador era
oriundo de Baiona, porto da Galiza.
No respeitante à saída de madeira
por esse porto, para além da referência no Portolano
de Bernardino Rizzo, temos duas formosas
indicações documentais, ambas do reinado de D. Fernando,
.
Segundo Gama Barros (História da Administração Pública em
Portugal…, volume X), o Foral da Portagem de Lisboa, de 5 de Outubro de
1377 integrava uma pauta das mercadorias do reino sobre as quais o Estado
cobrava direitos de entrada e saída pelo porto de Lisboa, indicando-se a sua
proveniência e natureza. Entre elas, regista-se, e a citação não é fortuita, que
D’Alcaçar [Alcácer do Sal], pela foz, traziam mel, azeite, coiros vaccaris,
cera, sebo e unto, trigo e outros cereais, farinha, peles de coelho, cordovão,
baldreosas, badanas, vinho e sal. E sobre as madeiras, que Alcobaça, Alfeizerão, Leiria e Torres Vedras
mandavam madeiras.
A segunda referência às madeiras de
Alfeizerão, é assim enquadrada por Virgínia Rau (Estudos sobre a História do Sal Português, página 114):
Por
essa época, uma intensa cabotagem ligava os portos de Setúbal, Alcácer e
Lisboa, andando continuadamente os seus respectivos baixéis e pinaças a
acarretar pão de Alcácer, porto de saída dos campos cerealíferos do Alentejo,
até à capital; como os oficiais del-rei tomassem «estes naujos tãães pera hirem
per madeira a Alfeizerõ e pera hirem a outros lugares», reclamou a cidade de
Lisboa, invocando a míngua de pão, e D. Fernando, por carta de 28 de Dezembro
de 1380, houve por bem ordenar que tais navios não fossem tomados nem
embargados para qualquer coisa enquanto andassem no transporte do pão.
Bibliografia:
BARROS, Henrique da Gama, História da Administração Pública em Portugal, Tomo X, capítulo IV,
2ª edição, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa.
CASTELO-BRANCO, Fernando,
Os Portos da Enseada de S. Martinho e o seu tráfego através dos tempos,
Separata dos Anais da Academia Portuguesa
de História, II Série, Volume XXIII, tomo I, Lisboa, 1975.
COELHO, Possidónio Mateus Laranjo, A Pederneira – Apontamentos para a História dos seus mareantes,
pescadores, calafates e das suas construções navais nos séculos XV a XVII,
Separata do volume XXV de O Archeologo
Português, Imprensa Nacional de Lisboa, 1924.
DIAS, Luís Fernando Carvalho, Forais manuelinos do reino de Portugal e do Algarve: conforme o
exemplar do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tomo 3 - Estremadura,
edição do autor, Beja, 1962.
GONÇALVES, Iria, O
Património do Mosteiro de Alcobaça nos séculos XIV e XV, Universidade Nova
de Lisboa – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Lisboa, 1989.
GONÇALVES, Iria; e SILVA, Manuela Santos, São Martinho do Porto e a Lagoa de
Alfeizerão na Idade Média,
in A Baía de S. Martinho do Porto –
Aspectos Geográficos e Históricos, Edições Colibri/Associação de Defesa do
Ambiente de São Martinho do Porto, Lisboa, 2005.
LOURENÇO, Paula, São
Martinho do Porto na Época Moderna, in A
Baía de S. Martinho do Porto – Aspectos Geográficos e Históricos, Edições
Colibri/Associação de Defesa do Ambiente de São Martinho do Porto, Lisboa, 2005.
RAU, Virgínia, Estudos sobre a História do Sal Português, página
114, Editorial Presença, Lisboa, 1984