quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Domingas Maria

 


A presença dos soldados napoleónicos na região de Alcobaça no último mês de 1810 e ao longo do primeiro trimestre de 1811 traduziu-se por uma verdadeira mortandade originada pela fome, pela doença e por mortes causadas diretamente pelo invasor. O facto de muitos párocos terem procurado abrigo em Lisboa e em outros redutos protegidos, como lhes fora superiormente ordenado, obsta a que tenhamos um conhecimento rigoroso dessa tragédia, ressalvando-se parcialmente para tal os minuciosos registos paroquiais de óbito das freguesias de Alfeizerão e, sobretudo, de Pataias.

Nas outras paróquias da região, há casos em que os registos paroquiais sofrem um interregno ao tempo da presença do invasor ou são lavrados na ocasião ou posteriormente e em retrospetiva, com alguns assentos pontuais a assinalar as tragédias desse período. Como exemplo, transcrevemos o único assento paroquial explícito na freguesia de São Sebastião do Vimeiro:

 

<Gaio, Domingas Maria>

Aos doze dias do Mez de Março de mil e oito centos e onze se deu a sepultura a Domingas Maria, Solteira, do Gaio, dentro do Alpendre desta Igreja de S. Sebastião do Vimeiro, foi morta pellos Francezes; sem Sacramentos. E para constar fiz este Assento. Mez, e Era ut supra.

O Vigário Francisco da Silva Rebello

 

(ADLRA, IV/26/C/58 – Registos de óbito da freguesia do Vimeiro: 1760-1860, f. 125r)

segunda-feira, 10 de julho de 2023

O diplomata Adelino António Ferreira

       Adelino António Ferreira, proprietário da Quinta dos Casais em Alfeizerão e empresário de visão, foi um diplomata ao serviço de Portugal, de cuja carreira encontramos algumas referências esparsas em publicações, como o seu trabalho como embaixador de Portugal na Tailândia, ou a sua viagem a Brighton, na costa sul de Inglaterra, no âmbito de uma representação diplomática do Estado português.

       A nossa nota de hoje é sobre mais uma menção ao trabalho do diplomata, desta feita como Cônsul de Portugal em Belém do Pará, no Brasil, no ano de 1907.

 


(Fonte: "Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro e Indicador para 1907”, p. 468, 1907, Companhia Typographica do Brazil, Rio de Janeiro)

quinta-feira, 2 de março de 2023

O desaparecido Pelourinho de São Martinho do Porto - algumas variáveis num tema com muitas certezas


 Não pode haver conhecimentos esconsos, nem intenções dúbias. 

A cultura e o património cultural são tesouros 
a zelar e a acrescentar por todos; 
e isso é o mínimo que o futuro espera de nós.
(Michel Parent, antigo especialista da Unesco)

1 – O que nos contam os textos
     O pelourinho de São Martinho do Porto, erguido como símbolo de autonomia concelhia reconhecida pelo Foral Novo do rei D. Manuel I, foi mantido como tal durante quatrocentos anos, como um marco de pedra que mostrava orgulhosamente que a vila possuía Câmara própria e alguma autonomia jurídica e administrativa.
     Com o fim da Guerra Civil e a derrota dos absolutistas no século XIX, as instituições do antigo regime tornaram-se suspeitas e ominosas, sobretudo os seus símbolos mais tangíveis, os castelos, conventos e pelourinhos – todos reduzidos à expressão mínima e negra de lugares de opressão e dor. A reação começou logo em 1834, no ano do triunfo dos liberais, quando, nas palavras do visconde de Juromenha, para imitar a revolução de França, se arrancaram os braços de ferro a alguns Pelourinhos com o fim de apagar a memória do seu antigo destino (apud BRAGA, 1985) [1].
     Em Alcobaça, estes ventos de mudança fustigam a herança cultural da comunidade na secularização dos espaços interiores do Mosteiro abandonado pelos monges, e nas deliberações e iniciativas das vereações liberais da Câmara de Alcobaça. É arrematada a demolição de muros do castelo de Alcobaça para a obtenção de pedra para a construção de casas (com o pretexto do seu estado de ruína ser um perigo para quem caminhava junto aos seus panos de muralha), e alguns pelourinhos do concelho são visados também como um mero recurso para a obtenção de pedra, como foi o caso dos pelourinhos de Alcobaça, Évora, Alfeizerão e São Martinho do Porto.
      Em acta de 26 de Novembro de 1866 da reunião da Câmara de Alcobaça, pode ler-se: Foi outrossim determinado sob proposta do senhor vereador Couto que a deliberação tomada a respeito do Pelourinho de Alcobaça [que decidia a sua demolição] compreendesse também o da antiga vila de S. Martinho do Porto, e que no caso de não haver concorrentes em praça que arrematassem a sua demolição, seja a mesma feita por conta da respetiva Junta de Paróquia, a qual poderá aproveitar-se da pedra que do mesmo Pelourinho se extrair para a empregar como lhe convier em benefício público [2].
     Mas o pelourinho de São Martinho não cumpriu liminarmente o funesto destino que este documento deixava antever. O que fizeram dele foi contado, com a mesma subtil e quase diáfana mordacidade que nos transmite a leitura dos seus contos, por Fernando Perfeito de Magalhães Vilas-Boas.
     Como já aqui deixamos registado, num artigo sobre Fernando Perfeito de Magalhães e o seu irmão Francisco, o primeiro foi um arquiteto de obra prolífica, escritor e aguarelista. Testemunhou sobre ele, neste particular, o seu amigo João Saldanha de Oliveira e Sousa: O nosso prezado amigo, artista de raça e investigador incansável, Sr. Fernando Perfeito de Magalhães Vilas Boas, andou por Portugal durante seis anos a fixar em aguarelas os pelourinhos ainda existentes. Estas suas 190 aguarelas lá estiveram expostas em Lisboa e constituem preciosa coleção que bem merece ser adquirida pelo Estado [3].

Figura 1:
Pelourinho de Aljubarrota
Imagem da aguarela de Fernando Perfeito de Magalhães

     Essas aguarelas (num total de 225) foram finalmente reunidas num (belíssimo) livro publicado pelas Edições Inapa em 1991, com texto complementar de Vasco da Costa Salema [4]. Sobre o pelourinho de São Martinho do Porto, a obra reproduz, não a aguarela, que não existia, mas o comentário escrito em 1955 que lhe dedicou Fernando Perfeito de Magalhães (o destaque a negrito é nosso):
Este pelourinho de S. Martinho do Porto tem uma história pitoresca. Estava ereto no largo da vila, fronteiro à igreja, onde se fazia o mercado. Como porém fizeram obras de canalização de água para um chafariz público e o Pelourinho estorvava as obras, apearam-no, e eis que o seu fuste veio parar a outro Largo que existe na parte baixa da vila, intitulado Largo de Victorino Froes, e ali permaneceu, deitado no chão, arrumado a um canto, até que tendo este lavrador e ganadeiro, necessidade de construir um esteio para fazer uma sebe divisória no seu campo, chamado Campo do Sul, na várzea onde criava o seu gado bravo, o utilizou para esse fim, levando-o para lá. Ali permaneceu, não sei quanto tempo, não se livrando talvez de apanhar fartas marradas e até teria feito algumas pegas de cara! Passado tempo, tornou a voltar à sua antiga cama, no largo Victorino Froes. Um empreiteiro que levantava um andar sobre uma casa térrea, junto a esse largo, topando com aquele esteio ou coluna ali abandonado, lançou mão dele e utilizou-o como sólido sustentáculo do vigamento superior do pavimento. Como o andar da casa térrea era e é uma farmácia, nada mais lógico local para aquele infeliz fuste de Pelourinho, depois de ter sofrido tanto dinamismo cruel para quem tinha sido criado para viver estático por séculos sem fim. Será pois muito difícil tirá-lo da farmácia, pois é bem fornecida de drogas, tão necessárias àquele infeliz que creio que será ele a não querer abandonar aquele curativo refúgio, pois com tantos dinamismos tenha perdido a cabeça, o desgraçado.

 

2 – Questões levantadas pelos textos

     A casa do Largo Vitorino Fróis onde o fuste ou coluna foi usado como viga de sustentação do primeiro andar, ainda existe, faz esquina entre a Calçada da Glória e a Rua Dr. Rafael Gagliardini Graça. Foi, nesse tempo, Farmácia, depois Drogaria, e mantém-se na posse de privados como casa de habitação, ao que parece, sazonal.
     Nessa casa, segundo a tradição oral e fonte documental que me foi facultada (Relatório de José da Conceição Vaz, Agente Técnico de Engenharia de 3.ª Classe com a data de 18 de Agosto de 1956, ficheiro ref.ª TXT. 00372144 do SIPA - Sistema de Informação para o Património Arquitetónico), existe um pilar no pátio dessa casa, que se vê da rua, e que sustenta o telheiro, por todos apontado como o fuste do pelourinho desaparecido. O referido pilar (Figura 2) não é desprovido de graça, sendo de pedra trabalhada e com aquela respeitável pátina alaranjada da pedra vetusta, mas não é, cremos, o fuste do pelourinho (suposição nossa, frisemos). Este pilar semelha uma coluna intacta e inteira, pouco adequada, diz-nos o bom-senso, para ter sido aproveitada numa cerca para gado na quinta do Fróis, além dos ecos residuais da presença do pelourinho na quinta concordarem numa alusão plural: "fragmentos do pelourinho".
Figura 2:
O pilar no pátio da casa do Largo Vitorino Fróis
- um (pobre) esboço nosso -
     
    Inicialmente, o pelourinho situava-se na parte alta da vila, a sua zona antiga, no modesto largo em forma de lágrima em que desemboca a rua José Bento da Silva, próximo aos Paços do Concelho e à capela de Nossa Senhora do Livramento. O chafariz público em nome do qual o apearam para fazer uma conduta de água, é a Fonte da Praça [5], virada para a Calçada de D. Pedro V, que foi remodelado pela Junta da Paróquia no ano de 1888, data coerente com o período em que surgem as disposições da Câmara Municipal de Alcobaça (de 1866) para se alienar o monumento e vender ou utilizar a pedra que dele se obtivesse.
     O fuste do pelourinho apeado foi deixado por algum tempo no Largo Vitorino Fróis, depois levado para a quinta do ganadeiro e finalmente empregue na dita casa após o regresso. O relato do arquiteto e aguarelista só nos dá conta do fuste, não sabemos se como uma peça monolítica, se segmentado em duas metades quando o desmontaram (o que é sugerido pelo seu uso numa sebe ou cerca). Era o seu elemento mais alienável, como se comprovou (cerca, coluna de casa), e a sua presença no Largo cá em baixo pode corresponder a uma tentativa da Junta de Paróquia de o vender.
     A parte superior do pelourinho, com o remate e o capitel, que era muitas vezes o seu elemento mais decorativo e artístico, terá ficado para trás. É tradição local, ouvida a várias pessoas, que essa parte do pelourinho teria estado durante algum tempo no espaço que ainda recordamos como o antigo "Jardim dos Macacos", onde se situava o Posto de Turismo da vila e existia um parque infantil sombreado por vigorosos plátanos, uma zona plana no sopé da encosta onde se ergue o Chalé das Palmeiras, indissociável da vida do ganadeiro de Alfeizerão. Depois, se esse rumor for fundamentado, a pedra desapareceu da vista e da memória de muitas pessoas.
     Quando João Saldanha de Oliveira e Sousa escreveu em 1949 [6] sobre o pelourinho de Alfeizerão, informou que constava aí que havia fragmentos do pelourinho (que se supunha ser do de Alfeizerão) numa quinta próxima, sabendo nós que a quase totalidade dos fragmentos do pelourinho de Alfeizerão sempre andaram por perto da sua igreja matriz, no adro e na entrada do cemitério. E isto é escrito numa altura em que o fuste do pelourinho de S. Martinho já “entrara ao serviço” na antiga farmácia da vila. 

3 – O desenho de João Santos
     Numa obra sobre São Martinho publicada no ano de 2000 [8], o autor, João Nunes dos Santos, fazia uma descrição do antigo pelourinho de São Martinho, baseada decerto naquilo que a tradição recordava dele:
     O Pelourinho consistia numa forte coluna de pedra com formato oitavado assente numa plataforma com três degraus, sendo rematado por uma figura de frade defronte de uma cruz, decerto a Cruz de Cristo, muito usada nas velas dos barcos portugueses daquele tempo.
     Na mesma obra, apresenta-se, com estes elementos, uma reconstituição gráfica do Pelourinho, no qual se procura representar o formato oitavado do fuste ou coluna, distinta do fuste com caneluras de secção cilíndrica que podemos admirar na casa da antiga farmácia (Fig. 2):


     A plataforma de três degraus (quadrados neste caso) é comum nos pelourinhos manuelinos, pelo que envidaremos considerações mais desenvolvidas a outros detalhes deste desenho do pelourinho.

3.1. O fuste oitavado
     Existem diversos pelourinhos manuelinos com a coluna de fuste oitavado ou de fuste prismático octogonal. Alguns, são mais alongados, como no pelourinho de Almendra, outros mais baixos e entroncados, como são os casos dos pelourinhos de Idanha-a-Velha e Trofa. O pelourinho de São Martinho do Porto parece aproximar-se destes últimos, a julgar pelo desenho, e pela descrição de João Santos, que fala de uma forte coluna de pedra.
Figura 4
Os pelourinhos manuelinos e de fuste oitavado de Almendra (1), Idanha-a-Velha (2) e Trofa (3)

3.2. A figura do frade (ou abade)
     O motivo de um frade ou abade no capitel do pelourinho é plausível e coerente. Nas vilas dos coutos de Alcobaça, seria de esperar que a simbologia dos pelourinhos manuelinos geminasse os símbolos óbvios do rei, como a esfera armilar ou o escudo das quinas, com símbolos da vila que fora agraciada com o foral, ou do mosteiro que a administrava soberanamente. No pelourinho de Turquel, onde já se quis ver a representação do abade na figura humana do seu topo que enverga um hábito, essa figura humana que será, provavelmente, a Nossa Senhora da Conceição, retrata o orago da terra, a sua dedicação religiosa. No pelourinho da Cela Nova, o remate apresenta as armas do Abade Geral de Alcobaça e a esfera armilar de D. Manuel [9]. No pelourinho de Aljubarrota, a duplicidade dos signos é mais óbvia: no capitel do pelourinho, podemos admirar a esfera armilar e as armas de Portugal cobertas pelo chapéu abacial.
     Se o pelourinho de São Martinho exibia a figura do abade que detinha a jurisdição sobre a vila, esta não deveria divergir muito, no estilo, da controversa figura humana do pelourinho de Turquel.

3.3. A Cruz de Cristo
     A Cruz de Cristo era um dos símbolos privilegiados do rei D. Manuel I. Por dois motivos principais: porque ficara associada à nossa expansão marítima e porque o próprio D. Manuel foi Grão-Mestre e governador da Ordem de Cristo, título que levou muito a sério, empreendendo profundas modificações e obras no Convento de Cristo em Tomar.
     A Cruz de Cristo, enquanto símbolo manuelino, pode ser admirada, na região, na igreja matriz de Évora de Alcobaça, onde coroa uma representação da esfera armilar, e no convento cisterciense feminino de Cós, esculpida na porta de acesso ao coro (MARQUES, 2006).
     Como motivo heráldico do capitel existem vários exemplos por esse país fora; como é o caso dos pelourinhos de Salvaterra do Extremo, Folgosinho, Vila Velha de Ródão, Proença-a-Velha, ou Redinha (Pombal); alguns deles, erguidos em territórios pertencentes a essa Ordem. A Cruz de Cristo no pelourinho que tratamos adequa-se à qualidade D. Manuel como Grão Mestre da Ordem e, cumulativamente, à natureza portuária e de construção naval da vila de S. Martinho - o mesmo símbolo cruciforme ornava as velas das caravelas e outras naves que arrostavam as vagas do oceano.

3.4. A forma do remate e do capitel. A incógnita.
     A principal lacuna da descrição e do desenho de João Santos, que dificultam uma futura recriação do pelourinho em pedra (de preferência, com algum elemento arquitetónico original), é não sabermos como ele terminava no alto. João Santos escreve que a Cruz de Cristo e a figura do abade rematavam o pelourinho, mas isso não parece suficiente. Os dois motivos requerem a existência de um remate e um capitel (em formato de pinha? Tronco-cónico piramidal?) em cujas faces estivessem esculpidos esses símbolos. Precisar qual seria a sua forma, é um desafio de difícil superação. Um dos pelourinhos de fuste oitavado que existem, e que ostenta também a Cruz de Cristo, o pelourinho de Salvaterra do Extremo, é assim descrito por Eurico B. de Ataíde Malafaia, na obra mais completa que existe sobre o tema [10]:
Sobre soco moderno, de três degraus quadangulares de aresta, assenta o conjunto da base, coluna, capitel e remate, de clara tipologia manuelina. A base da coluna é oitavada, de faces ligeiramente côncavas, e decoradas com pequena rosetas. Nela encaixa o fuste, liso e de secção octogonal, encimado por capitel oitavado, molduras salientes na zona inferior e no topo. As faces do capitel são decoradas com rosetas e botões lisos. O remate é constituído por um prisma oitavado de boas dimensões, cujas faces alternadas apresentam relevos heráldicos, nomeadamente um escudo nacional coroado, uma esfera armilar, uma cruz da Ordem de Cristo, e possivelmente uma cruz da Ordem de Avis. O pelourinho é finalmente coroado por pirâmide oitavada de topo truncado, com faces ornadas de séries verticais de três botões, de tamanhos decrescentes.




Notas:
[1] BRAGA, Teófilo, O Povo Português nos seus Costumes, Crenças e Tradições, volume I, reedição das Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1985

[2] VILLA NOVA, Bernardo de, Alcobaça através do Arquivo da sua Câmara Municipal (1836-1902), página 31, edição da Câmara Municipal de Alcobaça, Alcobaça, 1940.

[3] SOUSA, João Saldanha Oliveira e, Pelourinhos do distrito de Leiria: tese apresentada ao 2º Congresso das Atividades do Distrito de Leiria / João Saldanha Oliveira e Sousa. Separata de: Segundo Congresso das Atividades  do Distrito de Leiria. Reedição da Fundação António Vieira Rodrigues/Mosteiro de Alcobaça, 2007.

No distrito de Leiria, Fernando Perfeito de Magalhães aguarelou treze pelourinhos, observando João Saldanha Oliveira e Sousa que não seria difícil aumentar esse número: porque é fácil erguer de novo pelo modelo antigo, os pelourinhos de Alcobaça, Caldas da Rainha e São Martinho do Porto, sendo talvez também possível restaurar o de Alfeizerão e o da Pederneira.

[4] MAGALHÃES, Fernando Perfeito de, e SALEMA, Vasco da Costa, Pelourinhos Portugueses, Edições Inapa, Lisboa, 1991.

[5] Lê-se na placa do chafariz:
LEGADO, COMMENDADOR JOSÉ BENTO
SUBSIDIO MUNICIPAL E
SUBSCRIPÇÃO PUBLICA
EXECUTADA PELA JUNTA DE PAROCHIA
1888

[6] No jornal O Alcoa de 20 de Outubro de 1949. Citamos esta adição do Marquês ao tema na nossa publicação sobre o pelourinho de Alfeizerão.

[7] Ainda hoje persiste esse (infeliz) hábito retintamente português de ornamentar os jardins com pedras lavradas que se foi “achar” em algum edifício em ruínas ou ao abandono, de função religiosa ou secular.

[8] SANTOS, João Nunes dos, São Martinho do Porto. Apontamentos para a sua História, Edição Samartinho, São Martinho do Porto, 2000.

[9] MARQUES, Maria Zulmira Albuquerque Furtado, O Manuelino no Mosteiro e nos Coutos de Alcobaça, Tipografia Alcobacense, Alcobaça, 2006,    

[10] PELOURINHOS PORTUGUESES – Tentâmen de Inventário Geral, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa, 1997.




José Lopes Coutinho
(e-mail: joseduardol@gmail.com)

Nota: O texto original deste apontamento foi publicado nesta página no ano de 2013, texto que agora revimos e voltamos a publicar por tal se justificar, dado ser um motivo atual e de renovado interesse para os espíritos sensibilizados por esta temática.




domingo, 26 de fevereiro de 2023

Um caminho andado por inteiro: o correio em Alfeizerão em 1927

 


A cópia de uma carta endereçada pelo presidente da Junta ao Diretor dos Correios e Telégrafos de Leiria no ano de 1927 e por nós consultada no arquivo da Junta, recorda-nos como o correio chegava a Alfeizerão nessa época. A correspondência chegava de comboio a S. Martinho e na estação postal dessa localidade era levantada a mala postal para Alfeizerão que era trazida a pé por um estafeta para este lugar para aqui ser distribuído, fazendo-se o percurso inverso duas horas depois, 40 minutos era o tempo regular indicado na carta para esse percurso entre as duas localidades. 

Reproduzimos o teor curioso dessa carta, na transcrição, atualizamos a grafia e desenvolvemos as abreviaturas, perfeitamente naturais por se tratar da cópia manuscrita de uma carta expedida pela autarquia:

 

Ao Exmo. Sr. Diretor dos C. T. do Distrito de Leiria

A Comissão Administrativa da Junta de Freguesia de Alfeizerão, na qualidade de representante e defensora dos interesses dos seus habitantes, confiada no alto critério e espírito justiceiro de V. Exa., sabendo ainda mais quanto se interessa pela comodidade dos povos do nosso Distrito, proporcionando-lhes sempre todas as facilidades dentro das boas normas de justiça, vem esta Junta solicitar a V. Exa. o alto serviço para que sejam trocadas as malas postais desta freguesia, com a ambulância em vez de ser com a estação postal de S. Martinho do Porto, o que lhes traz bastante prejuízo. Não ignora V. Exa. da importância comercial, agrícola e vinícola de Alfeizerão, tendo já hoje uma troca razoável de correspondência, como o prova a estatística de venda de franquias.

De ordinário, a mala postal chega a Alfeizerão das 14.45 às 15 horas; a saída para S. Martinho é às 17 horas, como V. Exa. tem ocasião de apreciar, há apenas 2 horas de intervalo, ficando por esse motivo prejudicada alguma correspondência de resposta imediata, sucedendo por vezes mandar-se um portador á estação levar correspondência que pela sua urgência tem necessidade de seguir nesse dia. O comboio 201 (correio de Lisboa) chega a S. Martinho ás 12.20: o 206 (correio do Norte) chega ás 20.34; o condutor da mala, andando normalmente, gasta 40 minutos a percorrer a distância entre Alfeizerão e S. Martinho. Portanto, dignando-se V. Exa. atendera esta justa pretensão, podiam os habitantes de Alfeizerão receber a correspondência às 13 horas e enviá-la para o correio ás 19, sendo o intervalo de 6 horas, o que é importante para a facilidade de responder a correspondência urgente. Independentemente das inconveniências apontadas, temos outra não menos importante, que é: a detenção da correspondência em S. Martinho, tanto a vinda como a ida para o Norte. A correspondência para o Norte, que sai na mala às 17 horas, só no dia seguinte segue no 201. A vinda do Norte, que vem no 206, só no dia seguinte vem para Alfeizerão. Disso tem resultado alguns prejuízos e mui especialmente com a correspondência com a sede do concelho. Casos há em que são chamados interessados a Alcobaça, crentes os signatários de que a correspondência é recebida no mesmo dia. Com esta falta tem resultado alguns prejuízos. Uma vez a mala trocada com a ambulância, a correspondência vinda do Norte é distribuída aqui às 21 horas, a exemplo do que já houve, e o destinatário poderá responder no dia seguinte ou ir, em caso de chamamento. A correspondência trocada entre estas duas povoações (Alfeizerão e S. Martinho) poderá ser feita [com] a permuta das malas entre os estafetas respectivos.

Julgamos não haver nisto aumento de despesa na condução das malas, visto que o número de viagens são as mesmas, mas sim, apenas, mudança de horário e, para o empregado postal, apenas um pouco de trabalho em fazer duas malas em vez de uma.

Por esta pequenina exposição poderá V. Exa. apreciar as vantagens para esta freguesia, se esta Comissão Administrativa merecer o apoio de V. Exa. nesta tão justa aspiração.

Esperando que esta nossa pretensão tenha a honra de ser atendida, somos a desejar-lhe.

[Saúde e Fraternidade]

 

A. F. [João Augusto Ferreira]

Alfeizerão, 1-8-1927

 

sábado, 20 de agosto de 2022

A nova vida de duas mós de pedra

As duas mós de pedra que se encontravam no relvado do jardim da Junta de Freguesia de Alfeizerão, pelo seu valor arqueológico, foram retiradas da terra pela autarquia e, depois de limpas, movidas para um lugar mais condigno desse mesmo jardim, onde se encontram expostas, apoiadas em lancis de pedra. A breve trecho, uma placa informativa fixada no muro junto a elas transmitirá de forma sucinta o essencial sobre essas duas peças.

Figura1: as duas mós

Estas duas mós, ou as suas quatro metades, foram encontradas já partidas, tendo sido desenterradas em Setembro de 1990 na vala do castelo ao escavar-se o terreno para se construir uma estação de tratamento de esgotos, a mesma obra pôs a descoberto um muro ou paredão com dois arcos ogivais e na terra daí retirada recuperou-se fragmentos de cerâmica medieval (Barbosa, 2021, p.105). O executivo autárquico contatou a Universidade Nova de Lisboa e acorreu ao local o Doutor Pedro Gomes Barbosa, que recolheu amostras de cerâmica e fotografou e desenhou o muro posto a descoberto. O nível do lençol freático demoveu no entanto os responsáveis de iniciarem ali escavações, por conseguinte, o paredão com os arcos foi novamente coberto de terra e as mós de pedra confiadas à guarda da autarquia.


 A parede ou ruína de edifício

Estamos, como parece evidente pela descoberta das mós, perante vestígios vizinhos ao castelo de Alfeizerão de um antigo moinho de água com duas linhas de moagem. A sua tipologia, com base na parede com os dois arcos ogivais, parece ser a de um moinho de rodízio ou de roda horizontal. Os moinhos de roda horizontal são em geral edifícios com dois pisos, a água canalizada para ele a partir de um curso de água ou açude é comprimida na seteira que a lança com força sobre o rodízio formado por palas de madeira na extremidade inferior do eixo vertical da roda fazendo-a girar (vd. Figura 2). O rodízio funcionava no piso inferior ou cabouco enquanto no piso superior operava o casal de mós (movente de mó ou pedra andadeira e a pedra fixa ou pouso sobre a qual trabalhava), graças à rotação do veio. 

Figura 2: esquema simplificado 
do mecanismo do moinho de rodízio

Depois de cumprir o seu papel no moinho, a água era devolvida à natureza por uma abertura virada ao rio ou ao canal que a direcionava a partir daí. Essa abertura, muitas vezes em arco, traz-nos de volta ao paredão com os dois arcos descoberto em 1990. 

Ao passarmos em revista as representações de moinhos de roda horizontal (visitamos pessoalmente dois), é difícil não constatar as semelhanças entre os caboucos ou piso inferior dos moinhos de roda horizontal com os seus arcos de saída, e a nossa parede em ruínas.

Figura 3: A ruína de 1990 com a parte superior de um dos dois arcos


Figura 4: Na linha de cima, os caboucos de dois moinhos de rodízio em ruínas: moinho de Corte Real e moinho de Água da Courela, ambos no Alentejo.
Em baixo, representação gráfica de um moinho de rodízio ou roda horizontal.

As mós

As duas mós, circulares e de recorte irregular com cerca de um metro de diâmetro, possuem a face inferior aplainada, mas a superior foi esculpida e afeiçoada num feitio abaulado, ligeiramente cónico. A altura do chão a que estão expostas as mós no novo espaço, 15 cm, torna possível ter uma noção da condição e desgaste da face inferior, aquela que trabalhava sobre o grão.

As mós são muito distintas uma da outra, a primeira, constituída por calcário fossilífero áspero e com muitas arestas, teria a seu cargo o triturar do grão dúctil (provavelmente do milho grosso), o seu despedaçar eficaz. Esta primeira mó, na face inferior do olho da mó, conserva ainda o encaixe sensivelmente retangular da peça que a unia ao veio do moinho (vd. na Figura 5 o primeiro desenho); a segunda mó, aquela que está melhor preservada, de grão mais suave, teria como finalidade obter a moagem mais fina e mais alva, é o tipo de mó denominada alveira ou trigueira.

A presença da primeira movente de mó, mais granulada para triturar e moer, faz supor que a cronologia deste moinho de água seria posterior à introdução do milho americano (maís ou milho grosso) na agricultura e na alimentação (o que ocorre a partir do final do século XVI), com o seu grão mais dúctil e resistente do que os cereais que antes existiam (Maduro, 2019:204-211). Isto é apenas uma suposição, contrariada de certa forma pela cerâmica medieval aí achada, a menos que se interprete a presença destes fragmentos como vestígios de uma zona de depósito junto ao castelo medieval – peças trazidas pelas águas e ali acumuladas - ou em alternativa, que se esteja perante a adaptação de um moinho mais antigo à moagem do milho grosso, o que não seria inédito na região e no país. Às mós mais aptas para a moagem do milho foi atribuída a designação de mós segundeiras por merecer esse cereal nos seus primeiros tempos na Europa a designação de cereal de segunda, apesar da sua rápida expansão na agricultura e nos hábitos alimentares e ser agente de uma "verdadeira revolução agrícola" (Maduro, id.).


Figura 5: O nosso tosco croquis do contorno e perfil das mós

Fontes:

BARBOSA, Pedro Gomes, "O território de Alcobaça antes dos Cistercienses", in Um Mosteiro entre os rios. O território Alcobacense, coord. António Valério Maduro e Rui Rasquilho, Hora de Ler, Leiria, 2021. 

MADURO, António Valério – “A inovação do agro sistema cisterciense de Alcobaça nos séculos XVII – XIX”, in Cister- Tomo III: Espiritualidade, Agricultura e Indústria, Hora de Ler, Leiria, 2019.


Créditos das imagens:

Figura 2: Desenho repetidamente encontrado na Web sem indicação de autor.

Figura 3: Detalhe de uma fotografia guardada no arquivo da Junta de Freguesia de Alfeizerão.

Figura 4:

  a) Moinho de Corte Real: Projecto “Os Moinhos do Rio Degebe: Contributos para salvaguarda da sua memória”, coordenação de Mestre Francisca Mendes. Endereço: http://www.moinhosdegebe.uevora.pt/index.php#top

  b) Moinho de Água da Courela (Brotas, Mora): Ficha no SIPA - Sistema de Informação do Património Arquitetónico, N.º IPA.00024854. Endereço: http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=24854

  c) Desenho sem indicação de autor, recolhido de:

Marques, Rui (coord.), Sesimbra - Memória e Identidade | Engenhos de Moagem de Cereais, Câmara Municipal de Sesimbra, 2012


terça-feira, 14 de junho de 2022

Com a esperança no horizonte - recordando dois episódios antigos de emigração

 Os Livros de Registos de Passaportes (1861-1999), conservados no Arquivo Distrital de Leiria, são uma fonte inestimável de informação para estudos sociológicos e genealógicos, um outro aspeto curioso dos passaportes é a descrição física do requerente com os seus sinais identificadores, recurso que precede o advento das fotografias de perfil. Do primeiro livro que aí encontramos, respeitantes aos anos de 1863 a 1870, transcrevemos dois registos relativos à freguesia de Alfeizerão, mais propriamente, a Vale de Maceira, e a dois irmãos - um deles com 15 anos - que emigram para destinos diferentes, Pará e Buenos Aires. 

A obra em causa é o Livro de Registo de Passaportes N.º 1, ADLRA, -1/III/65/C/9, f. 12v e 34r (Código de Referência PT/ADLRA/AC/GCLRA/H-D/001/0001).


<n.º 10, novembro, 9 [1868]>

«Passaporte a Francisco José Velho, solteiro, filho de Marcelino José Velho, de Maceira (sic), freguesia d’Alfeizerão, Concelho d’Alcobaça d’este Districto, para o Pará, no Império do Brazil. Abonado por Bento Mendez, solteiro, proprietário, do referido logar, como fica constando do respectivo termo lavrado na Administração d’aquele Concelho. Signaes do portador. Idade, 15 anos – altura, 1,54 – rosto comprido – cabelo castanho escuro – sobr’olhos pretos – olhos castanhos – nariz e boca regulares – côr trigueira. Assignado, José Fonseca da Cunha e Souza, Governador Civil».


<n.º 55>

«Termo de fiança que presta João António d’Oliveira d’esta cidade por Maria Marcelina, solteira, d’Alfeizerão, Concelho d’Alcobaça.

«Aos desaseis dias do mez de Julho de mil oito cento e setenta, n’esta Cidade de Leiria e Governo Civil do Districto, compareceu perante o Excellentissimo Governador Civil, Luiz Teixeira de Sampaio, Maria Marcelina, solteira, filha de Marcelino José Velho e de Maria Pereira, já fallecida, do logar de Valle de Maceira, freguezia de Alfeizerão, Concelho d’Alcobaça, a qual declarou que na data de hoje havia requerido ao dito Excellentissimo Governador Civil passaporte para Buenos Ayres, na República Argentina, mostrando por documentos authenticos que ficam junto ao seu requerimento, que nenhum impedimento se offerecia à concessão do passaporte, e que oferecia por seu abonador a João António d’Oliveira, estabelecido com hospedaria n’esta Cidade, o qual estando presente, disse que reconhecia a identidade de pessoa e a afiançava e por ella se responsabilizava nos termos dos regulamentos de policia em vigor. O que sendo ouvido pelo Excellentissimo Governador Civil e testemunhas abaixo mencionadas – José Miguel Pereira Maceirão e Claudino Joaquim Meirel, empregados d’este Governo Civil, e julgando o Excellentissimo Governador Civil idonea a fiança, que por isso aceitou, mandou, para constar e mais effeitos, lavrar este termo, que assigna com o fiador e ditas testemunhas, depois de todo o haver lido eu, Manuel Nicolau d’Abreu Castello Branco, Secretário Geral, o rubrico».

quarta-feira, 23 de março de 2022

Notícias de uma guerra quase esquecida

 [Nota: Este texto é um trecho de um apontamento mais vasto, divulgado com o título: Uma paróquia no século XVII: O testemunho do padre António de Moura Ferrão, vigário da freguesia de N. Sra. da Vitória de Famalicão, aldeia do (actual) concelho da Nazaré]


Detalhe da "Carta da fronteira entre o Alentejo e a Estremadura espanhola
de João Teixeira Albernaz, 1646 (BNP, C.C. 254 A.)

Notícias de uma guerra quase esquecida

            A Restauração da independência de Portugal em 1640 foi uma conquista histórica que se teve que defender e sustentar numa longa guerra com Espanha que se prolongará até 1668, ano em que se firma a paz entre os dois países e o reconhecimento da independência de Portugal pela dinastia dos Habsburgos espanhóis. Logo no ano de 1641 se organiza a defesa do país com as Companhias de ordenanças e Terços auxiliares e, verificando-se que o Alentejo era a área geográfica mais vulnerável à invasão espanhola e ao avanço sobre Lisboa, D. João IV ordena que para acudirem à defesa dessa fronteira e das suas praças fortificadas ("presídios") fossem dedicadas os Terços de Auxiliares de «toda a Provincia da Estremadura e parte da da Beyra» (Menezes, 1679:201-202). Nesses 28 anos de guerra podemos destacar no contexto deste estudo dois eventos militares proeminentes. Entre Julho e Outubro de 1658 o governador do Alentejo, Mendes de Vasconcelos reuniu em Elvas um exército de 17.000 soldados portugueses e tenta a conquista da cidade de Badajoz, o ambicioso projecto sai gorado e em quatro meses de cerco da cidade o exército perde 6.200 homens, mortos em combate ou pela peste ou simplesmente fugidos ¹. Depois dos portugueses levantaram o cerco, os espanhóis sob o comando de D. Luís de Haro tentam a conquista de Elvas e cercam a cidade durante três meses, mas acabam derrotados na Batalha das Linhas de Elvas a 14 de Janeiro do ano seguinte (Menezes, 1698:200-201), na cidade de Elvas o cerco causou a morte de centenas de pessoas pela fome e pela peste (eram, diz o cronista, mais soldados que mantimentos e já não havia onde enterrar tantos mortos - id. p. 141). Terminada a Guerra da Restauração, a guerra voltaria à faixa raiana no contexto da Guerra de Sucessão de Espanha (1665-1715), período durante o qual os exércitos de Filipe V de Espanha entraram no Alentejo e ocuparam diversas praças portuguesas, como Portalegre e Castelo de Vide no ano de 1704, assistindo-se durante mais dois anos aos episódios de batalhas e escaramuças em território alentejano entre as forças militares dos dois reinos (Serrão, 1982:226).

            Com os efectivos de Auxiliares da Estremadura a serem encaminhados para a defesa da fronteira do Alentejo, esta guerra com as suas centenas de mortos é perceptível nas fontes primárias da História local. Indicaremos os registos associados a ela na freguesia de Famalicão, antes de acrescentarmos a esses registos os que lhes são idênticos nas freguesias confinantes da Pederneira e Alfeizerão; não incluímos os registos paroquiais de S. Martinho do Porto porque não encontramos nenhum assento que estivesse relacionado com este tema, nem os da freguesia da Cela porque a data extrema inicial dos livros de assentos de óbito que nos chegaram da freguesia é o ano de 1739. A ausência na freguesia de S. Martinho do Porto de óbitos nas guerras da fronteira parece dever-se apenas à boa fortuna de não terem ocorrido; ao falar de Alfeizerão no seu Dicionário Geográfico, obra publicada em 1747 (Cardoso, 1747:278), o padre Luís Cardoso diz que não se fazem soldados nessa terra para as praças do Alentejo por acudirem os seus Auxiliares ao forte de S. Martinho do Porto quando havia sinal de rebate e o mesmo deveria suceder nesta vila e freguesia; mas essa isenção foi tardia para o  quadro cronológico das guerras de fronteira porque nas suas respostas aos quesitos do Inquérito de 1758, o padre-cura Manuel José Marcelino da paróquia de S. Martinho do Porto (Cf. Doc. 6, f. 461, resposta n.º 22) diz que o privilégio de não se fazerem soldados na vila de S. Martinho se devia a um despacho do Marquês de Marialva, publicado uns seis anos antes (um pouco mais, atendendo à informação do padre Luís Cardoso, de finais da década anterior).

Figura 6: A fronteira do Alentejo, parte do mapa "Limites de Portugal" de Brás Pereira (1642) ²

 

            Em Famalicão, freguesia de Nossa Senhora da Vitória, são seis os registos paroquiais que importa referir:

 

<Fronteiras. João do Cazal da Nuna>

Aos outo dias do mes de Setembro de 1658 fis hum ofiçio pella alma de João, filho de Domingos Fernandes do Cazal da Nuna e de Antonia Fernandes, soldado que deos levou na fronteira de Elvas e augmentei os quatro domingos do mes, seu pai e mai satisfizerão com a esmola de fevereiro de 659. O Vigr.o Antonio de Moura Ferrão.

[Cf. Doc. 1, f. 12r]

 

Faleçeo Domingos Dias da Cerra da Pescaria, marido de Maria Luis Peneda, nas partes do Alentejo de doença que deus lhe deu, fizerãoce por sua alma tres ofiçios nesta igreja e se augmentarão os quatro domingos do mes, ao que tudo satisfes sua mulher, fizerãocelhe os ofiçios ao dezouto e dezanove dias de agosto de mil e seis centos e sincoenta e nove, e por verdade fis este asento para lembrança, dia, mes, era asima dicto. O Vigr.o Antonio de Moura Ferrão.       

[Cf. Doc. 1, f. 17r]

 

<Panois, Manuel, filho de Francisco Alveres>

No mesmo tempo asima declarado [19 de Agosto de 1659] fis hum ofiçio e augmentei os quatro dominguos do mes pella [alma] de Manuel, filho de Francisco Alveres deste lugar, soldado que deus levou em Elvas, por não ter bens de sua ligitima para mais e por verdade fis este que asinei, dia, mes e era asima declarado. O Vigr.o Antonio de Moura Ferrão.    

[Cf. Doc. 1, f. 17r]

 

<Fronteira de Elvas, Antonio, filho de Antonio Lampreão do Casal do Bom Nome>

No anno de seis centos e sesenta e dous fis hum ofiçio e augmentei o mes pella alma de Antonio Mendiz, filho de Antonio Martinz Lampreão do casal de bom nome, herdado de sua mai por não aver legitima para mais, que faleçeo na cidade de Elvas sendo nella soldado e por verdade fis este asento para a todo o tempo constar, oje, 11 de maio de 662. O Vigr.o Antonio de Moura Ferrão.

[Cf. Doc. 1, f. 22v]

 

Em os vinte e hum dias do mes de Outubro de mil e sete sentos e sinco annos fis hum ofísio pela Alma de Manoel Luis dos Raposos, filho de Manoel Luis, o qual disem que faleseo nas guerras e para que conste fis este assento. O Cura Antonio de Oliveira. 

[Cf. Doc. 2, f.34r]

 

Em os vinte e tres dias do mes de fevereiro de mil e sete sentos e sete annos fis tres ofísios nesta igreja de Nosa Senhora da Victoria do lugar de Famalicam pela alma de Domingos Francisco, marido que foi de Maria Rodrigues Pequicha, moradora em Famalicam de Baixo, por ser absente [estar ausente] á dezouto annos e aver novas que era morto no Alentejo, lhe fis os tres ofísios e por verdade me assinei, oje, dia, mes, era ut supra. Antonio de Oliveira.          

[Cf. Doc. 2, 36v]

 

            Os Panoins (Panões) do assento de óbito de Manuel, filho de Francisco Álvares, é um elemento toponímico que ainda persiste na aldeia de Famalicão três séculos e meio depois e indica a Rua dos Panões que, na povoação actual liga à Rua das Flores que margina o alçado poente da igreja. No registo de óbito de António Dinis, o Zagalho, menciona-se expressamente a "Rua dos Panoins deste lugar de Famalicão" (Cf. Doc. 1, f. 78r). O topónimo pode ter-se originado eventualmente numa manufactura local de panos de lã - o Zagalho, alcunha deste António Dinis, tem como raiz "zagal", pastor, e nos registos paroquiais encontramos outra alcunha significativa de um residente nos Panões: Francisco Jorge Panoeiro (Cf. Doc. 1, f. 77v). Para os séculos XV/XVI possuímos esta indicação que de uma forma limitada fundamenta esta suposição: «Um pequeno núcleo de produção de tecidos de lã, sobretudo, de burel, ganhou alguma expressão na região de Alcobaça, justificada pela existência de numerosos coutos ligados à Abadia» (Garcia, 1986:328, apud: Costa, 2009:158) 


            Na freguesia de Nossa Senhora das Areias da Pederneira, recolhemos três assentos paroquiais:

 

Aos 30 dias do mes de Outubro faleceo Rodrigo Lopez, digo, veio recado a sua molher, moradora nesta villa em como o dito seu marido era morto na fronteira do Alentejo em o dito dia e mes ut supra desta era de 1658. [rubricado:] Lopez.   

[Cf. Doc. 3, f. 125r]

 

Aos dois dias de Agosto da ditta Era [1685] chegou nova em como o Mudo de Fanhais [sicera falecido na parte do Alentejo e para que conste fis este asento oje, dia, era ut supra. O Vigario João de Souto Velho.

 [Cf. Doc. 4, f. 2v]

 

Vindo da fronteira Domingos Bernardes do lugar do Vallado, faleceo em o Bispado de Portalegre, fis este assento para constar em todo o tempo em 28 de dezembro de 1663. Lopez.     

[Cf. Doc. 3, f. 143r]

 

            Por fim, na freguesia de S. João Baptista de Alfeizerão, recolhemos os seguintes:

 

Em os outo dias do mes de Fevereiro de mil e seis sentos e noventa e hum annos, fiz dois, digo, hum ofísio pela Alma de Manoel, filho de Siman Lopes desta villa, por aver novas sertas que falesera no Alimtejo  e para que conste fis este asento. Feci dicto die ut supra. Antonio de Oliveira.           

[Cf. Doc. 5, n.º fl. ilegível]

 

A sete de Julho de mil e sete sentos e dois annos, fiz dois ofisios pela Alma de Manoel de Oliveira, filho de Sebastiam de Oliveira e de Iria Jorge, moradores nesta villa, o qual faleseo no Alentejo e para que conste fiz este assento. O pe. Antonio de Oliveira.     

[Cf. Doc. 5, f. 49r]

 

Em os quatro dias do mês de Fevereiro de mil e sete sentos e seis anos, fiz hum ofiçio pela alma de Raymundo, filho de Manoel Simoins, do Vallado, e de Maria Madeira desta freguesia, o qual faleçeo no hospital de Campo Maior; por me constar por seus companheiros que o viram  morrer sendo soldado e para que conste o sobre ditto fiz este assento. O Cura Antonio do Couto.    

[Cf. Doc. 5, f. 54]

 

Em os vinte e sete dias do mes de Março de mil e sete sentos e seis annos, em esta Igreja de São João Batista da villa de Alfizirão, fis tres ofisios pella Alma de Joseph, filho de Francisco Mendes e de Ignes Luis, já defuntos, moradores que forão no lugar da Macalhona desta freguesia, o qual faleceo no Hospital de Estremoz, e para que conste o sobreditto fis este assento. O Cura Antonio do Couto.  

[Cf. Doc. 5, f. 54v]



¹ «Os soldados mortos e feridos nas occasioens erão muytos, os de doenças infinitos, e não menos os fugidos» (Menezes, 1698:117)

² DUARTE DE ARMAS (ca 1465) PEREIRA, Brás (1642) - Fronteira de Portugal Fortificada pellos Reys deste Reyno. tiradas estas fortalezas no tempo del Rey Dom Manoel / copiadas por Brás Pereira, manuscrito - BNP, PURL 24908  



FONTES:

Documentos:

Doc. 1 - ADLRA, IV/36/D/36, Registos de óbito da freguesia de Famalicão: 1649-1684 - PT/ADLRA/PRQ/PNZR01/003/0002

Doc. 2 - ADLRA, IV/36/D/37, Registos de óbito da freguesia de Famalicão: 1684-1731 - PT/ADLRA/PRQ/PNZR01/003/0003

Doc. 3 - ADLRA, IV/36/D/56, Registos de baptismo e óbito da freguesia de Pederneira da Nazaré: 1657-1664 - PT/ADLRA/PRQ/PNZR02/003/0002

Doc. 4 - ADLRA, IV/37/A/25, Registos de baptismo e óbito da freguesia de Pederneira da Nazaré: 1685-1712- PT/ADLRA/PRQ/PNZR02/003/0003

Doc. 5 - ADLRA, IV/24/C/11, Registos de óbito da freguesia de Alfeizerão: 1666-1747 - PT/ADLRA/PRQ/PACB02/003/0002

Doc. 6 - A.N.T.T., Memórias paroquiais, vol. 22, nº 71 - PT/TT/MPRQ/22/71


Bibliografia:

CARDOSO, Luís (1747) - Diccionario geografico, ou noticia historica de todas as cidades, villas, lugares, e aldeas, rios, ribeiras, e serras dos Reynos de Portugal, e Algarve, com todas as cousas raras, que nelles se encontraõ, assim antigas, como modernas, Lisboa : na Regia Officina Sylviana, e da Academia Real, Tomo I.

COSTA, Manuela Pinto da (2009) - “Tecidos e têxteis portugueses do século XVII ao século XVIII”, in Actas do IV Congresso Histórico de Guimarães, Guimarães.

MENEZES, Dom Luís de (1698) - Historia de Portugal Restaurado - Tomo I, Lisboa, na Oficina de João Galrão, 1679 / Tomo II, Lisboa : na Oficina de Miguel Deslandes.

SERRÃO, Joaquim Veríssimo (Dir. de) (1982) - História de Portugal [1640-1750], Vol. 5, Lisboa : Editorial Verbo