1. “Biografia” de uma
pedra gravada
Entre os muitos vestígios romanos encontrados na região, contam-se
as lápides sepulcrais, desenhadas e interpretadas, por exemplo, pelo cronista
Frei Bernardo de Brito na “Monarchia Lusitana” (Parte Primeira, Livro Terceiro,
Most. Alc., 1597). Quase todas elas desapareceram,
à excepção de uma, convenientemente guardada em Alcobaça, cujo historial
evoco em seguida.
Em 1721, nas respostas ao inquérito da Academia Real da
História Portuguesa (BGUC – Ms. 503, fl. 82, 83), o Ouvidor da Comarca de
Leiria, Cristóvão de Sá Nogueira, refere a existência em Alfeizerão de duas
lápides romanas no castelo e uma outra que existia no corpo da vila, que é aquela que
nos interessa, lápide que ele apresenta da seguinte forma: «á porta de João de Charia
Henriques achey huma pedra que serve de assento, em a qual está exculpido o
Letreiro seguinte, e no fim da terceira Regra estão tres signaes q.
parecem letras, e o dito Letreiro tem sinco Regras». O ouvidor da Comarca não transcreve nem traduz o texto da lápide, mas o desenho
que fez (Figura 1) é inequívoco:
Figura 1: o
primeiro desenho da lápide (BGUC – Ms. 503, fl. 83)
Sensivelmente
sessenta anos depois, o cronista cisterciense Frei Manuel de Figueiredo regista
em dois códices manuscritos distintos, preservados na Biblioteca Nacional de
Lisboa (BNP, cod 1492 e BNP, cod 1484) as suas notícias corográficas sobre a comarca
de Alcobaça. O primeiro códice foi transcrito e publicado pelo professor Gérard
Leroux (Leroux, 2020),
do segundo, Carlos Casimiro de Almeida transcreveu o trecho relativo a
Alfeizerão, transcrição disponibilizada na Web na nossa página e num artigo
publicado no portal Academia.edu (Vd. “Apontamentos corográficos de Frei Manuel de Figueiredo sobre Alfeizerão”).
Frei Manuel de
Figueiredo encontra novamente a lápide romana de Terência: “uma inscrição
aberta num padrão de mármore branco que existe encostado ao cunhal das casas de
António de Sousa, da parte do norte” (cod 1484) ou “uma pedra de
mármore pegada ao cunhal das casas de António de Sousa” (cod 1492). O
cronista desenha as letras (figura 2) e adianta a sua interpretação: «Parece quer dizer
que Terência Máxima, filha de Quintino,
pôs esta memória a sua filha Terência
Camira”.
Figura 2: o desenho
de Frei Manuel de Figueiredo (BNP, cod 1484)
Talvez por ter o
feitio e a utilidade de um banco, de “uma pedra que serve de assento”,
nas palavras de Cristóvão de Sá Nogueira, a lápide sepulcral sobreviveu até aos
nossos dias, permaneceu junto às casas da vila até ser recuperada por um
sacerdote, o padre Poças Júnior, e foi parar às mãos do ganadeiro e cavaleiro Vitorino
Fróis, que o ofereceu ao seu dileto amigo Manuel Vieira Natividade, tendo este
guardado a dita lápide no seio do seu valioso acervo museológico de arqueologia
e etnografia (a imagem que reproduzimos da lápide foi capturada pelo engenheiro
silvicultor Carlos Paixão Correia). Isto é narrado por Afonso do Paço (Paço,
1962) num
artigo sobre a carreira e os sucessos de Manuel Vieira Natividade, onde cita a
descrição que Natividade fez da peça em seu poder: «é constituída por um
bloco de mármore de 0,66 m de altura, 0,51 de largura e 0,41 de espessura, com
belas letras de 0,06 de altura (...) está bastante estragada e mesmo cortada do
lado direito na parte superior».

Figura 3: A lápide de Terência, em Alcobaça (foto de Carlos Paixão
Correia)
A inscrição de Terência tinha já sido reproduzida no Corpus
(Corp. Inscr. Lat., II, 360), mas de
posse do original, Manuel Vieira Natividade faz um decalque da inscrição que é transcrita e publicada n'O Archeologo Português por José Leite de Vasconcelos (vol. VII, Outubro de Novembro de 1902, nrs. 10 e
11, p. 16), aí desenvolve uma leitura algo diferente do texto: «A Terencia Camira, filha de Quinto, sua mãe
Terencia Maxima, filha de Doquiro [ou Doquirico], consagrou este monumento».
Figura 4: a transcrição publicada por Leite de Vasconcelos
A lápide de Terência, valioso testemunho do passado romano
de Alfeizerão, a par do marco miliário de Adriano, é hoje propriedade do Estado
e esperamos (como muitos) que não falte muito para poder ser admirada pelo
público em geral, com a restante colecção museológica de Manuel
Vieira Natividade. A Casa-Museu de Vieira Natividade foi formalmente criada por
Decreto-Lei n.º 217/92 de 15 de Outubro e desde 10 de Julho de 2019, existe um
protocolo estabelecido entre o município de Alcobaça e o DGPC para viabilizar a
abertura ao público da referida Casa-Museu, após as obras e trabalhos que se
julgar necessários.
A médio prazo, quando a colecção de Natividade estiver,
finalmente, exposta ao público, seria uma iniciativa oportuna se a autarquia
obtivesse através das entidades competentes um decalque ou um molde em gesso
dessa inscrição para poder ser exposto publicamente em Alfeizerão com toda a informação pertinente, como mais um
fragmento inestimável do seu rico passado histórico.
Figura 5: a casa-museu Vieira Natividade, com o obelisco
fronteiro, erguido em sua homenagem
2. Uma nota de rodapé
à inscrição
A inscrição tumular de Terência Camira, é dedicada pela sua
mãe Terência Máxima, indicando a sua ascendência paterna: Terência Camira era
filha de Quintus e neta de Doquiro. O nomen
Terência (Terentia) é a forma feminina do nome da família de que provinham
(Terentius).
Alguns detalhes mais.
O nome Terência não é único na região, encontrando-se muito
próxima a lápide sepulcral de Terência, filha de Lauro, mandada erigir por
Júnia, sua mãe. O estudo desta lápide foi publicado em 1991 por José d’Encarnação
e Maria da Conceição Lopes; inicialmente, era suposto ter sido encontrada num
desaterro efectuado no Reguengo da Parada (concelho de Caldas da Rainha), mas
informações posteriores dão-na como achada efectivamente no Casal do Pardo (D'ENCARNAÇÃO,
José, LOPES, Maria da Conceição, Ficheiro
Epigráfico, 70, FLUC, 1991) – a dúvida sobre todo o processo persiste de certa
forma.
Quinto (Quintus) era um dos prenomes mais comuns entre os
romanos, a sua ocorrência nesta lápide pode significar apenas a sua adopção por
populações autóctones romanizadas.
O cognome Máxima
também era frequente, como exemplo, a lápide de uma mulher de cognome Máxima,
filha de Quinto, de um epitáfio de Collipo, S. Sebastião do Freixo (Brandão,
1972, p. 80).
O antropónimo Camira, por seu turno, é mais invulgar – Maria Manuela Alves Dias
adianta que ele «apresenta uma
distribuição geográfica muito bem caracterizada, concentrando-se quase
exclusivamente na Beira Baixa e na Estremadura Espanhola» (Dias, 1986).
De Doquiro, Domingos de Pinho Brandão (Brandão, 1971, p. 59),
num estudo sobre uma lápide romana do Crato (Alto Alentejo) diz tratar-se de
nome de origem celta, sendo encontrado também sob as formas Docquirus e Docquiricus. Sobre a sua ocorrência na Península, além da lápide de
Terência Camira, de Alfeizerão, indica os epitáfios descobertos em
Idanha-a-Velha, Freixo de Numão, Trujilo e Mérida. A confirmar a raiz celta do
nome, está uma lápide descoberta por Leite de Vasconcelos em 1930, perto de
Canas de Senhorim, onde se lê que “Doquiro, filho de Céltio, cumpriu a promessa” - Doquirus, Celti filius, votum fecit (Archeologo Português, vol. XXVIII, 1927/1929, p. 214).
3. Uma anedota fora de contexto
No trabalho de Afonso do Paço sobre Manuel Vieira Natividade encontra-se uma narrativa bem-humorada, que não resisto a endossar, sobre a primeira vez que Leite de Vasconcelos se entrevistou com o investigador do Casal do Rei (Paço, 1962, p. 86-87). Leite de Vasconcelos andava (como muitos acólitos dele) a percorrer o país em busca de antiguidades e objectos arqueológicos para o Museu Etnológico Português em Lisboa e, chegado a Alcobaça, lembrou-se de perguntar ao velho guia do Mosteiro se não conhecia ninguém na terra que tivesse em seu poder machados de pedra polida, artefactos a que o povo chamava amiúde “pedras de raio” por se acreditar que eram os raios que os frechavam sobre o solo ou as árvores. O guia indicou-lhe o Manuel Natividade, que vivia defronte do Mosteiro e acompanhou-o até lá. Feitas as devidas apresentações, Leite de Vasconcelos, com alguma ansiedade, pergunta a Manuel Natividade se tinha com ele "pedras de raio", ao que este respondeu que tinha efetivamente algumas, o que leva Vasconcelos a perguntar como as arranjava.
Manuel Vieira Natividade, um tanto trocista, cofiando a barbinha, disse para o seu interlocutor, também de barbas:
- Quando está para trovejar, subo à torre do Mosteiro e reparo onde elas caem. Depois, vou lá buscá-las!
Fontes:
BRANDÃO,
Domingos de Pinho - Epigrafia romana
Coliponense, in "Conimbriga",
Faculdade de Letras - Instituto de Arqueologia, Coimbra, 1972
BRANDÃO,
Domingos de Pinho - Estela funerária com
inscrição latina do Crato (Alto Alentejo), in "Trabalhos de Antropologia e Etnologia”, vol. 22, fasc. n.º 1,
Porto, Faculdade de Ciências, 1971
DIAS, Maria Manuela Alves - "Inscrição funerária de São Bento do Cortiço, Estremoz", Ficheiro Epigráfico, n.º 16, Coimbra, FLUC, Coimbra, 1986
LEROUX,
Gérard, Frei Manuel de Figueiredo – Memórias de várias vilas eterras dos
Coutos de Alcobaça (1780-1781), Alcobaça, edição do Jornal O Alcoa, 2020.
PAÇO,
Afonso do - M. Vieira Natividade e as
raízes de Alcobaça, in "Arqueologia
e História", 8.ª série, Volume IX, p. 78-93, Associação dos
Arqueólogos Portugueses, Lisboa, 1962