Referimo-nos recentemente ao adro da capela de Santo Amaro, que ainda existia (pelo menos nominalmente) no princípio do século XX e cuja existência era compreensivelmente necessária, como o adro ou largo de qualquer templo religioso de outras eras. O limite do adro marcava a passagem do espaço sagrado ao espaço profano, dentro dele se desenrolavam os ritos e costumes de carácter religioso (como a deposição nas paredes da capela de membros em cera como ex-votos ao santo, como narra o pároco em 1758) e, enquanto a lei nacional não o proibiu (com três decretos-lei, de 1835, 1844 e 1845), eram realizados enterramentos na capela e no seu adro, o mesmo sucedendo no adro, escadaria e interior da igreja paroquial (e antes disso, na igreja do Espírito Santo, desaparecida como tal em finais do século XVIII), e no adro e capela de Santa Quitéria no Valado.
No Antigo Regime, seria quase inconcebível um templo como a capela de Santo Amaro dos nossos dias estar levantado no centro de caminhos e terrenos públicos. Num meio-termo evolutivo, o adro inicial, murado de alguma forma e cujo terreno circunscrito possibilitava a cobrança de terrado pelas festividades de Janeiro, teria passado a largo envolvente da capela até esse sentido se desvanecer por completo e o edifício da capela se insularizar no meio de terrenos públicos, como a conhecemos hoje.
Um processo do Arquivo do Ministério das Finanças, concede-nos o pretexto de falarmos um pouco mais dos templos da freguesia. Trata-se do “Arrolamento dos bens cultuais da freguesia de Alfeizerão, distrito de Leiria, concelho de Alcobaça” (código de referência PT/ACMF/CJBC/LEI/ALC/ARROL/002), lavrado em 1911 por efeito da revolucionária e draconiana “Lei da Separação do Estado das Igrejas” (Diário do Governo, n.º 92, de 21 de Abril de 1911). Para se ter uma ideia do teor desta lei, citemos o artigo 62, referido neste processo: «Todas as catedraes, igrejas e capellas, bens immobiliarios e mobiliarios, que teem sido ou se destinavam a ser applicados ao culto publico da religião catholica e á sustentação dos ministros d’essa religião e de outros funccionarios, empregados e serventuários d’ella, incluindo as respectivas bemfeitorias e até os edifícios novos que substituíram os antigos, são declarados, salvo o caso de propriedade bem determinada de uma pessoa particular ou de uma corporação com individualidade jurídica, pertença e propriedade do Estado e dos corpos administrativos, e devem ser, como taes, arrolados e inventariados, mas sem necessidade de avaliação nem de imposição de sellos, entregando-se os mobiliários de valor, cujo extravio se receiar, provisoriamente á guarda das juntas de parochia ou remettendo-se para os depósitos públicos ou para os museus».
Na abertura do processo, podemos ler:
«Freguesia de Alfeizerão
«Aos dois dias do mez de agosto do anno de mil novecentos e onze, neste logar de Alfeizerão e no edifício de igreja parochial denominado São João Baptista, onde compareceram o cidadão José Coelho da Silva, administrador deste concelho, e bem assim o cidadão Manuel José Alves, membro da junta de parochia, indicado previamente pela camara municipal do referido concelho, commigo Freitas d’Araujo Abreu Bacellar Junior, secretario de finanças e da comissão concelhia do inventario, para os fins consignados no art.º 62 da lei de separação das egrejas do estado; e assim principiamos o arrolamento e inventario da forma seguinte: (…)».
Segue-se o arrolamento. A natureza dos itens inventariados são “alfaias e utensílios do culto” (cruzes, mantos, tocheiros, etc.), registando-se entre eles cinco imagens religiosas (estariam lá todas?) e dois quadros existentes na igreja paroquial: as imagens de S. João Baptista, de Nossa Senhora do Rosário com o Menino, Santo António, S. Sebastião e Jesus Crucificado (itens 97 a 101), um quadro da ascensão de Jesus em Israel e outro de Nossa Senhora (números 102 e 103). Após o item n.º 134, inventaria-se os “Bens Imóveis” (p. 18r e 18v), começando por uma courela de terra nas Ramalheiras (arrendada mais tarde, anota-se na mesma folha), o edifício da igreja paroquial, a «capela de Santo Amaro, no largo do mesmo nome em Alfeizerão, tendo adjunta casa da Junta da parochia», e a «capela do Valado de Santa Quiteria, sita no mesmo lugar».
A este inventário de 1911, e seguindo a mesma numeração de páginas, está anexado um outro documento, este de 19 de Maio de 1931 sobre os títulos de dívida pública da igreja, cuja parte introdutória transcrevemos, pela sua pertinência, por mencionar a igreja paroquial e as duas capelas da freguesia:
«Aos quatro dias de Março de mil, novecentos e trinta um, n’este lugar e freguesia de Alfeiserão, Concelho de Alcobaça, onde se encontrava o Excelentissimo Senhor Presidente da Comissão de Inventário d’este Concelho, Manuel da Silva Carolino; senhor João Augusto Ferreira, Presidente da Comissão Administrativa da Junta de Freguesia de Alfeiserão; Reverendo João Matos Vieira, Paroco da mesma freguesia, comigo João António Mateus, Aspirante de Finanças que no impedimento do chefe da Repartição de Finanças d’este concelho desempenha as funções de secretário e como Juiz de se efectuar o arrolamento em inventário adicional nos termos dos artigos sessenta dois, sessenta oito e sessenta nove da Lei de vinte de Abril de mil novecentos e onze, seguindo determinação da Comissão Jurisdicional dos Bens Cultuaes, Processo quatorze mil quatrocentos setenta seis de três de Fevereiro de mil novecentos e trinta um, se apuraram serem as seguintes: Na capela de Santo Amaro: Adro pertencente á capela de Santo Amaro, confrontando de todos os lados com terreno publico. Uma sineta com o peso de oito quilos. Na Capela de Santa Quitéria: adro pertencente à mesma capela, confrontando de norte [com] casa de José Rebelo e Joaquim Lopes, sul, caminho público, nascente, Maria José Sales (Herdeiros), poente, José Rebelo e estrada. Um sino com trinta cinco quilos de peso. Na Igreja Paroquial. Um sino com cem quilos de peso. Um sino com setenta cinco quilos de peso. Uma casa denominada a “Casa das Almas”, confrontando do norte com igreja, sul, estrada, nascente adro da Igreja, Poente, sacristia. Uma casa denominada a “Casa das Sessões” confrontando do norte com adro da igreja, sul igreja, nascente adro e poente, cemitério. Um Relicario de prata com cento noventa gramas. Dose inscrições de Divida Interna de valor nominal de cem escudos com os mesmos (…)».