sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

1911-1931: As capelas da freguesia e a igreja paroquial de Alfeizerão

 


                Referimo-nos recentemente ao adro da capela de Santo Amaro, que ainda existia (pelo menos nominalmente) no princípio do século XX e cuja existência era compreensivelmente necessária, como o adro ou largo de qualquer templo religioso de outras eras. O limite do adro marcava a passagem do espaço sagrado ao espaço profano, dentro dele se desenrolavam os ritos e costumes de carácter religioso (como a deposição nas paredes da capela de membros em cera como ex-votos ao santo, como narra o pároco em 1758) e, enquanto a lei nacional não o proibiu (com três decretos-lei, de 1835, 1844 e 1845), eram realizados enterramentos na capela e no seu adro, o mesmo sucedendo no adro, escadaria e interior da igreja paroquial (e antes disso, na igreja do Espírito Santo, desaparecida como tal em finais do século XVIII), e no adro e capela de Santa Quitéria no Valado.

                No Antigo Regime, seria quase inconcebível um templo como a capela de Santo Amaro dos nossos dias estar levantado no centro de caminhos e terrenos públicos. Num meio-termo evolutivo, o adro inicial, murado de alguma forma e cujo terreno circunscrito possibilitava a cobrança de terrado pelas festividades de Janeiro, teria passado a largo envolvente da capela até esse sentido se desvanecer por completo e o edifício da capela se insularizar no meio de terrenos públicos, como a conhecemos hoje.

                Um processo do Arquivo do Ministério das Finanças, concede-nos o pretexto de falarmos um pouco mais dos templos da freguesia. Trata-se do “Arrolamento dos bens cultuais da freguesia de Alfeizerão, distrito de Leiria, concelho de Alcobaça” (código de referência PT/ACMF/CJBC/LEI/ALC/ARROL/002), lavrado em 1911 por efeito da revolucionária e draconiana “Lei da Separação do Estado das Igrejas” (Diário do Governo, n.º 92, de 21 de Abril de 1911). Para se ter uma ideia do teor desta lei, citemos o artigo 62, referido neste processo: «Todas as catedraes, igrejas e capellas, bens immobiliarios e mobiliarios, que teem sido ou se destinavam a ser applicados ao culto publico da religião catholica e á sustentação dos ministros d’essa religião e de outros funccionarios, empregados e serventuários d’ella, incluindo as respectivas bemfeitorias e até os edifícios novos que substituíram os antigos, são declarados, salvo o caso de propriedade bem determinada de uma pessoa particular ou de uma corporação com individualidade jurídica, pertença e propriedade do Estado e dos corpos administrativos, e devem ser, como taes, arrolados e inventariados, mas sem necessidade de avaliação nem de imposição de sellos, entregando-se os mobiliários de valor, cujo extravio se receiar, provisoriamente á guarda das juntas de parochia ou remettendo-se para os depósitos públicos ou para os museus».

                Na abertura do processo, podemos ler:

 

                «Freguesia de Alfeizerão

                «Aos dois dias do mez de agosto do anno de mil novecentos e onze, neste logar de Alfeizerão e no edifício de igreja parochial denominado  São João Baptista, onde compareceram o cidadão José Coelho da Silva, administrador deste concelho, e bem assim o cidadão Manuel José Alves, membro da junta de parochia, indicado previamente pela camara municipal do referido concelho, commigo Freitas d’Araujo Abreu Bacellar Junior, secretario de finanças e da comissão concelhia do inventario, para os fins consignados no art.º 62 da lei de separação das egrejas do estado; e assim principiamos o arrolamento e inventario da forma seguinte: (…)».

                Segue-se o arrolamento. A natureza dos itens inventariados são “alfaias e utensílios do culto” (cruzes, mantos, tocheiros, etc.), registando-se entre eles cinco imagens religiosas (estariam lá todas?) e dois quadros existentes na igreja paroquial: as imagens de S. João Baptista, de Nossa Senhora do Rosário com o Menino, Santo António, S. Sebastião e Jesus Crucificado (itens 97 a 101), um quadro da ascensão de Jesus em Israel e outro de Nossa Senhora (números 102 e 103). Após o item n.º 134, inventaria-se os “Bens Imóveis” (p. 18r e 18v), começando por uma courela de terra nas Ramalheiras (arrendada mais tarde, anota-se na mesma folha), o edifício da igreja paroquial, a «capela de Santo Amaro, no largo do mesmo nome em Alfeizerão, tendo adjunta casa da Junta da parochia», e a «capela do Valado de Santa Quiteria, sita no mesmo lugar».

                A este inventário de 1911, e seguindo a mesma numeração de páginas, está anexado um outro documento, este de 19 de Maio de 1931 sobre os títulos de dívida pública da igreja, cuja parte introdutória transcrevemos, pela sua pertinência, por mencionar a igreja paroquial e as duas capelas da freguesia:

                «Aos quatro dias de Março de mil, novecentos e trinta um, n’este lugar e freguesia de Alfeiserão, Concelho de Alcobaça, onde se encontrava o Excelentissimo Senhor Presidente da Comissão de Inventário d’este Concelho, Manuel da Silva Carolino; senhor João Augusto Ferreira, Presidente da Comissão Administrativa da Junta de Freguesia de Alfeiserão; Reverendo João Matos Vieira, Paroco da mesma freguesia, comigo João António Mateus, Aspirante de Finanças que no impedimento do chefe da Repartição de Finanças d’este concelho desempenha as funções de secretário e como Juiz de se efectuar o arrolamento em inventário adicional nos termos dos artigos sessenta dois, sessenta oito e sessenta nove da Lei de vinte de Abril de mil novecentos e onze, seguindo determinação da Comissão Jurisdicional dos Bens Cultuaes, Processo quatorze mil quatrocentos setenta seis de três de Fevereiro de mil novecentos e trinta um, se apuraram serem as seguintes: Na capela de Santo Amaro: Adro pertencente á capela de Santo Amaro, confrontando de todos os lados com terreno publico. Uma sineta com o peso de oito quilos. Na Capela de Santa Quitéria: adro pertencente à mesma capela, confrontando de norte [com] casa de José Rebelo e Joaquim Lopes, sul, caminho público, nascente, Maria José Sales (Herdeiros), poente, José Rebelo e estrada. Um sino com trinta cinco quilos de peso. Na Igreja Paroquial. Um sino com cem quilos de peso. Um sino com setenta cinco quilos de peso. Uma casa denominada a “Casa das Almas”, confrontando do norte com igreja, sul, estrada, nascente adro da Igreja, Poente, sacristia. Uma casa denominada a “Casa das Sessões” confrontando do norte com adro da igreja, sul igreja, nascente adro e poente, cemitério. Um Relicario de prata com cento noventa gramas. Dose inscrições de Divida Interna de valor nominal de cem escudos com os mesmos (…)».

 

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

A CAPELA DE SANTO AMARO – TRÊS “JANELAS” PARA O SEU PASSADO


             A assinalar o dia 15 de Janeiro, indicamos três referências históricas para a capela de Santo Amaro, na forma de duas doações testamentárias e uma reconstrução da capela, todas originadas de párocos da vila. As primeiras, dos testamentos dos padres António do Couto (1728) e António Lopes Silva (1773), enquanto a reconstrução (mandada “reedificar”) da capela foi devida à acção do padre Raimundo Soares de Sá e Lanções, segundo testemunho do cronista frei Manuel de Figueiredo (1782), que empregou presumivelmente nela o numerário legado pelo padre António Lopes Silva.

                Os corógrafos do século XVIII estimavam que a capela era tão antiga como a própria vila - ou perto disso porque, pelos seus traços arquitectónicos, a capela evoca construções similares dos séculos XIV-XV. O Santo Amaro e o seu modesto templo, sempre foi muito acarinhado pelos alfeizerenses e gentes das terras vizinhas, e isso também se espelha na preocupação destes três párocos pela sua manutenção e continuidade. Outro sinal claro da importância dessa devoção é a ocorrência de Amaro na onomástica de pessoas nascidas e baptizadas em Alfeizerão (com mais incidência nos séculos XVII-XVIII), encontrando-se também Santo Amaro como sobrenome, mas provavelmente como indicação da proximidade à capela da residência das pessoas assim conhecidas. Como exemplo: Mariana Francisco de Santo Amaro, no assento de óbito do seu marido Manuel Lopes, com a data de 24 de Outubro de 1727 (ADLRA, IV/24/C/11, fl. 93r).

                Partilho imagens dos três documentos e, na cópia dos textos, suprimi as maiúsculas indevidas e desdobrei as abreviaturas, sublinhando as letras que se acrescentou.

DOC. 1: ADLRA, IV/24/C/11 - Registos de óbito da freguesia de Alfeizerão: 1666-1747, fl. 93v

«Em os nove dias do mes de Mayo de mil e setecentos e vinte e outto annos, faleceo com os sacramentos da Penitencia e extrema Unção e não recebeo a Sagrada Eucharistia por impedimento da doença, o Padre Antonio do Coutto, Cura que foi nesta Igreja de S. Joam Baptista, fes testamento em que deixou cem missas por sua alma e sincoenta pellas almas de seus pays, e mil e quatrocentos Reis a Santo Amaro, está enterrado na Ermida do Divino Spírito Santo, na campa do numero vinte, e para que conste fis este assento. Era ut suora.

Cura Antonio do Coutto Mayo»

 

DOC. 2: ADLRA, IV/24/C/12, Registos de óbito da freguesia de Alfeizerão: 1769-1795, f. 20r.21v

 

<Villa / O Pe. António Lopes Silva / fis officios na forma do estilo>

«Aos vinte dias do mês de Setembro de mil e sete sentos e setenta e três, faleceo da vida presente o Pe. António Lopes Silva, com todos os sacramentos, nascido e morador nesta vila de Alfeizirão, freguesia de S. João Bauptista. Fes testamento e foi aberto na forma de uso e costume, deixou a sua sobrinha, Felícia Madeira e testamenteira de seus bens e que esta lhe mandaçe dizer sem [sic] missas pela sua alma de esmola, sento e vinte Reis cada huma e sincoenta pela alma da sua irmã Izabel Maria, esmola de sem reis e vinte pelas alma de seus pais, mais quinhentas missas de tenças pellos padres de Castella, esmola de dous vintens cada huma, mais tres mil e duzentos a Maria da Conceição da atouguia, mais dois cruzados novos a Santo Amaro desta villa e que o seu sobrinho, o Pe. António Lopes lhe diga as missas, tudo a vontade da herdeira e para constar fis este asento, dia, mês, era ut supra, em absencia [na ausência] e por comição do muito Reverendo Prior e Vigário Damião Raimundo Soares de Sá

O Pe. Marcos António de Oliveira»


DOC. 3: Excerto do “Capitulo da Vila de Alfeizerão” (1782) do cronista cisterciense Frei Manuel de Figueiredo (BNP, cod 1484). O capítulo na íntegra com algumas notas interpretativas está disponível emDOC. 3: Excerto do “Capitulo da Vila de Alfeizerão” (1782) do cronista cisterciense Frei Manuel de Figueiredo (BNP, cod 1484). O capítulo na íntegra com algumas notas interpretativas está disponível em https://www.academia.edu/44227572/APONTAMENTOS_COROGR%C3%81FICOS_DE_FREI_MANUEL_DE_FIGUEIREDO_SOBRE_ALFEIZER%C3%83O

 

« A Ermida de Santo Amaro, Imagem milagroza, que muitos annos servio de Parochia, está situada no arrabalde da villa, ao nascente, e ameaçando ruina a mandou reedificar o Parocho actual, Damião Raimundo Soarez de Sá e Lançoens»


domingo, 20 de dezembro de 2020

A civitas de Eburobrittium - o território e os seus limites


A vila de Alfeizerão e toda a sua freguesia inseria-se na civitas de Eburobrittium. Uma civitas era uma cidade romana administrativamente proeminente, possuía jurisdição sobre um dado território e um fórum ou senado ao qual compareciam os seus cidadãos mais importantes; o fórum de uma cidade era o seu vértice político-administrativo, mas também um centro cívico onde convergia a sua vida religiosa e económica. Também era atribuído a designação de civitas ao território dessa cidade.

Quando é finalizada a conquista da Lusitânia pelos romanos, o imperador Augusto divide de forma “artificial” a Península Ibérica em três províncias, a Lusitânia, a Bética e a Tarraconense. A organização administrativa de cada província baseava-se na existência de “civitates” (plural de civitas) que tinham como principal função serem capitais de uma região, centros urbanos, que eram imprescindíveis aos romanos para a organização do seu território na Península e que «foram criados de raiz ou estabelecidos sobre povoações já existentes» (MANTAS, 2009: 168).

Depois de muitas deambulações (Alfeizerão, Évora de Alcobaça, Amoreira de Óbidos, Caldas, etc), a civitas de Eburobrittium foi finalmente identificada com as ruínas encontradas e escavadas na Quinta das Flores, em Óbidos. Para quem tenha em mente uma cidade com a importância que teve Eburobrittium, a área total onde se escavou até agora as ruínas na Quinta das Flores parece irrisória e modesta, mesmo tendo em conta que a construção da A8 sepultou uma parte substancial dos seus vestígios; não obstante, essa identificação funda-se num elemento crucial, o ter-se encontrado aí os vestígios remanescentes de um fórum romano, o que não aconteceria se fosse uma cidade secundária e não uma civitas. Eburobrittium é um topónimo pré-romano, talvez céltico, e a sua existência parece ter origem num centro urbano conquistado pelos romanos e assimilado à sua estrutura administrativa.

Alfeizerão, situada a uns dezasseis quilómetros lineares dessas ruínas, situava-se no interior da Civitas de Eburobrittium, do seu território administrativo. Sobre a sua extensão e limites, transcrevo um trecho elucidativo da lavra de Jorge de Alarcão (ALARCÃO, 1990:381;382):

«A civitas de Eburobrittium, na fachada atlântica, ocupava um pequeno território entre o mar e as serras de Montejunto e dos Candeeiros, cujo festo provavelmente marcava o seu limite oriental. A sul, a ribeira de Alcabrichel servia, talvez de fronteira com a civitas de Olisipo. Quanto ao limite setentrional, é mais difícil de definir, mas poderá ter ocorrido por Évora de Alcobaça e S. Gião (Nazaré).

«(…) Na área da civitas, não é fácil identificar os aglomerados urbanos secundários. Alfeizerão, outrora mais perto do mar, parece corresponder a um “vicus”, que poderá ser a Araducta de Ptolomeu. Seria [Alfeizerão] o porto de Eburobrittium, cerca de 22 km distante da capital [Jorge de Alarcão referencia Eburobrittium em Amoreira de Óbidos].

«(…) Os vestígios romanos na região são por enquanto muito reduzidos. Podem identificar-se, sem grande segurança, onze villae, que não revelam, na sua distribuição, nenhuma nítida atracção pela capital (…) A inscrição de S. Tomás de Lamas foi considerada por Hübner como testemunho epigráfico de uma cidade chamada Trutobriga, sita algures no concelho do Cadaval. Na realidade, tal cidade nunca existiu. A inscrição fazia possivelmente parte de um monumento que assinalaria o limite da civitas e poderia achar-se numa estrada que ligaria Eburobrittium a Scallabis. Outra estrada, de orientação norte-sul, punha Eburobrittium em comunicação com Collipo (a norte) e com as áreas de Torres Vedras e Mafra, estas já no território de Olisipo».

 

 

Fontes:

ALARCÃO, Jorge de, «O Domínio Romano em Portugal», p. 46-47; 88-106, Publicações Europa-América, Mem Martins, 1988.

ALARCÃO, Jorge de, “Portugal, das Origens à Romanização”, in «Nova História de Portugal», volume I, p. 381-382, Editorial Presença, Lisboa, 1990.

GUERRA, Amílcar, «Plínio-o-Velho e a Lusitânia – Arqueologia e História Antiga», Edições Colibri, Lisboa, 1995.

MANTAS, Vasco Gil, «Ammaia e Civitas Igaeditanorum – Dois espaços forenses lusitanos», in Studia Lusitana, 4, p. 167-188, Museo Nacional de Arte Romano de Mérida, Mérida, 2009.

MOREIRA, José Beleza, «A Cidade Romana de Eburobrittium», Mimesis, Porto, 2002.