sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

A CAPELA DE SANTO AMARO – TRÊS “JANELAS” PARA O SEU PASSADO


             A assinalar o dia 15 de Janeiro, indicamos três referências históricas para a capela de Santo Amaro, na forma de duas doações testamentárias e uma reconstrução da capela, todas originadas de párocos da vila. As primeiras, dos testamentos dos padres António do Couto (1728) e António Lopes Silva (1773), enquanto a reconstrução (mandada “reedificar”) da capela foi devida à acção do padre Raimundo Soares de Sá e Lanções, segundo testemunho do cronista frei Manuel de Figueiredo (1782), que empregou presumivelmente nela o numerário legado pelo padre António Lopes Silva.

                Os corógrafos do século XVIII estimavam que a capela era tão antiga como a própria vila - ou perto disso porque, pelos seus traços arquitectónicos, a capela evoca construções similares dos séculos XIV-XV. O Santo Amaro e o seu modesto templo, sempre foi muito acarinhado pelos alfeizerenses e gentes das terras vizinhas, e isso também se espelha na preocupação destes três párocos pela sua manutenção e continuidade. Outro sinal claro da importância dessa devoção é a ocorrência de Amaro na onomástica de pessoas nascidas e baptizadas em Alfeizerão (com mais incidência nos séculos XVII-XVIII), encontrando-se também Santo Amaro como sobrenome, mas provavelmente como indicação da proximidade à capela da residência das pessoas assim conhecidas. Como exemplo: Mariana Francisco de Santo Amaro, no assento de óbito do seu marido Manuel Lopes, com a data de 24 de Outubro de 1727 (ADLRA, IV/24/C/11, fl. 93r).

                Partilho imagens dos três documentos e, na cópia dos textos, suprimi as maiúsculas indevidas e desdobrei as abreviaturas, sublinhando as letras que se acrescentou.

DOC. 1: ADLRA, IV/24/C/11 - Registos de óbito da freguesia de Alfeizerão: 1666-1747, fl. 93v

«Em os nove dias do mes de Mayo de mil e setecentos e vinte e outto annos, faleceo com os sacramentos da Penitencia e extrema Unção e não recebeo a Sagrada Eucharistia por impedimento da doença, o Padre Antonio do Coutto, Cura que foi nesta Igreja de S. Joam Baptista, fes testamento em que deixou cem missas por sua alma e sincoenta pellas almas de seus pays, e mil e quatrocentos Reis a Santo Amaro, está enterrado na Ermida do Divino Spírito Santo, na campa do numero vinte, e para que conste fis este assento. Era ut suora.

Cura Antonio do Coutto Mayo»

 

DOC. 2: ADLRA, IV/24/C/12, Registos de óbito da freguesia de Alfeizerão: 1769-1795, f. 20r.21v

 

<Villa / O Pe. António Lopes Silva / fis officios na forma do estilo>

«Aos vinte dias do mês de Setembro de mil e sete sentos e setenta e três, faleceo da vida presente o Pe. António Lopes Silva, com todos os sacramentos, nascido e morador nesta vila de Alfeizirão, freguesia de S. João Bauptista. Fes testamento e foi aberto na forma de uso e costume, deixou a sua sobrinha, Felícia Madeira e testamenteira de seus bens e que esta lhe mandaçe dizer sem [sic] missas pela sua alma de esmola, sento e vinte Reis cada huma e sincoenta pela alma da sua irmã Izabel Maria, esmola de sem reis e vinte pelas alma de seus pais, mais quinhentas missas de tenças pellos padres de Castella, esmola de dous vintens cada huma, mais tres mil e duzentos a Maria da Conceição da atouguia, mais dois cruzados novos a Santo Amaro desta villa e que o seu sobrinho, o Pe. António Lopes lhe diga as missas, tudo a vontade da herdeira e para constar fis este asento, dia, mês, era ut supra, em absencia [na ausência] e por comição do muito Reverendo Prior e Vigário Damião Raimundo Soares de Sá

O Pe. Marcos António de Oliveira»


DOC. 3: Excerto do “Capitulo da Vila de Alfeizerão” (1782) do cronista cisterciense Frei Manuel de Figueiredo (BNP, cod 1484). O capítulo na íntegra com algumas notas interpretativas está disponível emDOC. 3: Excerto do “Capitulo da Vila de Alfeizerão” (1782) do cronista cisterciense Frei Manuel de Figueiredo (BNP, cod 1484). O capítulo na íntegra com algumas notas interpretativas está disponível em https://www.academia.edu/44227572/APONTAMENTOS_COROGR%C3%81FICOS_DE_FREI_MANUEL_DE_FIGUEIREDO_SOBRE_ALFEIZER%C3%83O

 

« A Ermida de Santo Amaro, Imagem milagroza, que muitos annos servio de Parochia, está situada no arrabalde da villa, ao nascente, e ameaçando ruina a mandou reedificar o Parocho actual, Damião Raimundo Soarez de Sá e Lançoens»


domingo, 20 de dezembro de 2020

A civitas de Eburobrittium - o território e os seus limites


A vila de Alfeizerão e toda a sua freguesia inseria-se na civitas de Eburobrittium. Uma civitas era uma cidade romana administrativamente proeminente, possuía jurisdição sobre um dado território e um fórum ou senado ao qual compareciam os seus cidadãos mais importantes; o fórum de uma cidade era o seu vértice político-administrativo, mas também um centro cívico onde convergia a sua vida religiosa e económica. Também era atribuído a designação de civitas ao território dessa cidade.

Quando é finalizada a conquista da Lusitânia pelos romanos, o imperador Augusto divide de forma “artificial” a Península Ibérica em três províncias, a Lusitânia, a Bética e a Tarraconense. A organização administrativa de cada província baseava-se na existência de “civitates” (plural de civitas) que tinham como principal função serem capitais de uma região, centros urbanos, que eram imprescindíveis aos romanos para a organização do seu território na Península e que «foram criados de raiz ou estabelecidos sobre povoações já existentes» (MANTAS, 2009: 168).

Depois de muitas deambulações (Alfeizerão, Évora de Alcobaça, Amoreira de Óbidos, Caldas, etc), a civitas de Eburobrittium foi finalmente identificada com as ruínas encontradas e escavadas na Quinta das Flores, em Óbidos. Para quem tenha em mente uma cidade com a importância que teve Eburobrittium, a área total onde se escavou até agora as ruínas na Quinta das Flores parece irrisória e modesta, mesmo tendo em conta que a construção da A8 sepultou uma parte substancial dos seus vestígios; não obstante, essa identificação funda-se num elemento crucial, o ter-se encontrado aí os vestígios remanescentes de um fórum romano, o que não aconteceria se fosse uma cidade secundária e não uma civitas. Eburobrittium é um topónimo pré-romano, talvez céltico, e a sua existência parece ter origem num centro urbano conquistado pelos romanos e assimilado à sua estrutura administrativa.

Alfeizerão, situada a uns dezasseis quilómetros lineares dessas ruínas, situava-se no interior da Civitas de Eburobrittium, do seu território administrativo. Sobre a sua extensão e limites, transcrevo um trecho elucidativo da lavra de Jorge de Alarcão (ALARCÃO, 1990:381;382):

«A civitas de Eburobrittium, na fachada atlântica, ocupava um pequeno território entre o mar e as serras de Montejunto e dos Candeeiros, cujo festo provavelmente marcava o seu limite oriental. A sul, a ribeira de Alcabrichel servia, talvez de fronteira com a civitas de Olisipo. Quanto ao limite setentrional, é mais difícil de definir, mas poderá ter ocorrido por Évora de Alcobaça e S. Gião (Nazaré).

«(…) Na área da civitas, não é fácil identificar os aglomerados urbanos secundários. Alfeizerão, outrora mais perto do mar, parece corresponder a um “vicus”, que poderá ser a Araducta de Ptolomeu. Seria [Alfeizerão] o porto de Eburobrittium, cerca de 22 km distante da capital [Jorge de Alarcão referencia Eburobrittium em Amoreira de Óbidos].

«(…) Os vestígios romanos na região são por enquanto muito reduzidos. Podem identificar-se, sem grande segurança, onze villae, que não revelam, na sua distribuição, nenhuma nítida atracção pela capital (…) A inscrição de S. Tomás de Lamas foi considerada por Hübner como testemunho epigráfico de uma cidade chamada Trutobriga, sita algures no concelho do Cadaval. Na realidade, tal cidade nunca existiu. A inscrição fazia possivelmente parte de um monumento que assinalaria o limite da civitas e poderia achar-se numa estrada que ligaria Eburobrittium a Scallabis. Outra estrada, de orientação norte-sul, punha Eburobrittium em comunicação com Collipo (a norte) e com as áreas de Torres Vedras e Mafra, estas já no território de Olisipo».

 

 

Fontes:

ALARCÃO, Jorge de, «O Domínio Romano em Portugal», p. 46-47; 88-106, Publicações Europa-América, Mem Martins, 1988.

ALARCÃO, Jorge de, “Portugal, das Origens à Romanização”, in «Nova História de Portugal», volume I, p. 381-382, Editorial Presença, Lisboa, 1990.

GUERRA, Amílcar, «Plínio-o-Velho e a Lusitânia – Arqueologia e História Antiga», Edições Colibri, Lisboa, 1995.

MANTAS, Vasco Gil, «Ammaia e Civitas Igaeditanorum – Dois espaços forenses lusitanos», in Studia Lusitana, 4, p. 167-188, Museo Nacional de Arte Romano de Mérida, Mérida, 2009.

MOREIRA, José Beleza, «A Cidade Romana de Eburobrittium», Mimesis, Porto, 2002.

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Alfeizerão mais pobre: a demolição da Casa do Relego

 


      A Casa do Relego, cuja origem era atribuída ao século XV, já não existe, no lugar onde as suas vetustas e arruinadas paredes ainda se erguiam teimosamente ao fim de quinhentos anos, apenas existe chão e vazio.

     Falemos um pouco dela, como numa elegia póstuma a alguém que, em vida, não se conseguiu honrar e estimar.

     O relego era um dos muitos direitos do Mosteiro donatário, que em Alfeizerão, como nos outros Coutos de Alcobaça, traduzia-se por deter o Mosteiro a exclusividade de venda de vinho de 1 de Janeiro a 31 de Março; segundo as cartas de povoamento de 1332 e 1422, o relego era regulado pelo texto do foral de Santarém (DGA/TT, Gavetas, Gav. 15, mç. 15, n.º 24), o que significava que quem desobedecesse a essa determinação, à primeira vez pagaria 5 soldos, à segunda outros cinco soldos e à terceira por «testemunho de homens bons todo o vinho seja vertido e os arcos da cuba talhados [partidos]». O direito do relego tornava necessária a existência de um edifício onde o mosteiro recebia a quinta parte das uvas colhidas (como os celeiros para os cereais e legumes), e onde se produzia, armazenava e vendia o vinho. 

     A Dra. Iria Gonçalves, na sua obra de referência sobre os Coutos de Alcobaça ( «O Património do Mosteiro de Alcobaça nos Séculos XIV e XV», Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 1989) compulsou diversos elementos sobre o relego de Alfeizerão para os séculos XIV e XV e, depois desse período, encontram-se muitas outras referência documentais, das quais referimos apenas uma, porque nos permite constatar que o “relego” não era apenas um direito senhorial, mas correspondia a um lugar/edifício onde ele era aplicado. Desde muito cedo se tornou prática comum o mosteiro arrendar o direito do relego e em 1690, no triénio do abade Frei Sebastião de Sotto Maior, ele é arrendado a António Lopes taleigueiro, arrendamento que renova em 1693 e 1696 («Livro das Folhas de Receita e Despesa no Triénio do Padre Geral Frei João Osório», DGA/TT, Ordem de Cister, Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, liv. 203) mas neste último triénio é a sua mulher e o seu filho que prosseguem com o relego porque este arrendatário falece a 26 de Janeiro de 1696 – no seu assento de óbito (DGA/ADLRA, IV/24/C/11, f. 64r) é mencionado como “António Lopes do relego”, referência clara ao relego como lugar onde morava, à casa do relego, como chegou até ao nosso século.

    Sobre o edifício em si, na ficha patrimonial n.º IPA.00001847 do SIPA (Sistema Informação do Património Arquitectónico) pode-se ler: «Quinta de produção com casa de um piso marcada pela existência de arco conopial da fresta da fachada principal e o nome da casa e da rua atestam a época de construção e a função do edifício (armazém e venda do vinho senhorial)». É nessa janela com arco conopial de estilo manuelino que assentava a datação estimada do edifício desaparecido. Em termos oficiais, o edifício foi classificado a 12 de Novembro de 1974 como imóvel de Valor Concelhio, mas um despacho de 28 de Janeiro de 2008 retirava-lhe essa (ténue) protecção, ficando desprovido de qualquer classificação, situação que se manteve até agora com os resultados que estão à vista. Notando o aspecto preocupante do edifício depois de ter ruído o telhado da parte onde se encontrava esta janela, já tínhamos feito uma exposição escrita sobre o assunto e em Julho deste ano, reuni os elementos acima citados e outros dados históricos dispersos numa nova exposição, esta ao SIPA e a título pessoal, numa tentativa infrutífera para que o imóvel fosse reavaliado.

     Neste momento, a casa do relego deixou de existir, foi apagada da face da terra de forma irrecuperável. Isto é muito triste e se não servir para mais nada, que ajude um pouco as pessoas a despertar, a estar atentas, para que perdas como esta não se voltem a verificar e se preserve para nós e para os que nos sucederem, o património que nos foi legado.

 

José Coutinho

23 de Novembro de 2020