quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

O trilho dos manuscritos do mosteiro

Gravura de 1886 da sala da Livraria
(in: BARBOSA, Inácio de Vilhena, Monumentos de Portugal - Históricos, artísticos e arqueológicos,
Castro Irmão Editores, Lisboa, 1886.)


1 - A dispersão

     Bernardo Vila Nova, num capítulo consagrado à Dispersão da Livraria do Mosteiro de Alcobaça (em Subsídios para a História de Alcobaça, Tipografia Alcobacense, Alcobaça, 1956), narra-nos algumas das desventuras por que passou a livraria do Mosteiro de Alcobaça até ao seu desaparecimento. Que, no tempo de Frei Manuel dos Santos (1672-1740), a livraria estava, nas palavras do cronista, «assaz truncada e meio roubada», que muitas obras foram roubadas por leitores laicos que entravam e saíam sem serem vistoriados, que seguiram para Espanha no tempo da dominação filipina e acabaram no Escorial, que frei Bernardo de Brito levou dali todas as obras que precisava para escrever os seus livros, sem nunca terem voltado a Alcobaça depois disso.
     Com a terceira invasão francesa, o Mosteiro é incendiado, e muitos livros destruídos ou roubados; e mais roubos ocorrem em 1833, durante o levantamento popular desse ano: um grupo de liberais apodera-se da praça de Peniche, abandonada pelos miguelistas, e alguns desses soldados teriam vindo a Alcobaça e saqueado novamente o mosteiro e a sua biblioteca.
     A partida dos monges em 26 de Julho de 1833 e o fim da Ordem cisterciense de Alcobaça (1834), dita o fim inexorável da livraria. Quando se tenta salvar o que resta da livraria, já muito se havia perdido. Bernardo Vila Nova transmite uma citação (aparentemente) espúria acerca desse tardio salvamento: «Os livros que escaparam ao roubo desinteligente, que não tinha outro fim senão rasgar e aproveitar as folhas em embrulhos de tenda, foram transportados em carros para o porto de S. Martinho, onde embarcaram para Lisboa. Os carros foram semeando de livros e manuscritos a estrada. Os rapazes apanhavam-nos, rasgavam-nos e faziam barcos e chapéus de papel com as preciosas folhas dos livros raros».
     Existirá certamente algum exagero nesta descrição colorida da forma como os livros foram acondicionados e transportados para o porto de S. Martinho, como veremos em seguida.

2 - Vinte e sete caixotes com livros

     O caminho dos livros de Alcobaça para Lisboa possui o episódio curioso da existência em Alfeizerão de vinte e sete caixotes com livros da livraria do mosteiro. O episódio, bem como um dos documentos que o narra, foi já tratado por Carlos Casimiro de Almeida na sua monografia Alfeizerão - Apontamentos para a sua História, pp. 174-175 (edição da Junta de Freguesia de Alfeizerão, 1995); e aqui trazemo-lo de volta, com alguns aditamentos.
      No ano de 1835, e em resposta a acusações que lhe haviam sido movidas pelo padre João de Deus Antunes Pinto, o ex-corregedor de Alcobaça, Antonio Luiz de Seabra, faz publicar as suas Observações sobre um papel enviado à Camara dos Senhores Deputados a cerca da arrecadação dos bens do mosteiro daquella villa (Typographia de Eugenio Augusto, Lisboa).
      Nesta sua defesa, o ex-corregedor conta que, à sua chegada a Alcobaça, a «livraria, que era o que havia mais importante, e que tinha sido consideravelmente desfalcada pelo destacamento francês, [e] guerrilhas que ali vieram de Peniche, e por algumas outras pessoas, estava ainda de portas arrombadas e abertas, e em completo abandono. Mandei logo verificar por um auto o seu estado, trancar as portas e pôr-lhe sentinelas». Além disso, alega, teria oficiado «ao Juiz de Fora de Óbidos e Caldas para fazer recolher os volumes que ali tinham vendido os franceses na sua passagem: pediu ao Governo que lhe recomendasse esta diligência, e o mesmo ordenasse para Peniche, para onde tinham sido levadas algumas carradas, e cargas de livros, e de outros efeitos do Mosteiro» (página 4).
    Ao procurar refutar as acusações que lhe haviam sido dirigidas, informa-nos que «alguns soldados franceses venderam livros nas Caldas e em Alfeizerão, e que uma grande cópia deles foi levada para Peniche e lá apreendida» (p. 13): e mais adiante (p. 33), que a maior parte dos livros «foram daqui levados para Peniche (antes da minha chegada) e me consta que o Governador tem tratado de os recolher. Alguns há também nas Caldas, e que ali foram vendidos por soldados franceses, ou se acham em poder dos Voluntários comandados por um certo Vasa [Manuel Vasa, ou Vaza], que não pouco concorreram aqui para os estragos deploráveis feitos no Mosteiro. Devo contudo acrescentar que os monges levaram consigo, ou puseram em recado, em sítio que ainda se ignora, e mesmo não convirá por ora descobrir, os manuscritos da Biblioteca que faziam a sua principal riqueza, e a maior parte dos livros que eles chamavam proibidos, cujo gabinete está vazio». Noutra parte (documento nº3), reportando-se a uma conversa havida na Casa da Câmara da vila da Pederneira, diz que os livros que os frades levaram consigo de Alcobaça haviam sido confiados ao Prefeito da Beira Alta e que se encontrariam à data no convento de Maceira Dam, ou seja, no Mosteiro de Santa Maria em Maceira Dão, distrito de Viseu.
     O documento nº4 das Observações, constitui o auto de abertura  e relacionamento dos 27 caixotes que se encontravam em depósito em Alfeizerão em «casas pertencentes ao Mosteiro de Alcobaça», e que foram abertos por um carpinteiro de Alfeizerão, António Rocha, de seu nome, para ser feita a relação dos manuscritos que continham, e novamente fechados e pregados pelo mesmo. Como testemunhas, surgem-nos, além do próprio António Rocha, António Joaquim de Oliveira, de Alfeizerão, e o pároco da vila, frei José de S. Joaquim.







      Num outro documento, Resposta do Visconde de Seabra aos seus Calumniadores (Imprensa da Universidade, Coimbra, 1871), obtemos alguns dados sobre a anarquia e o vazio de poder que coroaram a partida dos monges do mosteiro, com saques e levantamentos populares por todas as terras que antes estavam sob a sua alçada - fala-se aí da acção da «guerrilha do Vaza, de Santa Catarina», e do roubo de cereais na Quinta do Campo, do Valado dos Frades, e nas «feitorias da Maiorga, Famalicão e Selir de Mattos». 
     Sobre os 27 caixotes de livros, dois dos documentos abonatórios que acompanham o libelo esclarecem-nos que os livros haviam sido inicialmente recuperados no Valado dos Frades, e encaminhados para Alcobaça e Alfeizerão para, posteriormente, serem embarcados para Lisboa no porto de S. Martinho. Transcrevo, na íntegra, ambos os documentos, o da Câmara Municipal de Alfeizerão, e o da Câmara Municipal de São Martinho do Porto:



Documento - fl. 74


Antonio Gregorio, Presidente da Camara Municipal d'esta Villa d'Alfeizirão e os mais membros da mesma abaixo assignados, etc. Aos senhores que a presente virem attestamos que o ex-Corregedor da Comarca de Alcobaça, Antonio Luiz de Seabra, em quanto serviu o cargo pugnou pelos Direitos da Soberana Legitima e pelo progresso e triumpho da Causa Constitucional, pois apenas tomou posse do seu logar immediatamente proclamou aos povos de toda a comarca, fazendo ver os beneficios que a nossa Augusta Soberana lhe concedia com seu governo; não se poupando o mesmo ex-Corregedor a trabalho algum pessoal, a ponto de se reunir ás fileiras como soldado no dia seis de janeiro, quando os rebeldes se dispunham a entrar em Alcobaça, como é publico e constante nesta comarca, promovendo com zelo e actividade o sequestro e arrecadação dos bens do abandonado mosteiro e seu arrendamento, e do mesmo modo se houve com a arrecadação do dinheiro da siza e decima para não serem extraviados: fornecendo as tropas estacionadas em Alcobaça sem commetter o menor vexame aos povos, nem mesmo aos da comarca, fazendo de prompto retirar da mesma Villa de Alcobaça para esta os preciosos manuscriptos, denunciados no logar do vallado, e vindo elle Ministro pessoalmente fazer aqui o seu relacionamento, promoveu a sua conducção para o porto de San Martinho; mostrando nisto toda a actividade que merecia tal diligencia; por isso os mesmos povos d'esta comarca ainda hoje respeitam a sua memoria. E por ser verdade todo o referido fizemos passar a presente, em fé do que assignamos. Alfeizirão, em Camara de dezoito de maio de mil oitocentos e trinta e quatro. E eu Jorge Paulo de Oliveira, Tabellião do judicial e notas e Secretario das Camaras e Villas de Alfeizirão e Sam Martinho, que o escrevi. - Antonio Gregorio - Joaquim Bento de Sousa - Correia e Sá - Antonio Joaquim d’Oliveira.



Documento - fl. 80


José Antonio do Couto, Presidente da Camara Municipal d'esta Villa de Sam-Martinho e os mais membros abaixo assignados, etc. Aos senhores que a presente virem: attestamos que o Ex-Corregedor da comarca d'Alcobaça, Antonio Luiz de Seabra, em quanto serviu o dito cargo, fez os maiores esforços pelo completo triumpho dos inauferiveis direitos da nossa Augusta Soberana e legitima Rainha e da Causa Constitucional, porque apenas tomou posse de seu logar proclamou aos povos da comarca, dirigindo em continente a todos os Concelhos proclamações em as quaes Ihes demonstrava, com toda a evidencia, os exuberantes beneficios que a mesma magnanima Soberana lhes concedia com seu governo; não se poupando o referido Corregedor a trabalho algum, tanto que tentando os rebeldes no dia 6 de Janeiro de corrente anno entrar em Alcobaça, elle rapidamente se uniu ás fileiras como soldado, para, por si e com seu exemplo coadjuvarem a aguerrida e valente guarnição que a defendia, o que poderam conseguir a pezar de superior força que os atacou; feitos estes notorios, e de que são testimunhas os povos d'esta comarca; promoveu tambem com todo o zêlo e energia o sequestro e arrecadação dos bens do abandonado mosteiro d'aquella Villa, e seu arrendamento, e não menos zeloso e activo foi na arrecadacão do dinheiro da decima e siza para obstar a que por qualquer modo fosse extraviado; fornecendo a tropa estacionada em Alcobaça de prompto e com todo o necessario sem commetter o minimo vexame aos povos; fazendo rapidamente retirar d'Alcobaça para a Villa d'Alfeizirão os preciosos manuscriptos pertencentes ao dicto abandonado mosteiro, vindo logo pessoalmente á dicta Villa d'Alfeizirão relacional-os, e concluido este relacionamento os fez por em esta Villa em seguro deposito, para d'ella os remetter para Lisboa; mostrando em taes diligencias aquelle ardente interesse que o seu caracter o caracteriza; e por isso todos os povos d'esta comarca se recordam com saudade d'um Ministro que tanto anhela pelo bem do Imperante e Patria. Sam-Martinho, em Camara de 21 de Maio de 1834. Eu Jose Paulo d'Oliveira, Tabellião do judicial e notas, Secretario da Camara,. que o escrevi. - José Antonio do Couto.- José dos Santos Fradinho.- Antonio Ribeiro.


3 - A viagem dos livros

    Do caminho confuso destes livros até à sua partida para Lisboa, nos dá conta Paulo J. S. Barata em Os Livros e o Liberalismo: da Livraria Conventual à Biblioteca Pública (edição da Biblioteca Nacional de Portugal, ano de 2003), obra que representa a publicação da sua tese de mestrado na Universidade Aberta.
    Transcrevo, com a devida vénia, os dois parágrafos (páginas 28 e 29) que abordam o nosso tema, omitindo apenas as indicações das fontes arquivísticas, que poderão ser encontradas na obra original:

    «A 29 de Novembro de 1833, ordena-se que a Biblioteca Pública [de Lisboa] receba 28 caixotes de impressos e manuscritos provenientes da livraria do Mosteiro de Alcobaça, que haviam sido embarcados no porto de Peniche, cuja chegada estaria iminente. Cerca de três meses volvidos, porém, os caixotes contendo os livros de Alcobaça permaneciam ainda no porto de S. Martinho, expedindo-se então, a 6 de Março de 1834, após estranhar-se demora, novas ordens ao corregedor da comarca de Alcobaça para o transporte dos referidos caixotes de Peniche para Lisboa. Após a articulação das diferentes entidades envolvidas no transporte, designadamente o Intendente da Marinha do Porto e o Ministério da Marinha, decide-se que o mesmo será assegurado pelo primeiro navio do estado que regresse do Porto para Lisboa, no caso, a rasca nº8 [embarcação de pesca], capitaneada pelo mestre João Pereira Dias.
     «As atribulações e a demora do transporte fica por certo a dever-se à confusão gerada com um caixote supostamente em falta. Em finais de 1833, o corregedor interino de Alcobaça, António Luís de Seabra, refere ter acondicionado num caixote os volumes que se encontravam em dois e, em Março de 1834, o então corregedor de Alcobaça, Francisco Boto Pimentel de Mendonça, assevera serem 27 e não 28 os caixotes entregues ao depositário. Efectivamente é de apenas 27 o número de caixotes de livros embarcados [destaque nosso], não obstante, no início de 1835, dar entrada na Biblioteca Pública um caixote proveniente da livraria de Alcobaça».
     Para finalizar, uma última informação a considerar: num artigo de Paulo J. S. Barata baseado nesta sua tese de mestrado (Roubos, Extravios e Descaminhos nas Livrarias Conventuais Portuguesas Após a Extinção das Ordens Religiosas: um Quadro Impressivo), colhemos o pormenor dos manuscritos e impressos enviados para Alfeizerão para serem arrolados, terem sido «achados pelo corregedor de Alcobaça em hum escondrijo na sachristia da igreja do Valle [Valado]».
   


José Eduardo Lopes

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

O DIÁRIO DE UM OFICIAL DE CAVALARIA


Dois Dragões Ligeiros (Light Dragoons) no quadro Glimpse of the Enemy, Peninsular War, 1809

pintado por William Barns Wollen em 1912
      William Tomkinson, o autor do diário que aqui estudamos, nasceu em 1790, e com apenas 18 anos junta-se ao regimento de cavalaria dos Dragões Ligeiros (Light Dragoons) e embarca em 1809 em Falmouth com destino a Lisboa, numa viagem calma que durou oito dias. Desembarca em Lisboa a 15 de Abril e, logo a 11 de Maio, anota no seu diário que viu três padres enforcados pelos franceses numa árvore junto à estrada e, nesse mesmo dia, um soldado de infantaria morto (o primeiro homem morto que alguma vez vi). Esse espanto não se voltará a manifestar nas páginas do diário, porque a morte e os mortos acompanharão a sua vida de soldado. Tomkinson lutará em escaramuças e em grandes batalhas (Buçaco, Salamanca, Vitoria, Fuentes d’Onoro, Waterloo), será ferido e presenciará as injustiças e as agruras da guerra, antes de regressar definitivamente a Inglaterra em Dezembro de 1815. Este diário foi editado e publicado pelo seu filho James, a título póstumo.
       O contexto deste diário na Guerra Peninsular, é o da Terceira Invasão Francesa, quando o exército de Massena, detido pelas Linhas de Torres na sua progressão para Lisboa, permanece na antiga província da Estremadura e contemporiza, procurando levar de vencida as forças inglesas, ou chegar a Lisboa pelo Alentejo. 
       Desta obra, seleccionei e traduzi o segmento do diário (páginas 65 a 78) que decorre na nossa região, em localidades como Caldas, Alfeizerão, Famalicão, Charnais ou Alcobaça e que começa com a partida do aquartelamento inglês de Malaqueijo para Rio Maior e Caldas, a 6 de Janeiro de 1811, e se suspende no dia 7 de Março do mesmo ano quando Tomkinson se pôe em marcha para se juntar em Leiria ao grosso do exército que se movimenta no encalço de Massena. Se algumas povoações e cidades da zona centro - como Leiria, Caldas, Peniche ou Santarém - eram, nitidamente, posições estratégicas ocupadas por uma das duas facções beligerantes, a maior parte do território dos coutos de Alcobaça situava-se em terra-de-ninguém, e era palco de combates e escaramuças entre os dois exércitos. Outra realidade, que o texto traduzido apenas aflora, é a existência aqui de algum tipo de milícias populares (refere-se um grupo de camponeses a atuar em Santa Catarina) que tenta importunar os militares franceses, ou resistir, de certa forma, à pilhagem e destruição levada a cabo por eles.
       Sobre a tradução, é importante sublinhar que o que se apresenta aqui não é uma transliteração negligente, teve de existir uma adaptação - que tentamos que fosse criteriosa - do texto à nossa língua, com algumas divergências ocasionais. Alinhavada a tradução, ela foi, a meu pedido, revista e corrigida pelo meu irmão, Carlos Manuel Coutinho, a quem agradeço publicamente pelo auxílio prestado.
       A grafia dos topónimos no texto também é, naturalmente, diferente, e ainda que a maior parte das vezes fosse óbvia, identifico, sem certezas, o Alhinadie mencionado por Tomkinson com Alcanede, atendendo à sua proximidade a Rio Maior (cerca de 16 quilómetros) e a Malaqueijo (19 quilómetros, aproximadamente), e à sua ocupação pelos franceses durante esta fase da Guerra Peninsular. A forma como cada topónimo é referido por Tomkinson aparece entre parênteses rectos na primeira vez em que aparece no texto. Entre parênteses rectos, também interpolei algumas notas sucintas; as restantes, figuram em rodapé.
       A hiperligação para a obra integral encontra-se, infra, no seu registo bibliográfico.

TOMKINSON, William, The Diary of a Cavalry Officer - on the Peninsular War and Waterloo Campaigns, editado pelo seu filho James Tomkinson, e publicado por Swan Sonnenschein & Co., Londres, 1894.



Mappa das Linhas de Torres Vedras e sua ligação com Lisboa nos annos de 1810 e 1811
(Gravura anónima, Lisboa: Lithographia da Imprensa Nacional, s/d)

Janeiro, 6º dia [de 1811].
O capitão Cocks [1] recebeu ordens de Lord Wellington para mover o seu próprio esquadrão e um esquadrão dos Hussardos [Hussars] para as Caldas da Rainha [Caldas de la Reyna]. Nós, neste dia, marchámos para Rio Maior [Rio Mayor], duas léguas na nossa rota.


Janeiro, 7º dia.
Nós, neste dia, com o nosso esquadrão e o tenente Dekin dos Hussardos, marchámos para as Caldas, três léguas a poente de Rio Maior.
O brigadeiro-general Blunt [2], ao serviço dos portugueses, encontrava-se mais adiante, em Alfeizerão [Alfeseron], uma aldeia a uma légua comprida das Caldas, na estrada para Alcobaça [Alcabaça]. Ele tinha consigo, aproximadamente, setecentos recrutas do seu depósito militar de Peniche, empregues em conduzir gado e transportar milho para a retaguarda.

De Leiria a Alcobaça são quatro léguas, e quatro até às Caldas. O inimigo mantinha as suas posições três léguas para cá de Leiria e, geralmente, um pequeno destacamento em Alcobaça, não fixo, mas enviado apenas para obter provisões. A nossa função é vigiar as forças em Leiria, e ter o cuidado de enviar atempadamente informação de qualquer atividade delas nesta estrada. Das Caldas a Torres Vedras são apenas seis léguas, e se o inimigo fizer uma rápida ofensiva, mal haverá, calculo eu, tempo para tomarmos a dianteira na retirada do Cartaxo [Cortaxo]. Recebemos informações constantes do camponeses que chegam das linhas inimigas e não tenho dúvidas de que ouviríamos falar de qualquer avanço que o inimigo pudesse tentar nessa estrada, porque antes de este poder realizar-se, teriam de mover tropas de Tomar [Thomar] ou das suas proximidades para fortalecer as que se encontram agora em Leiria.
Pouco tempo depois de sairmos de Óbidos, o Major Fenwick [3] avançou para Alcobaça, e foi muito bem sucedido em capturar muitos dos destacamentos inimigos. Para um destacamento inimigo de oitenta homens a caminho de Évora, a uma légua de Alcobaça, ele enviou um oficial com cem homens para os atacar. À sua chegada, este descobriu que se haviam posicionado dentro de uma casa, prontos para os receber. O oficial colocou os seus homens de forma a prevenir a sua saída da casa, com sentinelas a vigiá-los e a enviar informações a Fenwick, que, atendendo às circunstâncias, se dirigiu para aí com um reforço de cem homens para os auxiliar. Quando estava já a um quarto de milha de Évora, soube que tinham abandonado a casa e estavam envolvidos numa escaramuça com os homens enviados inicialmente. Ele acorreu na dianteira, ordenando aos seus homens que o seguissem logo que possível. Ao chegar, empunhou um mosquete, chamando os homens para a carga. Tinha chegado a umas cinco jardas deles quando um homem se virou para ele e disparou, o tiro atravessou-lhe o corpo, e aí terminou o episódio. Ele foi levado para Alcobaça, e daí para as Caldas, mas morreu antes de ali chegar. Foi sepultado na capela das Caldas, a seu pedido. Lord Wellington, falando do assunto, prestou-lhe um elevado louvor num despacho seu. Não havia um homem nas imediações que não lamentasse a sua perda e o inimigo livrou-se do seu vizinho mais incómodo.


Janeiro, 9º dia.
O capitão Cocks subiu até próximo de Alcobaça com uma patrulha e encontrou um pequeno destacamento de infantaria a saquear as aldeias, e capturou-o. Esse destacamento tinha vindo diretamente de Santarém e estava afastado de qualquer apoio militar. Lord Wellington pode não gostar de destacar os seus homens para tão longe apenas para prevenir a pilhagem – única forma de subsistência do inimigo – mas enviou, no entanto, dois esquadrões para as Caldas, e isso pode ter sido feito, principalmente, para impedir que o inimigo aprovisionasse muito na região. Agora que Leiria está ocupada em força, eu temo que os franceses enviem destacamentos demasiado fortes para nós.

O inimigo tornou-se especialista em descobrir onde os habitantes escondem o seu cereal porque eles alagam o terreno em volta das casas (quando é possível fazê-lo), e escavam onde a água se afunda no chão, que é, geralmente, onde o milho está enterrado. Do mesmo modo, medem o exterior da casa e se as medidas do interior da casa não corresponderem às de fora, eles regozijam-se (quando medem menos) porque existe aí algum esconderijo secreto, o que é muito comum encontrar por todo o país. Pelo seu próprio sistema de governação e pelas exorbitantes exigências dos clérigos, eles possuem sempre algum esconderijo para o seu cereal, vinho, azeite, etc.

Um desertor chegou de Leiria que pertencia aos reforços chegados mais recentemente. Ele contou que pertencia ao 9º Corps d’Armée [em francês no original], sob o comando do general Drouet, conde de Erlon. Eles vieram de França com trinta e seis mil baionetas, mas calcula que as forças, no total - com a doença, algumas baixas no norte em duas refregas com as milícias de Silveira [4], perto de Pinhel e Celorico - estejam reduzidas a trinta mil efetivos. Eles deixaram fortes destacamentos na Beira Alta e não trouxeram para baixo mais do que dez mil soldados de infantaria e possuíam apenas a cavalaria suficiente para os deveres normais.


Janeiro, 11º dia.
Nós enviámos uma patrulha diária para a estrada de Alcobaça. Eu fui neste dia com outros oito homens, e ao chegar à aldeia da Cela [Sella], a três léguas das Caldas, eu encontrei o inimigo na aldeia, com o pequeno piquete de vigilância de um sargento um pouco retirado para o nosso lado. Comuniquei-o ao brigadeiro-general Blunt, em Alfeizerão e, em consequência, ele retirou-se para Óbidos. O objetivo do inimigo era apenas saquear; seguiram-me até eu passar a ponte de Charnais [Sharnais] e, deixando uma pequena unidade de cavalaria a vigiar a estrada, eles pilharam as aldeias perto da Cela. Permaneci na ponte até escurecer, altura em que o inimigo se retirou. Coloquei um sargento de piquete na ponte e voltei para as Caldas. Duas centenas de recrutas do brigadeiro-general Blunt tinham permanecido nas Caldas para pernoitar. O sargento que eu deixara de piquete atravessou a Cela em patrulha durante a manhã. O inimigo tinha voltado para Alcobaça. Era um forte destacamento, composto por um regimento de infantaria e um de cavalaria.


Janeiro, 17º dia.

Eu, neste dia, patrulhei para Este da ponte de Charnais, enviando dois homens para a passagem da ponte para permanecer aí até eu regressar. Mal havia atravessado o rio quando ouvi dois tiros de aviso disparados por eles, em resposta aos quais eu regressei, e descobri que duas companhias de infantaria tinham cruzado a ponte, e estavam a pilhar a aldeia do Valado [Vallada, o Valado de Santa Quitéria]. Ficaram cerca de uma hora na aldeia e então retiraram-se para o lugar de onde haviam partido pela manhã.

O tenente-coronel William Tomkinson.
              Retrato extraído do seu diário.


Janeiro, 18º dia.
Em consequência do pequeno destacamento que havia passado a ponte de Charnais na véspera, o capitão Cocks apelou ao brigadeiro-general Blunt para colocar nas Caldas alguma da guarnição de Óbidos. Eles marcharam para as Caldas ao raiar do dia, cerca de trezentos, e estes, com parte dos dois esquadrões que aí tínhamos, subiram a colina na direção da ponte de Charnais. A patrulha na dianteira, avistou um destacamento inimigo, que eles pensaram que iria passar a ponte como na véspera, e cruzaram-na antes deles. O inimigo não o fez, e não mais os viram. Eu era oficial de dia, e permaneci nas Caldas. Por volta das duas, ao fazer a ronda pelos piquetes, vi todos os camponeses a correr em direção às Caldas, e estes disseram-me que o inimigo estava a avançar pela estrada junto ao mar. Na mesma altura, dois Dragões franceses apareceram em frente ao Reguengo [Rayengo], a cerca de uma légua das Caldas. Levei dois homens até à aldeia, em jeito de patrulha, e nada encontrei até entrar na aldeia, altura em que vi os dois cavalos dos Dragões na rua, com os seus donos dentro de uma casa, a pilhar. Afastados, um pouco mais abaixo, estavam cinco deles, apeados. Passei pelos dois primeiros e carreguei sobre os cinco restantes; eles desembainharam as espadas mas, colhidos pela nossa cavalgada, ofereceram pouca resistência (feriram-me ligeiramente na mão direita), fugindo para dentro das casas. Conseguimos apenas prender um homem, e capturar três cavalos; a infantaria deles estava tão próxima que me vi obrigado a sair da aldeia o mais depressa que pude. O homem pertencia ao 6º regimento de Dragões. Eles deitaram-se no chão [os outros Dragões inimigos], e nós não conseguimos erguê-los para os levar dali connosco.

O capitão Cocks, sabendo que o inimigo se encontrava à esquerda, desceu para a planície, e eu encontrei-o quando saía do Reguengo. Enquanto isso, o inimigo tinha completado a sua pilhagem na Serra do Bouro [Sierra de Bura], junto ao mar, e estava a retirar-se. O tenente Hilton, dos Hussardos, seguiu na sua retaguarda e capturou quatro soldados de infantaria. O capitão Cocks, diante do Reguengo, fez alguns prisioneiros, e a patrulha da Foz [Fossa] capturou dois da Cavalaria. Ao todo, capturámos catorze homens e treze cavalos. O destacamento inimigo consistia em mil homens - metade deles da Cavalaria - às ordens do coronel Le Fevre, e era oriundo de Santarém. Pelo modo descuidado como se haviam dispersado, eles pareciam não ter a mínima ideia de que estavam tão próximos do inimigo; e se, em vez de concentrarmos a nossa atenção na ponte de Charnais, tivéssemos tido conhecimento deste destacamento, muitos mais prisioneiros poderiam ter sido feitos.

Os recrutas de Óbidos, retiraram-se para lá à noite, deixando um forte piquete nas Caldas. O inimigo retirou-se para trás de Alfeizerão.

Do pequeno incidente que tive no Reguengo, eu recebi uma ligeira estocada na mão direita com um sabre. Os três cavalos foram vendidos por 256 dólares, ou 64 libras.


Ordens da Divisão de Cavalaria
Quinta de Chavães, 22 de Janeiro de 1811.

O major-general Slade ficou muito satisfeito com o relatório que lhe fez o major-general Anson sobre a corajosa conduta do tenente Tomkinson, da 16ª Divisão dos Dragões Ligeiros, quem, com dois homens, atacou sete homens da cavalaria inimiga, dispersando-os e capturando um homem e três cavalos (a 18 de Janeiro). O major-general Anson terá o prazer de transmitir ao tenente Tomkinson e aos dois homens envolvidos, os melhores agradecimentos do major-general Slade pela bravura demonstrada por eles na ocasião, e para lhes assegurar do prazer que terá em participar o mesmo ao Comandante das Forças.
Assinado
J. Ellen
(Tenente-coronel e assistente adjunto-general).


Janeiro, 19º dia.
Pelo que os desertores nos contaram ontem, o capitão Cocks supõe que o inimigo prosseguirá a sua pilhagem como ontem. O tenente Hilton, dos Hussardos, foi enviado para as colinas acima de Alfeizerão, para nos informar caso o inimigo se deslocasse; em vez disso, ele por sua iniciativa desceu dos montes para perseguir alguns soldados da infantaria inimiga que se haviam afastado de Alfeizerão. Ao vê-los, eles recuaram, e ele alcançou-os mesmo quando se embrenhavam no bosque junto à aldeia. Um deles virou-se e disparou sobre Williams, das tropas do capitão Cocks, e o chumbo atravessou-lhe o ombro. O homem estava tão próximo dele que queimou o seu rosto com a pólvora. Nós esperámos nas Caldas pelo relatório do tenente Hilton; este, ao retomar o ponto alto que havia abandonado, avistou o inimigo na planície, movendo-se de forma descuidada como no dia anterior. Era agora demasiado tarde para fazer alguma coisa, e perdera-se uma boa oportunidade de fazer alguns prisioneiros. Abandonar as colinas foi um grande erro da parte de Hilton. Williams recuperou bastante bem, e esteve ainda no regimento muitos anos depois disso.

O capitão Cocks solicitou outra vez mais infantaria ao brigadeiro-general Blunt. Quatrocentos marcharam para as Caldas às três da madrugada.

Eu fui até às colinas acima de Alfeizerão e as tropas deslocaram-se com o propósito de capturar os destacamentos inimigos no vale, caso estivessem em movimento, como na véspera. O inimigo deveria ter tido conhecimento que a infantaria se dirigia para aí a partir das Caldas, porque uma hora depois dela se pôr a caminho, eles deixaram Alfeizerão e recuaram para Alcobaça. Um pequeno destacamento de quinze soldados de infantaria, em pilhagem, veio para Alfeizerão, mas não pertenciam ao outro destacamento. O inimigo danificou o convento de Alcobaça, com várias casas destruídas na vila.

O tenente Bishop, do 16º regimento, na sua patrulha diária, atacou vinte Caçadores franceses do Regimento de Hanover. A sua patrulha compunha-se de seis homens; ele e mais dois homens desciam a rua à esquerda na Vestiaria [Viseterea], e os outros quatro na rua à direita. Os quatro homens encontraram-se com o inimigo e acordaram em disparar um tiro e, se ele respondesse, iriam carregar sobre ele. Os franceses estavam a carregar os seus cavalos com milho indiano, metade estava sobre as montadas e a outra metade ainda não estava pronta. As coisas sucederam-se assim. Os quatro homens carregaram, e Bishop, subindo com os outros dois homens, garantiu a captura de oito homens e doze cavalos, com os quais marchou para as Caldas. Muitos dos inimigos refugiaram-se nas casas, e Bishop, dispondo de tão poucos homens, não podia dispensar nenhum para os procurar. Da forma como as coisas estavam, ele mal teve homens suficientes para levar dali o que tinha conquistado. Os cavalos, como acontecia sempre que eram capturados, foram vendidos, e cada homem partilhou um montante até noventa e dois dólares, ou vinte e três libras.
O espírito de atacar e capturar os destacamentos inimigos era elevado, e o único receio era o de não dar com eles – os soldados inimigos, sem atender ao seu número. Um sargento, com dois Dragões, capturou dezoito soldados de infantaria.


Janeiro, 25º dia.
Eu patrulhei neste dia até uma colina acima de Alcobaça. Os camponeses disseram-me que não viam sinais do inimigo há vários dias, e pensei que deveria ter acontecido alguma mudança no seu acantonamento. Em virtude disso, o capitão Clocks enviou o alferes Cordoman [5], dos Hussardos, com uma patrulha de dezoito homens para Alcobaça, com ordens de, caso não soubessem nada deles, pernoitarem nalguma aldeia vizinha. A circunstância do inimigo não ter aparecido nas proximidades durante vários dias, devia-se a uma mudança de destacamentos; e, por fim, encontraram-nos a pilhar uma pequena aldeia à esquerda da Vestiaria [Bárrio?]. Cerca de quarenta homens compunham aquela força, e ao enviar seis homens na frente para averiguar o que é que eles queriam, eles abandonaram a aldeia, mas ele conseguiu fazer dois prisioneiros com quarenta e cinco burros, além de umas quantas mulas que deixaram presas na aldeia. Eles estavam numa confusão tal que, se toda a patrulha de seis homens prosseguisse com os dois homens da 16ª companhia, todos eles se teriam rendido. Os nossos homens queixaram-se muito dos Hussardos neste episódio. A patrulha voltou à noite para as Caldas.


Janeiro, 31º dia.
O tenente Bishop, numa outra patrulha para Alcobaça, desceu para a localidade, e lá encontrou dois soldados da infantaria inimiga. Estes fugiram por sobre alguns muros de pedra, e ele desmontou para os capturar. Debalde, porque eles foram muito rápidos para ele; e sabendo que um destacamento maior de infantaria se dirigia para a cidade, vindo de Aljubarrota [Algiberota]; ele apenas teve tempo para montar o seu cavalo. Ao sair da praça pela rua que conduzia às Caldas, ele encontrou quinze soldados de infantaria formados na ponte. Ele nada mais podia fazer senão carregar sobre eles, o que ele fez, mas eles, felizmente, dispararam antes de ele dobrar completamente a esquina, não o atingindo. Depois de dispararem aquela saraivada, fugiram para dentro das casas, e ele agarrou aquele que ia mais recuado. Ele transportou o soldado prisioneiro para fora da cidade, que, tendo avistado o outro destacamento francês a aproximar-se, recusou-se a ir mais longe, dizendo que preferia ser morto a ser mantido prisioneiro. Um homem do 16º Regimento pegou no seu mosquete e cravou a baioneta nas suas costas; o que não adiantou, porque ele continuou a recusar-se a prosseguir com eles - e então, um dos Hussardos empunhou a sua pistola e atirou sobre ele, matando-o. Eu concebo que ele estivesse perfeitamente certo em matá-lo, embora eu não tivesse gostado de ter de ser eu próprio a fazê-lo.

Bishop provou ser uma pessoa muito arrojada, e tendo agora sublinhado esse traço do seu carácter, eu espero que ele venha a adquirir um traço de firmeza, como não nos revela este tipo de ações. Ele, desta vez, saiu-se bem, sem um arranhão sequer; mas tinha os quinze soldados de infantaria dentro das casas, e tinha de lhes dirigir um fogo constante (como deveria ter feito ao passar pela rua), ainda que, com isso, provavelmente, tivesse perdido dois ou três homens, e cavalos, dos seis que tinha consigo.

O capitão Kilshaw do 77º de Infantaria (major no serviço aos portugueses) estacionou nas Caldas com quatrocentos recrutas. O esquadrão de Hussardos, voltou para Rio Maior. Junot, Duque de Abrantes, imaginando existir uma grande provisão em Rio Maior, avançou com três regimentos de cavalaria e dois de infantaria para saquear tudo o que ali encontrasse. As nossas tropas retiraram-se sem disparar um tiro, e o inimigo, depois de inspecionar o lugar, voltou ao entardecer para Alcanede [Alhinadie], e as nossas tropas puderam retomar as suas posições anteriores em Rio Maior.

Ao retirarem-se os franceses, houve uma pequena escaramuça, e Junot, dirigindo-se à frente da batalha, foi atingido por uma bala no nariz. Na altura, os nossos aperceberam-se de uma grande multidão à volta dele, mas não sabiam que se tratava de uma personagem tão ilustre. Ele não esteve muito tempo ausente dos seus deveres.
Relatório do Major Otto, do 1º regimento de Hussardos, sobre este caso: «Ele ordenou à infantaria que se posicionasse em trincheiras (valas), e à cavalaria que se envolvesse interminavelmente em escaramuças».

Tivemos um corpo de tropas por algum tempo ao sul do Tejo, num primeiro momento sob as ordens do tenente-general Hill, e após a sua ida para Inglaterra (por doença) o comando foi confiado ao major-general William Stewart. Ele atormentou Lord Wellington com tantos planos para ataques absurdos, que o marechal Beresford acabou por ocupar o cargo. O inimigo reuniu no Tejo um número de barcos suficiente para lançar uma ponte através do rio, no entanto, com os oito mil efetivos sobre as ordens do marechal Beresford daquele lado, e com Lord Wellington deste; depois de acabarem a ponte, não prometia ser uma tarefa fácil completar a passagem de todo aquele exército diante das nossas tropas [6].

Todos os desertores (assim como os camponeses) concordam que o inimigo está num estado lastimável, razão pela qual precisam tanto de provisões regulares. Eles têm de se colocar em marcha em breve, seja para trás do rio Mondego [subindo pela Beira Baixa, a leste da Serra da Estrela] ou atravessando o Tejo, porque creio que está fora de questão subsistirem muito mais tempo nestas paragens.

Ouvimos falar de reforços vindos de Inglaterra.

O general Foy deixou o exército francês pouco tempo depois de ele ter abandonado as linhas, e era esperado em Paris num curto espaço de tempo. Ele, provavelmente, irá trazer algo que decidirá a sorte da guerra [7]; porém, se eles se sentissem capazes de nos atacar, já o teriam feito antes. Soult desceu até Badajoz com treze mil homens, e sitiou a cidade. Os espanhóis que estavam do nosso lado nas linhas recuaram para as vizinhanças de Badajoz, e a cidade possui agora uma guarnição francesa de onze mil homens. Com essa força, e se não existir nenhum suborno ou trabalho desleal, o lugar deve aguentar-se enquanto durarem as provisões.

Um grupo de camponeses organizou-se à nossa direita, em Santa Catarina [Santa Catherena], a duas léguas das Caldas. Eles incomodam bastante os destacamentos inimigos que andam a pilhar e fizeram alguns prisioneiros. Trouxeram-nos, noutro dia, sete cavalos e quatro homens, dizendo [em itálico no original, como sinal de algum ceticismo] que tinham morto outros oito homens na mesma altura.


Fevereiro 17º dia.
O inimigo apareceu durante alguns dias, com uma força considerável, próximo do Valado [Vallada, desta feita, o Valado dos Frades] e tendo enviado uma patrulha todos os dias de manhã através da ponte da Pederneira [Perenera] em direção a S. Martinho [San Martineo], a totalidade das nossas tropas deixou as Caldas esta tarde, seguindo o plano do capitão Cocks de capturar essa patrulha diária dos inimigos. Ele, com vinte e cinco de cavalaria e duzentos e cinquenta de infantaria sob o comando do major Kilshaw, dirigiu-se a S. Martinho. Eu fui para Alfeizerão com dezasseis Dragões, e a nós juntaram-se, durante a noite, cento e sessenta soldados de infantaria vindos de Óbidos, sob o comando de um sargento-major inglês, tenente nas forças portuguesas. As minhas ordens eram as de alcançar Famalicão [Familecon] antes do alvorecer, e se ouvisse disparos nos montes, para me dirigir à ponte da Pederneira - e caso os nossos recrutas a mantivessem - cortar a retirada inimiga.
Ao amanhecer, eu estava dissimulado nos bosques perto de Famalicão, e o outro destacamento nos montes à minha esquerda [talvez a Serra da Pescaria]. Aguardamos até às duas da tarde, e então voltámos para as Caldas. A patrulha inimiga consistia habitualmente em cento e cinquenta soldados de infantaria, com um esquadrão de cavalaria, mas não aparecera nessa manhã.
O destacamento nos montes patrulhou para Norte até à ponte, e encontrou quatro Dragões franceses a pilhar neste lado do rio, próximo ao mar. A sua retirada para a ponte foi cortada, e Lockart esteve quase a alcançá-los, mas eles arranjaram maneira de escapar através do rio, mas, estranhamente, não por nenhum vau ou lugar que alguém antes deles tivesse alguma vez cruzado.
Tivesse a patrulha inimiga cento e cinquenta soldados de infantaria com um esquadrão [de cavalaria], e não se sentiriam pressionados pela nossa patrulha nos montes, e julgo que eu próprio pareceria bastante insensato na sua retaguarda com os meus dezasseis Dragões e os cento e sessenta recrutas de Óbidos - e eles sob as ordens de um homem que não tinha ideia do que deveria fazer.

Trinta Dragões inimigos passaram o rio e estiveram a saquear à esquerda. Estivéssemos nós informados disso e poderíamos ter cortado a sua retirada.

O alferes Steriwitz, do 1º regimento de Hussardos, patrulhou a partir do nosso antigo quartel, em Malaqueijo [Malhiaquaso], duas ou três vezes mais perto de Alcanede, e tendo averiguado da situação do piquete inimigo, e tendo razões para acreditar, pelo que lhe contavam os camponeses, que eles pareciam estar pouco alertas, partiu à noite de Malaqueijo com dezoito homens com o fito de os atacar. Destes dezoito, metade eram Hussardos e metade do 16º Destacamento. Ele posicionou-se na retaguarda da dupla de sentinelas, e neutralizou os dois Dragões com um mínimo de alerta levantado.
Por esse meio, ele aproximou-se o mais que pôde do piquete inimigo, e carregou para o meio deles. Eles ficaram na mais desordenada formação que seria possível imaginar, e nenhum ofereceu mínima resistência, todos tentando apenas alcançar a segurança dos pinhais com a maior brevidade possível. O piquete de infantaria deles, que ficara mais atrasado do que a cavalaria, apareceu entretanto, mas Steriwitz carregou sobre eles e aprisionou um ou dois soldados; e um terceiro piquete de infantaria, mais afastado, fugiu. A ação foi concluída com sucesso, e ele regressou a Malaqueijo, tendo como prisioneiros um oficial de cavalaria e doze soldados. Steriwitz já havia estado anteriormente ao serviço de França, o que o habilitou a responder a algumas questões colocadas pelas sentinelas de Alcanede, de maneira que eles acreditaram que ele pertencia ao seu exército. Nas folhas de serviço da cavalaria, foi expressa a gratidão por esta surtida de Steriwitz.

Uns dias mais tarde, um ajudante-de-campo do oficial francês em Alcanede foi enviado com alguns homens para emboscar uma patrulha das nossas que passou a ir diariamente na direção de Alcanede; e sucedeu que Steriwitz era o oficial da patrulha, formada por metade Hussardos e metade do 16º Regimento de Dragões. Mas foi ele quem atacou o destacamento francês, todos da infantaria antes deles se aperceberem do que estava a acontecer e capturou um grande número de prisioneiros, entre eles, o ajudante-de-campo, quem, antes de se render, lutou desesperadamente pela própria defesa e foi gravemente ferido. Foi uma circunstância particularmente afortunada, que as pessoas enviadas para nos pregar uma partida em pagamento do ataque ao piquete de Alcanede, tivessem experimentado uma tal recepção por parte de Steriwitz.

Steriwitz é uma pessoa arrojada e não tenho dúvidas de que irá beneficiar destas duas coisas.
Da circunstância ridícula dos seis aldeões, escoltados como prisioneiros por dois Dragões do 16º, a atravessar um riacho, atados uns aos outros.

[a vitória e o ânimo despertado pela captura dos prisioneiros, serão as tais duas coisas a que Tomkinson alude].

Detalhe da ponte de Salir numa planta de Outubro de 1799:
«Planta da Concha de S. Martinho aonde se vê as mudanças succedidas desde o anno de 1794, e hum novo Projecto»

Fevereiro, 23º dia.
O inimigo, esta manhã, cruzou a ponte de Salir do Porto [Salles de Porta] com dois esquadrões de cavalaria ligeira, tomando a direção da Foz, para saquear em quintas etc., na planície.
Ouvindo isto, o esquadrão e a infantaria marcharam sobre a ponte, mas era demasiado tarde, a retaguarda inimiga estava precisamente a atravessá-la quando lá chegamos. A ponte tornara-se quase inultrapassável, e apenas um Dragão de cada vez poderia transpô-la. Enviámos uma guarda avançada para a ponte, mas tendo avançado demasiado, o inimigo atingiu com um tiro o cavalo de Connolly, da tropa I, e fê-lo prisioneiro. Três Caçadores franceses, na retaguarda, ficaram isolados e renderam-se na ponte.
Assim que chegou o relatório desses acontecimentos, o sargento Blood da tropa B e Liddle, da tropa I, seguiram em patrulha para estrada costeira, e carregaram sobre a retaguarda inimiga quando eles voltavam para a ponte. Eles capturaram nove homens e cavalos, e uma mula. O destacamento inimigo conseguiu retirar-se para o Valado [dos Frades]. No total, tivemos um cavalo morto e um Dragão prisioneiro, e prendemos doze cavalos, uma mula, doze homens e um rapaz.
O rapaz permaneceu como um criado ao serviço do tenente Lockhart e esteve muitos anos com o regimento; foi para Inglaterra em 1814.

No dia 25 eu fui para Peniche [Peneche], a quatro léguas das Caldas, para a parte de trás de Óbidos. Peniche é o depósito de recrutas do exército português. Está encerrado dentro de uma muralha de areia, e do lado da terra, por uma vala e por uma espécie de talude. O mar, nas suas marés altas, corre através da sua parte frontal e, frequentemente, arrasta parte da muralha. Nós gastámos setenta mil dólares, apenas para carregar areia para as obras, e o mar, numa única maré, desfaz muitas vezes o equivalente ao labor de cem mãos durante um mês. Existe aí alguma reserva de biscoitos e milho, um suprimento para o exército que talvez dê para duas semanas. Voltei para as Caldas no dia 26.

A 27, o capitão Cocks recebeu uma carta de Inglaterra, informando da morte do seu avô, o que o obrigou (muito contra a sua vontade) a deixar o exército e rumar a Inglaterra, o que ele fez neste mesmo dia. Embora Lord Wellington tivesse recusado tantas vezes a partida de oficiais, ao ser-lhe dirigida uma linha de Lord Somers [pai do capitão Cocks], a afirmar a necessidade disso, ele autorizou a partida de Cocks, sem este ter de preencher um requerimento: e a primeira comunicação que recebeu, provinha de Lord Wellington, e concedia-lhe a licença para seguir para Inglaterra.

Ouvimos diariamente relatos de que o inimigo andava em preparativos para se pôr em marcha; alguns camponeses chegam ao ponto de dizer que os doentes deles já haviam sido evacuados de Leiria.

Todas as pessoas, que a princípio permaneciam nas suas casas, foram tão pressionadas e maltratadas pelo inimigo para revelarem onde as provisões, e outras coisas estavam escondidas, que elas partiram todas e juntaram-se neste lugar [Caldas da Rainha]. Entre essas famílias, aquelas que não têm entre elas nenhum homem apto para regressar à noite para a respetiva aldeia em busca de algum milho, estão reduzidas a um estado lastimoso, e morrem em grande número. Famílias inteiras estão alojadas numa divisão apenas, num estado do mais miserável que existe. Deflagrou uma febre terrível na cidade, que já se comunicou aos soldados. A média de enterros por dia é de vinte e cinco a trinta [8]. Formamos uma espécie de hospital dentro do hospital público deste lugar, e, apenas oferecendo aos pobres, uma vez por dia, sopa e pão de milho indiano, são muitos os que nos procuram, enquanto ainda sentem forças para se mexer. As cenas de miséria estão para além de tudo o que vi até agora, e se o inimigo mantiver durante muito tempo as suas posições atuais, metade dos pobres deste país estarão nas suas sepulturas. Há aqui três e quatro crianças que pertencem à mesma família, cujos pais e mães estão mortos, e não têm ninguém no mundo a quem possam recorrer por um pouco de pão. Como exemplo, uma pobre rapariga dos seus dez anos, o irmão com uns doze, que morreu, e uma irmã com pouco mais de um ano, que também morreu de fome. A rapariga salvou-se.

Ao sairmos das Caldas, deixei o meu rapaz português doente, com febre. Ele disse-me depois que as mortes aumentaram muito com a nossa partida e que sessenta e cinco pessoas tinham morrido em apenas um dia. Eu nunca ouvi uma queixa contra nós, nem ninguém dizer que deveriam ter permanecido quietos nas suas próprias casas. O sacrifício é um grande sacrifício; no entanto, eu acredito que eles o fariam novamente na esperança de se libertarem do inimigo. Eles são o povo mais paciente do mundo. Muitos Dragões têm rapazes a trabalhar para eles, e que vivem nas suas casas; e as mulheres ligadas ao exército, tanto inglesas como portuguesas, possuem também um rapaz ao seu serviço.


Março, 5º dia.
Os postos avançados das linhas inimigas retiraram-se esta noite de Alcanede para Santarém.


Março, 6º dia.
Os Dragões Ligeiros moveram-se na direção de Santarém e a brigada do general Anson, para Alcanede. Todo o exército se encontra em movimento. Receberam-se novas montadas para a cavalaria, e oito regimentos de infantaria desembarcaram em Lisboa.


Março, 7º dia.
Recebi, esta manhã, uma ordem de Sir William Erskine para marcharmos para Leiria, e para atravessar as montanhas para Ourém, para aí nos juntarmos ao grosso do exército. Marchámos para Aljubarrota, uma légua para além de Alcobaça. O convento de Alcobaça excede tudo o que antes vi como resultado de um ato de destruição. Eles queimaram o que podiam e destruíram o restante, causando uma elevada quantidade de dissabores. Os reis e rainhas embalsamados foram retirados dos seus túmulos, e eu vi-os a jazer aí, muito bem preservados, como no dia em que foram enterrados (Pedro, o Cruel, e Inês de Castro eram, acredito, os dois que eu vi) [9]. O belo pavimento quadriculado, da entrada até ao altar, foi todo picado; o revestimento dos pilares de pedra foi destruído quase até ao topo, tendo os franceses erguido andaimes com essa perversa finalidade. Em resumo, grupos de trabalho regulares devem ter sido constantemente empregues numa obra que exigiu tanto tempo e trabalho. Nenhum homem sozinho, por simples maldade, iria desperdiçar tanto tempo. Um livro de ordens, encontrado perto do lugar, mostrava que grupos regulares haviam sido organizados para esse fim.

[fim do excerto]






[1] Edward Charles Cocks, filho mais velho do primeiro Lord Somers, John Cocks. Capitão e oficial observador, deslocava-se muitas vezes para dentro das linhas inimigas para obter informações e estudar as forças inimigas. Muito admirado por Lord Wellington, morrerá no cerco de Burgos em 1812. Tomkinson, no seu diário (páginas 209 a 218) descreve minuciosamente a sua morte e inumação, e faz uma elegia do camarada de armas, assinalando a consternação que a sua morte provocou no exército inglês e, particularmente, no seu comandante, Lord Wellington.

[2] Richard Blunt, brigadeiro-general, Inspetor Geral das Recrutas («comandante do depósito de recrutas») e Governador da praça de Peniche.
O arquivo da Câmara Municipal de Mafra possui no seu espólio diversas cartas escritas por Blunt ou a ele endereçadas. Uma delas, datada de 1 de Novembro de 1810, designa a incumbência que ele cumpria em Alfeizerão no início do ano de 1811 quando Tomkinson chega às Caldas, como se comprova pela súmula da carta: «CARTA DIRIGIDA AO BRIGADEIRO-GENERAL BLUNT, APROVANDO MEDIDAS DE ACÇÃO, ENTRE AS QUAIS A RECOLHA DE GADO E GRÃO PARA DENTRO DAS LINHAS, PARA SUSTENTO DO EXÉRCITO». Estas diretivas perseguiam a política de “terra queimada” de Wellington, que tentava esvaziar de alimentos as terras que os franceses poderiam saquear, para os obrigar a retirarem-se.

[3] «O major Fenwick, comandante em Óbidos, capturou em mais de vinte ocasiões, pequenos destacamentos de pilhagem na região. Armou camponeses com mosquetes franceses, e granjeou de tal forma a sua confiança e amizade que eles não só o informavam regularmente das movimentações do inimigo, como estavam sempre dispostos a enfrentar qualquer perigo sob o seu comando» (segundo Robert SOUTHEY, History of the Peninsular War, volume V (de 6), capítulo 35, John Murray, Londres, 1837).

[4] Francisco da Silveira Pinto da Fonseca Teixeira, que os livros de História recordam como general Silveira, detinha então a patente de marechal de campo, que lhe fora atribuída no ano de 1809.

[5] «Cornet Cordoman» no original. Cornet era a patente, na cavalaria britânica, que correspondia ao posto de alferes, e devia-se ao motivo central da bandeira do regimento.

[6] Para tentar a conquista de Lisboa ou reunir suprimentos no Alentejo para sustentar a ocupação, atravessando o rio mais a montante, já que as Linhas de Torres formavam uma barreira intransponível. Com a ponte de Abrantes destruída para impedir a passagem dos franceses, acabam por fazer uma ponte de barcas que lhes permite a conquista de Constância, sem influência de maior no rumo da guerra.

[7] Maximilien-Sébastien Foy, general dotado de um grande talento retórico e de uma notável aptidão política, é enviado por Massena a Napoleão para explicar o impasse em que as linhas de Torres haviam mergulhado o exército francês, e pedir-lhe mais reforços. Feito General de Divisão por Bonaparte, é decisivo na retirada dos franceses da Península.
Foy, que começara por ser um moderado opositor de Napoleão, consegue ascender no império, sobrevive à queda de Napoleão e prossegue a sua vida política como deputado, enquanto escreve uma Histoire de la guerre de la Péninsule sous Napoléon, onde,  no seu tomo IV, podemos encontrar uma outra perspetiva de alguns sucessos da guerra no nosso país, como a devastação militar na Nazaré ou os fuzilamentos das Caldas da Rainha.

[8] «Determinou-se que mais de 400.000 portugueses pereceram pela doença ou pela fome durante o Inverno de 1810-1811, e a adicional e imensa perda de vidas que Portugal pode suportar nesta invasão, pode ser imaginada, em certa medida, quando se testemunha que, em todas as Províncias, nem um animal vivo nem um artigo de subsistência se consegue encontrar depois da partida dos franceses».
(Jones, John T, Account of the War in Spain, Portugal, and the South of Fance - from 1808 to 1814 inclusive, Tomo I, página 87, impresso por T Egerton, Londres, 1821).

[9] Anotação que, no original, se encontra em nota de rodapé.
Existem outras alusões aos corpos embalsamados de Pedro e Inês e, inclusive, a uma pretensa relíquia da cabeleira de Inês de Castro. Escreve Bernardo Vila Nova: «As mutilações que se veem nestes túmulos são obra da soldadesca francesa quando da invasão de 1811, tendo despojado o cadáver de Inês da sua bela cabeleira, que ainda se encontra em bom estado de conservação. Creio que, se não estou em erro, a 17 de Abril de 1944, quando da exposição de quadros na Sociedade Nacional de Belas Artes, de Américo Oliveira, este ilustre artista, falando comigo, disse que tinha em seu poder, religiosamente guardada, uma madeixa dos cabelos de Inês de Castro» (Guia de Portugal, 1926, citado por Casimiro Antunes no artigo de jornal «Parem de Destruir os Túmulos de D. Pedro e D. Inês!», publicado n’O Alcoa, nº26, de 21 de Março de 1946).


José Eduardo Lopes




A batalha de Pombal - 12 [11] de Março de 1811
HEATH, William, (1795-1840), Batalhas da Guerra Peninsular (6 gravuras em águas-tintas aguareladas), J. Jenkins, Londres, 1815. 





sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Luz Soriano - a História por dentro

Simão José da Luz Soriano
(retratado por Columbano Bordalo Pinheiro)

«Chegamos finalmente no fim da tarde 
ao alto da empinada calçada do Vale do Inferno, 
na encosta do monte da Esperança».
(Luz Soriano, Revelações da minha vida…)


     Simão José da Luz Soriano nasce em Lisboa a 2 de Setembro de 1802. Após um atribulado começo de vida (que aqui abordaremos com mais detalhe), no qual vive na nossa região, acaba na Casa Pia de Lisboa no período final da invasão de Massena, quando a capital se enche de refugiados das províncias. O pai viajara para o Brasil na miragem da fortuna, e a mãe, criada de servir, pobre e sem recursos, não tinha como o criar. Aprende o ofício de encadernador, mas a vida destinara-lhe a escrita de livros. Estuda Gramática Latina com afinco e consegue ingressar na Academia da Marinha, onde, logo no primeiro ano, se destaca pelas boas notas nos exames, merecendo a atribuição de um prémio pecuniário que irá atrair as atenções sobre as suas faculdades e o seu esforço. O administrador da Casa Pia solicita ao Intendente Geral da Polícia, que o jovem entre na Universidade de Coimbra e aí estude a expensas da Intendência; obtido o apoio, Soriano estuda Filosofia e Matemática em Coimbra, ao mesmo tempo que o liberalismo inflama os seus ideais da juventude. Lutador na causa liberal, vê-se obrigado a emigrar após o malogro da revolta do Porto de 1828 e a aclamação de D. Miguel como rei de Portugal; segue para a Galiza com os seus correlegionários, daí para Plymouth, em Inglaterra, regressando parcialmente ao fixar-se na Ilha Terceira, onde prossegue a sua luta, e desenvolve as suas aptidões para a escrita, desempenhando as funções de redactor principal da Crónica da Terceira. Participa no Desembarque do Mindelo com os apoiantes de D. Pedro IV, e está na cidade do Porto quando ela é sitiada pelo exército miguelista durante treze meses.
     Com o fim da guerra civil, Soriano regressa à Universidade de Coimbra, onde conclui os estudos. Exerce as funções de escritor na secretaria da Marinha, por nomeação de Sá da Bandeira; é deputado pela colónia de Angola na Câmara de Deputados a partir de 1851; e no ano de 1860, é nomeado Oficial Maior do Ministério da Marinha e Ultramar. Escreve profusamente quase sempre por encomenda do estado português, durante um fértil período de criação historiográfica que se estende de 1846 a 1890, quando publica pela última vez, um ano antes da sua morte (18 de Agosto de 1891).
    A sua obra histórica, em boa medida, testemunhal, comprende a História do Cerco do Porto, a História do Reinado de D. José I, a Vida do Marquês de Sá da Bandeira, mas sobretudo, como a sua opus major, em dezassete volumes, a sua História da Guerra Civil e do estabelecimento do governo parlamentar em Portugal comprehendendo a história diplomática militar e política dªeste reino desde 1777 até 1834.
    Nesta obra, o Tomo III da Segunda Época, é consagrado à Guerra Peninsular, e dele já haviamos publicado um trecho transcrito por Baptista Zagalo.
    Simão José da Luz Soriano escreveu também uma obra autobiográfica, que serviu de resposta às críticas dos seus detractores e adversários políticos. São as Revelações da minha vida e memórias de alguns factos e homens meus contemporaneos.
    As Revelações falam do homem, Luz Soriano, das suas andanças e peripécias, mas o autor embarca também em digressões de natureza histórica, como a que faz, muito extensa, por sinal, sobre Coimbra e a sua Universidade. A obra não é destituída de interesse, nem de beleza. Possui uma qualidade de diário a evocação que faz dos arredores de Coimbra ao tempo dos seus estudos universitários, ou as tímidas pinceladas paisagísticas que matizam a sua descrição corográfica das ilhas dos Açores.
     A mãe de Luz Soriano, Angélica Rosa de São José (e a família materna), era de Famalicão da Nazaré, terra onde vive durante algum tempo, até ser obrigado a fugir, à aproximação da soldadesca francesa, procurando refúgio na capital. Sigamos os passos iniciais dessa vida revelada, saídos do capítulo de abertura do livro:

     «Tendo alguns dos meus inimigos diligenciado com grande empenho verificar a humildade e a pobreza do meu nascimento, e envergonhar-me perante o país de semelhante circunstância, procurando para este fim publicar pela imprensa isso que fui, e o que então pratiquei como rapaz, resolvi-me a lhes fazer a vontade, confessando esse meu delito, e constituindo-me eu mesmo em réu da pena a que me quiseram condenar com esta publicação, com a qual mostro afoito que nem me envergonho do que fui, nem me desvaneço do que sou (…) Começo por anunciar altivo que não renego o nome dos meus pais, nem que envergonhado me confundo com a humildade da minha origem. Este é tão somente o meu brasão de fidalgo, e o meu único título de nobreza, conduta esta que deve sempre fazer honra a todo o plebeu, cujos sentimentos são o olhar para essas aristocracias com o mesmo desdém com que a natureza para elas olha.
    «Nesta cidade de Lisboa vi pela primeira vez a luz do mundo no dia 8 de Setembro de 1802 (…) Minha mãe, Angélica Rosa de São José, preferindo o viver antes sujeita à domesticidade na capital do reino, do que ao trato rude e agreste da aldeia em que nascera, viera para Lisboa, onde daquela domesticidade passou à de dona de casa sem fortuna, casando-se com um pobre barbeiro, que havia na sua vizinhança, por nome, Domingos José Soriano. Eis aqui os meus pais, cada um dos quais julgo que não tinha até à décima geração parente algum fidalgo.
     «(…) Minha mãe fora bastante infeliz no seu casamento, rematando os desgostos que de meu pai recebeu, com o abandono total em que este nos deixou, tendo eu apenas dois anos de idade. Verdade é que semelhante abandono de sua mulher e filho foi acompanhado da promessa de que, se achasse fortuna no Brasil, para onde ia, nos viria ou mandaria buscar a ambos; mas minha mãe teve sempre a crença de que o seu fim era o separar-se para sempre dela, crença que o tempo verificou, porque nunca mais dele tivemos notícia alguma.
    «Minha mãe, vendo-se desde então sem meios de se alimentar a si, e a seu filho, recorreu ao abrigo da sua família, residente em Famalicão, pequena freguesia situada entre a Nazaré e Alfeizerão, nos coutos de Alcobaça, de onde dista duas léguas. Minha mãe, deixando-me ali entregue a minha avó, tornou para Lisboa ao seu antigo mister de servir. Em Famalicão, pois, continuei a viver em pobreza, sujeito aos ditames da minha avó materna; desta segunda mãe, cuja lembrança ainda hoje é para mim de tão doce e saudosa recordação. Apesar do seu muito amor para comigo, fui por ela destinado, apenas tive cinco ou seis anos de idade, à mesma ocupação que a sorte destinara igualmente a Sisto V nos seus primeiros anos, isto é, a de guardador de porcos.
    «Minha avó, com uma tal ou qual ilustração reunia o ter uma alma mui diversa da sua fortuna e posição. Sendo também dotada de muito bom senso, e sempre cheia de bondade para comigo, tomara a seu cargo dar-me com a educação religiosa, as primeiras noções de leitura. Foi ela a que, pelos sentimentos do seu coração, e força da sua inteligência, moldou os do meu, inspirando-me os primeiros desejos de me ilustrar, e impelindo-me aos primeiros voos de elevação, que tão mal casavam com as nossas posses, e hierarquia social. Recebendo da natureza uma alma superior ao meu nascimento, foi minha avó, e depois minha mãe, as que me provocaram esses sentimentos de ambição, só próprios das mais altas fortunas. O certo que a minha índole se prestava a tão nobres aspirações, que a minha novel inteligência abraçou com avidez, e a idade foi cada vez mais engrandecendo, e fortificando. Em prova das minhas asserções citarei o seguinte caso, de que nunca me esqueci, apesar de sucedido quando tinha só seis, ou sete anos de idade. Era o tempo das festas da Nazaré, quando muita gente de Lisboa, de Sintra e de muitas outras terras da Estremadura para ali concorre em romaria; desde o princípio até ao meado de Setembro de cada ano. Eu estava brincando no meio de alguns rapazes da minha idade, quando de repente todos me deixaram para correrem à estrada a pedirem esmola a um desses muitos grupos de devotos romeiros. O isolamento em que fiquei deu na vista aos viandantes, um dos quais perguntou aos rapazes suplicantes se eu era filho do capitão-mor dali: «Isso não tem que ver - lhe disse um dos companheiros - o seu traje bem mostra que pertence ao figurão da terra». Efectivamente, a minha avó, em razão do fato, que minha mãe para mim lhe mandava, trazia-me muito mais asseado do que costuma andar o geral dos rapazes da aldeia. Mas o certo é que o diálogo dos romeiros causou-me tal desvanecimento, e orgulho, que nunca dele me esqueci; tanto concordava com ele o meu amor-próprio, e aspirações de elevação.
     «De Famalicão nos obrigou a fugir para Lisboa no segundo semestre de 1810 a invasão do exército francês comandado pelo general Massena, obedecendo assim a minha família à proclamação do general inglês, sir Arthur Wellesley, mais tarde duque de Wellington, com data de 4 de Agosto do dito ano, quando chamara para a capital os povos da Beira e da Estremadura. Nesta jornada sofremos todas as inclemências daquele desastrado tempo, por termos achado já os franceses no Cercal, o que nos levou a ir procurar um asilo no pequeno convento da Serra das Neves, que frei Luís de Sousa dá como pertencendo à ordem de S. Domingos, e que por todo o seu âmbito [recinto], achamos já ocupado por gente emigrada, como nós éramos. De lá tivemos de retirar, por nos aparecerem ali os franceses ao fim de três dias. A nossa marcha foi para a retaguarda, e no meio de muitos riscos, pois que o inimigo, em vez da civilização e venturas, que com a sua invasão nos prometera, não só trouxe os roubos, e as devastações de toda a sorte, praticadas tanto nas marchas, como quando andou forrageando, colocado de observação a Wellington, abrigado nas memoráveis linhas de Torres Vedras, mas até matava barbaramente muitos dos indivíduos que lhe caíam nas mãos, de que eram prova os vários cadáveres que achamos pelos trilhos das serras e veredas por onde seguíamos caminho. A maior parte das nossas jornadas foi de noite, assoldando para este fim um guia, até que finalmente chegamos à pequena vila de S. Martinho do Porto, onde então embarcamos para Lisboa, não o tendo assim feito quando saímos de Famalicão, por se não ter então achado iate algum, que geralmente falando, são as únicas embarcações que entram naquela baía, da qual tão belo porto se podia fazer, se o governo para ali olhasse como devia, quebrando os cachopos *, que lhe obstroem a barra e tirando por meio de dragas as areias que entulham a respectiva concha, com que se tornariam terras de primeira ordem no país, não somente a dita vila de S. Martinho, mas igualmente a de Alcobaça, e Caldas da Rainha.
     «Lisboa era por aquele tempo um fiel traslado da confusão de Babel, formada não só pelos multiplicados grupos da gente vinda das diversas províncias do reino, mas também pelo sem número de estrangeiros, particularmente ingleses, que pelas ruas e praças transitavam, tomando-as quase de lado a lado, sobretudo onde a concorrência costuma ser mais numerosa».

* «Cachopos no mar: penedos à flor da água onde as águas rebentam» (Silva, António de Morais, Diccionario da Lingua Portugueza, tomo I, Tipografia Lacerdina, Lisboa, 1813).



José Eduardo Lopes