sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Luz Soriano - a História por dentro

Simão José da Luz Soriano
(retratado por Columbano Bordalo Pinheiro)

«Chegamos finalmente no fim da tarde 
ao alto da empinada calçada do Vale do Inferno, 
na encosta do monte da Esperança».
(Luz Soriano, Revelações da minha vida…)


     Simão José da Luz Soriano nasce em Lisboa a 2 de Setembro de 1802. Após um atribulado começo de vida (que aqui abordaremos com mais detalhe), no qual vive na nossa região, acaba na Casa Pia de Lisboa no período final da invasão de Massena, quando a capital se enche de refugiados das províncias. O pai viajara para o Brasil na miragem da fortuna, e a mãe, criada de servir, pobre e sem recursos, não tinha como o criar. Aprende o ofício de encadernador, mas a vida destinara-lhe a escrita de livros. Estuda Gramática Latina com afinco e consegue ingressar na Academia da Marinha, onde, logo no primeiro ano, se destaca pelas boas notas nos exames, merecendo a atribuição de um prémio pecuniário que irá atrair as atenções sobre as suas faculdades e o seu esforço. O administrador da Casa Pia solicita ao Intendente Geral da Polícia, que o jovem entre na Universidade de Coimbra e aí estude a expensas da Intendência; obtido o apoio, Soriano estuda Filosofia e Matemática em Coimbra, ao mesmo tempo que o liberalismo inflama os seus ideais da juventude. Lutador na causa liberal, vê-se obrigado a emigrar após o malogro da revolta do Porto de 1828 e a aclamação de D. Miguel como rei de Portugal; segue para a Galiza com os seus correlegionários, daí para Plymouth, em Inglaterra, regressando parcialmente ao fixar-se na Ilha Terceira, onde prossegue a sua luta, e desenvolve as suas aptidões para a escrita, desempenhando as funções de redactor principal da Crónica da Terceira. Participa no Desembarque do Mindelo com os apoiantes de D. Pedro IV, e está na cidade do Porto quando ela é sitiada pelo exército miguelista durante treze meses.
     Com o fim da guerra civil, Soriano regressa à Universidade de Coimbra, onde conclui os estudos. Exerce as funções de escritor na secretaria da Marinha, por nomeação de Sá da Bandeira; é deputado pela colónia de Angola na Câmara de Deputados a partir de 1851; e no ano de 1860, é nomeado Oficial Maior do Ministério da Marinha e Ultramar. Escreve profusamente quase sempre por encomenda do estado português, durante um fértil período de criação historiográfica que se estende de 1846 a 1890, quando publica pela última vez, um ano antes da sua morte (18 de Agosto de 1891).
    A sua obra histórica, em boa medida, testemunhal, comprende a História do Cerco do Porto, a História do Reinado de D. José I, a Vida do Marquês de Sá da Bandeira, mas sobretudo, como a sua opus major, em dezassete volumes, a sua História da Guerra Civil e do estabelecimento do governo parlamentar em Portugal comprehendendo a história diplomática militar e política dªeste reino desde 1777 até 1834.
    Nesta obra, o Tomo III da Segunda Época, é consagrado à Guerra Peninsular, e dele já haviamos publicado um trecho transcrito por Baptista Zagalo.
    Simão José da Luz Soriano escreveu também uma obra autobiográfica, que serviu de resposta às críticas dos seus detractores e adversários políticos. São as Revelações da minha vida e memórias de alguns factos e homens meus contemporaneos.
    As Revelações falam do homem, Luz Soriano, das suas andanças e peripécias, mas o autor embarca também em digressões de natureza histórica, como a que faz, muito extensa, por sinal, sobre Coimbra e a sua Universidade. A obra não é destituída de interesse, nem de beleza. Possui uma qualidade de diário a evocação que faz dos arredores de Coimbra ao tempo dos seus estudos universitários, ou as tímidas pinceladas paisagísticas que matizam a sua descrição corográfica das ilhas dos Açores.
     A mãe de Luz Soriano, Angélica Rosa de São José (e a família materna), era de Famalicão da Nazaré, terra onde vive durante algum tempo, até ser obrigado a fugir, à aproximação da soldadesca francesa, procurando refúgio na capital. Sigamos os passos iniciais dessa vida revelada, saídos do capítulo de abertura do livro:

     «Tendo alguns dos meus inimigos diligenciado com grande empenho verificar a humildade e a pobreza do meu nascimento, e envergonhar-me perante o país de semelhante circunstância, procurando para este fim publicar pela imprensa isso que fui, e o que então pratiquei como rapaz, resolvi-me a lhes fazer a vontade, confessando esse meu delito, e constituindo-me eu mesmo em réu da pena a que me quiseram condenar com esta publicação, com a qual mostro afoito que nem me envergonho do que fui, nem me desvaneço do que sou (…) Começo por anunciar altivo que não renego o nome dos meus pais, nem que envergonhado me confundo com a humildade da minha origem. Este é tão somente o meu brasão de fidalgo, e o meu único título de nobreza, conduta esta que deve sempre fazer honra a todo o plebeu, cujos sentimentos são o olhar para essas aristocracias com o mesmo desdém com que a natureza para elas olha.
    «Nesta cidade de Lisboa vi pela primeira vez a luz do mundo no dia 8 de Setembro de 1802 (…) Minha mãe, Angélica Rosa de São José, preferindo o viver antes sujeita à domesticidade na capital do reino, do que ao trato rude e agreste da aldeia em que nascera, viera para Lisboa, onde daquela domesticidade passou à de dona de casa sem fortuna, casando-se com um pobre barbeiro, que havia na sua vizinhança, por nome, Domingos José Soriano. Eis aqui os meus pais, cada um dos quais julgo que não tinha até à décima geração parente algum fidalgo.
     «(…) Minha mãe fora bastante infeliz no seu casamento, rematando os desgostos que de meu pai recebeu, com o abandono total em que este nos deixou, tendo eu apenas dois anos de idade. Verdade é que semelhante abandono de sua mulher e filho foi acompanhado da promessa de que, se achasse fortuna no Brasil, para onde ia, nos viria ou mandaria buscar a ambos; mas minha mãe teve sempre a crença de que o seu fim era o separar-se para sempre dela, crença que o tempo verificou, porque nunca mais dele tivemos notícia alguma.
    «Minha mãe, vendo-se desde então sem meios de se alimentar a si, e a seu filho, recorreu ao abrigo da sua família, residente em Famalicão, pequena freguesia situada entre a Nazaré e Alfeizerão, nos coutos de Alcobaça, de onde dista duas léguas. Minha mãe, deixando-me ali entregue a minha avó, tornou para Lisboa ao seu antigo mister de servir. Em Famalicão, pois, continuei a viver em pobreza, sujeito aos ditames da minha avó materna; desta segunda mãe, cuja lembrança ainda hoje é para mim de tão doce e saudosa recordação. Apesar do seu muito amor para comigo, fui por ela destinado, apenas tive cinco ou seis anos de idade, à mesma ocupação que a sorte destinara igualmente a Sisto V nos seus primeiros anos, isto é, a de guardador de porcos.
    «Minha avó, com uma tal ou qual ilustração reunia o ter uma alma mui diversa da sua fortuna e posição. Sendo também dotada de muito bom senso, e sempre cheia de bondade para comigo, tomara a seu cargo dar-me com a educação religiosa, as primeiras noções de leitura. Foi ela a que, pelos sentimentos do seu coração, e força da sua inteligência, moldou os do meu, inspirando-me os primeiros desejos de me ilustrar, e impelindo-me aos primeiros voos de elevação, que tão mal casavam com as nossas posses, e hierarquia social. Recebendo da natureza uma alma superior ao meu nascimento, foi minha avó, e depois minha mãe, as que me provocaram esses sentimentos de ambição, só próprios das mais altas fortunas. O certo que a minha índole se prestava a tão nobres aspirações, que a minha novel inteligência abraçou com avidez, e a idade foi cada vez mais engrandecendo, e fortificando. Em prova das minhas asserções citarei o seguinte caso, de que nunca me esqueci, apesar de sucedido quando tinha só seis, ou sete anos de idade. Era o tempo das festas da Nazaré, quando muita gente de Lisboa, de Sintra e de muitas outras terras da Estremadura para ali concorre em romaria; desde o princípio até ao meado de Setembro de cada ano. Eu estava brincando no meio de alguns rapazes da minha idade, quando de repente todos me deixaram para correrem à estrada a pedirem esmola a um desses muitos grupos de devotos romeiros. O isolamento em que fiquei deu na vista aos viandantes, um dos quais perguntou aos rapazes suplicantes se eu era filho do capitão-mor dali: «Isso não tem que ver - lhe disse um dos companheiros - o seu traje bem mostra que pertence ao figurão da terra». Efectivamente, a minha avó, em razão do fato, que minha mãe para mim lhe mandava, trazia-me muito mais asseado do que costuma andar o geral dos rapazes da aldeia. Mas o certo é que o diálogo dos romeiros causou-me tal desvanecimento, e orgulho, que nunca dele me esqueci; tanto concordava com ele o meu amor-próprio, e aspirações de elevação.
     «De Famalicão nos obrigou a fugir para Lisboa no segundo semestre de 1810 a invasão do exército francês comandado pelo general Massena, obedecendo assim a minha família à proclamação do general inglês, sir Arthur Wellesley, mais tarde duque de Wellington, com data de 4 de Agosto do dito ano, quando chamara para a capital os povos da Beira e da Estremadura. Nesta jornada sofremos todas as inclemências daquele desastrado tempo, por termos achado já os franceses no Cercal, o que nos levou a ir procurar um asilo no pequeno convento da Serra das Neves, que frei Luís de Sousa dá como pertencendo à ordem de S. Domingos, e que por todo o seu âmbito [recinto], achamos já ocupado por gente emigrada, como nós éramos. De lá tivemos de retirar, por nos aparecerem ali os franceses ao fim de três dias. A nossa marcha foi para a retaguarda, e no meio de muitos riscos, pois que o inimigo, em vez da civilização e venturas, que com a sua invasão nos prometera, não só trouxe os roubos, e as devastações de toda a sorte, praticadas tanto nas marchas, como quando andou forrageando, colocado de observação a Wellington, abrigado nas memoráveis linhas de Torres Vedras, mas até matava barbaramente muitos dos indivíduos que lhe caíam nas mãos, de que eram prova os vários cadáveres que achamos pelos trilhos das serras e veredas por onde seguíamos caminho. A maior parte das nossas jornadas foi de noite, assoldando para este fim um guia, até que finalmente chegamos à pequena vila de S. Martinho do Porto, onde então embarcamos para Lisboa, não o tendo assim feito quando saímos de Famalicão, por se não ter então achado iate algum, que geralmente falando, são as únicas embarcações que entram naquela baía, da qual tão belo porto se podia fazer, se o governo para ali olhasse como devia, quebrando os cachopos *, que lhe obstroem a barra e tirando por meio de dragas as areias que entulham a respectiva concha, com que se tornariam terras de primeira ordem no país, não somente a dita vila de S. Martinho, mas igualmente a de Alcobaça, e Caldas da Rainha.
     «Lisboa era por aquele tempo um fiel traslado da confusão de Babel, formada não só pelos multiplicados grupos da gente vinda das diversas províncias do reino, mas também pelo sem número de estrangeiros, particularmente ingleses, que pelas ruas e praças transitavam, tomando-as quase de lado a lado, sobretudo onde a concorrência costuma ser mais numerosa».

* «Cachopos no mar: penedos à flor da água onde as águas rebentam» (Silva, António de Morais, Diccionario da Lingua Portugueza, tomo I, Tipografia Lacerdina, Lisboa, 1813).



José Eduardo Lopes

Sem comentários:

Enviar um comentário