As duas mós de pedra que se encontravam no
relvado do jardim da Junta de Freguesia de Alfeizerão, pelo seu valor arqueológico, foram retiradas da
terra pela autarquia e, depois de limpas, movidas para um lugar mais condigno
desse mesmo jardim, onde se encontram expostas, apoiadas em lancis de pedra. A
breve trecho, uma placa informativa fixada no muro junto a elas transmitirá de
forma sucinta o essencial sobre essas duas peças.
Estas duas mós, ou as suas quatro metades,
foram encontradas já partidas, tendo sido desenterradas em Setembro de 1990 na
vala do castelo ao escavar-se o terreno para se construir uma estação de
tratamento de esgotos, a mesma obra pôs a descoberto um muro ou paredão com
dois arcos ogivais e na terra daí retirada recuperou-se fragmentos de cerâmica
medieval (Barbosa, 2021, p.105). O executivo autárquico contatou a Universidade
Nova de Lisboa e acorreu ao local o Doutor Pedro Gomes Barbosa, que recolheu amostras
de cerâmica e fotografou e desenhou o muro posto a descoberto. O nível do
lençol freático demoveu no entanto os responsáveis de iniciarem ali escavações, por conseguinte, o paredão com os arcos foi novamente coberto de terra e as mós de pedra
confiadas à guarda da autarquia.
Estamos, como parece evidente pela descoberta das mós, perante vestígios vizinhos ao castelo de Alfeizerão de um antigo moinho de água com duas linhas de moagem. A sua tipologia, com base na parede com os dois arcos ogivais, parece ser a de um moinho de rodízio ou de roda horizontal. Os moinhos de roda horizontal são em geral edifícios com dois pisos, a água canalizada para ele a partir de um curso de água ou açude é comprimida na seteira que a lança com força sobre o rodízio formado por palas de madeira na extremidade inferior do eixo vertical da roda fazendo-a girar (vd. Figura 2). O rodízio funcionava no piso inferior ou cabouco enquanto no piso superior operava o casal de mós (movente de mó ou pedra andadeira e a pedra fixa ou pouso sobre a qual trabalhava), graças à rotação do veio.
do mecanismo do moinho de rodízio |
Depois de cumprir o seu papel no moinho, a água era devolvida à natureza por uma abertura virada ao rio ou ao canal que a direcionava a partir daí. Essa abertura, muitas vezes em arco, traz-nos de volta ao paredão com os dois arcos descoberto em 1990.
Ao passarmos em revista as representações de moinhos de roda horizontal (visitamos pessoalmente dois), é difícil não constatar as semelhanças entre os caboucos ou piso inferior dos moinhos de roda horizontal com os seus arcos de saída, e a nossa parede em ruínas.
Figura 3: A ruína de 1990 com a parte superior de um dos dois arcos |
As duas mós, circulares e de recorte irregular
com cerca de um metro de diâmetro, possuem a face inferior aplainada, mas a
superior foi esculpida e afeiçoada num feitio abaulado, ligeiramente cónico. A altura do
chão a que estão expostas as mós no novo espaço, 15 cm, torna possível ter uma
noção da condição e desgaste da face inferior, aquela que trabalhava sobre o
grão.
As mós são muito distintas uma da outra, a primeira, constituída por calcário fossilífero áspero e com muitas arestas, teria a seu cargo o triturar do grão dúctil (provavelmente do milho grosso), o seu despedaçar eficaz. Esta primeira mó, na face inferior do olho da mó, conserva ainda o encaixe sensivelmente retangular da peça que a unia ao veio do moinho (vd. na Figura 5 o primeiro desenho); a segunda mó, aquela que está melhor preservada, de grão mais suave, teria como finalidade obter a moagem mais fina e mais alva, é o tipo de mó denominada alveira ou trigueira.
A presença da primeira movente de mó, mais granulada para triturar e moer, faz supor que a cronologia deste moinho de água seria posterior à introdução do milho americano (maís ou milho grosso) na agricultura e na alimentação (o que ocorre a partir do final do século XVI), com o seu grão mais dúctil e resistente do que os cereais que antes existiam (Maduro, 2019:204-211). Isto é apenas uma suposição, contrariada de certa forma pela cerâmica medieval aí achada, a menos que se interprete a presença destes fragmentos como vestígios de uma zona de depósito junto ao castelo medieval – peças trazidas pelas águas e ali acumuladas - ou em alternativa, que se esteja perante a adaptação de um moinho mais antigo à moagem do milho grosso, o que não seria inédito na região e no país. Às mós mais aptas para a moagem do milho foi atribuída a designação de mós segundeiras por merecer esse cereal nos seus primeiros tempos na Europa a designação de cereal de segunda, apesar da sua rápida expansão na agricultura e nos hábitos alimentares e ser agente de uma "verdadeira revolução agrícola" (Maduro, id.).
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Figura 5: O nosso tosco croquis do contorno e perfil das mós |
BARBOSA, Pedro Gomes, "O território de Alcobaça antes dos Cistercienses", in Um Mosteiro entre os rios. O território Alcobacense, coord. António Valério Maduro e Rui Rasquilho, Hora de Ler, Leiria, 2021.
MADURO, António Valério – “A inovação do agro sistema cisterciense de
Alcobaça nos séculos XVII – XIX”, in Cister-
Tomo III: Espiritualidade, Agricultura e Indústria, Hora de Ler, Leiria,
2019.
Créditos das imagens:
Figura 2: Desenho repetidamente encontrado na Web sem indicação de autor.
Figura 3: Detalhe de uma fotografia guardada no arquivo da Junta de Freguesia de Alfeizerão.
Figura 4:
a) Moinho de Corte Real: Projecto “Os Moinhos do Rio Degebe: Contributos para salvaguarda da sua memória”, coordenação de Mestre Francisca Mendes. Endereço: http://www.moinhosdegebe.uevora.pt/index.php#top
b) Moinho de Água da Courela (Brotas, Mora): Ficha no SIPA - Sistema de Informação do Património Arquitetónico, N.º IPA.00024854. Endereço: http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=24854
c) Desenho sem indicação de autor, recolhido de:
Marques, Rui (coord.), Sesimbra - Memória e Identidade | Engenhos de Moagem de Cereais, Câmara Municipal de Sesimbra, 2012
Gostei muito de tudo. Obrigada pelo trabalho. 1 abraço
ResponderEliminarObrigado! 1 abraço
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