domingo, 21 de junho de 2020

Alfeizerão, a terra e o rio (2): O rio de Alfeizerão nas fontes corográficas



A caracterização do rio em fontes do século XVIII

 

1 – O «Dicionário Geográfico» do padre Luís Cardoso[i].

«Pela parte do Nascente desta vila, a distância de três ou quatro tiros de bala, estão uns montes ou outeiros entre os quais corre o rio que passa pela frente desta vila da parte do Sul, coisa de três tiros de espingarda; chamam-lhe o Rio Grande, o seu nascimento é por cima da vila de Santa Catarina, que dista desta duas léguas. A este se junta no lugar chamado das Mestras, o rio do Carvalhal Benfeito e ultimamente se mete e incorpora no distrito de Charnais o rio que vem dos Rebelos e Junqueira, lugares da freguesia da Cela; e o que vem do lugar do Vimeiro não é caudaloso, corre do Nascente a Poente da vila de Salir do Porto e entra na barra da dita vila do Sul para o Norte. Não tem arvoredos, mais que alguns salgueiros e choupos em partes e em outras se fabricam as suas margens. Tem uma ponte de pedra nesta vila, por baixo de cujos arcos já não corre água por estarem entulhados de areias; usam livremente os moradores das suas águas e com elas regam muitas fazendas; há umas marinhas [salinas] no distrito desta vila, junto ao vau de Salir, que confinam com outras daquela vila; junto delas há um chamado lago, que fez Pedro da Silva da Fonseca, que há algum tempo trazia muita abundância de peixes, mas hoje se acha entulhado».

 

2 – As memórias paroquiais de 1758[ii]

Parte I, Quesito 24:

«Não é porto de mar, mas há tradição moralmente certa que o foi, pelos vestígios de conchas e âncoras que se tem achado, porque a terra se tem alterado com as inundações das águas que correm dos montes que existem da parte do Nascente e recolhido [recuado] as águas do mar».

 

Parte III, Quesitos 1 a 19:

«Junto a esta vila para a parte do Sul há um rio em distância de duzentos passos que tem o nome de Rio de Alfeizerão, e muitos lhe chamam Rio de Charnais por passar por esse sítio, nasce em algumas fontes e montes junto ao lugar do Carvalhal Benfeito.

«Nasce com pouca água e se vai aumentando com a corrente de várias fontes que estão nas margens dele, corre todo o ano até à ponte desta vila. Somente é caudaloso quando chove muito, e uma ou duas horas depois.

«Entra neste rio o de Charnais em distância de um quarto de légua, com pouca água fora do tempo da chuva.

«É de curso arrebatado nas enchentes porque é água de monte, isto em quase toda a sua distância.

«Corre de Nascente para Poente.

«Cria enguias e alguns robalos, e nenhum outro pescado.

«As margens são cultivadas e produzem milho, feijão e algum trigo e cevada. Não tem arvoredo.

«Entra no mar no termo da vila de São Martinho a uma distância de meia légua.

«Junto a esta vila para a parte do Sul a uma distância de cento e cinquenta passos tem uma ponte de madeira no caminho que vai para a vila das Caldas.

«Tem seis moinhos [azenhas] que moem em todo o Inverno e na maior parte da Primavera a Outono.

«São as suas águas livres somente para o regadio dos campos, mas não para os moinhos que pagam o foro das águas aos padres de Santa Maria de Alcobaça.

«Desde o seu nascimento até se meter no mar tem a distância de duas léguas e meia, passa somente junto ao lugar do Carvalhal Benfeito, onde nasce, e junto a esta vila».

 

3. «Memórias para formar a História da Comarca de Alcobaça», de Frei Manuel de Figueiredo (1782)[iii]

«O seu termo produz com abundância milho, feijão, trigo e cevada; bastante vinho, nenhum azeite e pouca fruta. O rio de Charnais, que passa ao sul desta vila, em que vêm juntas as águas que nascem em muitas partes do termo de Alcobaça e Santa Catarina, tem sepultado em areia a ponte e excelentes várzeas do seu termo, arruinado o seu grande e frutífero campo, e muitas quintas com ele confinantes, sem que régias e particulares providências dos interessados na cultura e produção de tantas terras pudessem remediar o estrago pretérito nem atalhar o aumento do prejuízo».

 

4 – Respostas de Frei Manuel de Figueiredo às «Perguntas de Agricultura dirigidas aos Lavradores de Portugal» pela Academia de Ciências de Lisboa (1787)[iv]

Pergunta 30:

«As terras, a que entra a água Salgada que é só no termo da Pederneira, e Quinta do Campo do Mosteiro Donatário (estão perdidos os Campos de Alfeizerão, e S. Martinho mais próximos à baía deste nome com as entradas das águas salgadiças). Se remedeiam inundando-as com água doce deixando-as criar juncos, e outras ervagens e tornando a introduzir águas doces. Se entram as águas Salgadas com abundância, o remédio é destiná-las para pastagens».

 

Nota 1:

«As águas marítimas que entram pela garganta da baía de S. Martinho se estendiam de Alfeizerão aonde se carregavam embarcações como diz o Foral do rei D. Manuel e consta de outros Títulos do Cartório de Alcobaça e no Governo do Cardeal Infante D. Afonso que foi abade de Alcobaça de 1519 até 1520. Mandou examinar o embarcadouro de Alfeizerão, e entrou aí o seu comissário das embarcações surtas.

                «O mar foi retrocedendo tanto que sendo grande parte da Quinta que aí possui Manuel Pedro da Silva da Fonseca aforada para Salinas, e tendo em 1586 cultivados 72 talhos de Marinha já não constem indícios deles; e só ao Norte do rio de Fanhais se fabricou algum sal até ao ano de 1752.

                «O retrocesso do mar deu lugar para a cultura dos Campos de S. Martinho e Alfeizerão, e para conservação e limpeza dele alcançou o Mosteiro Donatário dois Alvarás que concedeu o nosso restaurador D. João o 4º para se fazer anual derrama de 20.000 destinados para reparar de Verão as ruínas que fizessem os invernos nos mesmos Campos de Alfeizerão, e S. Martinho».

 

 



[i] CARDOSO, Pe. Luís, «Diccionario Geografico ou Noticia Historica de todas as Cidades, Villas, Lugares e Aldeas, Rios, Ribeiras, e Serras dps Reynos de Portugal e Algarve, com todas as cousas raras, que nelles se encontraõ, assim antigas, como modernas», Tomo I, p. 479, Lisboa, na Regia Oficina Sylvana e da Academia Real, 1747.

Actualizamos o texto.

[ii] Respostas do pároco de Alfeizerão, Doutor Manuel Romão, ao inquérito elaborado pelo padre Luís Cardoso, por incumbência da Coroa. Encontra-se em DGA/TT, Memórias paroquiais, vol. 2, nº 53, p. 465 a 472.

Actualizamos o texto.

[iii] BNP, cod. 1479

[iv] Documento transcrito e estudado pelo Doutor António Valério Maduro:

MADURO, António Eduardo Veyrier Valério, «O Inquérito agrícola da Academia Real das Ciências de 1787. O caso da Comarca de Alcobaça» pub. em Mosteiros Cistercienses História, Arte, Espiritualidade e Património, direção de José Albuquerque CARREIRAS,Tomo III, pp.319-354, Alcobaça. 2013


domingo, 14 de junho de 2020

Alfeizerão, a terra e o rio (1): O rio nas fontes documentais do Mosteiro

            Temos encontrado amiúde algumas referências e documentos sobre o rio de Alfeizerão, textos que iremos tratando aqui em apontamentos isolados sem ordem cronológica. Em traços gerais, a decadência e ruína do porto de Alfeizerão ao longo do século XVI culmina no seu abandono definitivo em finais desse século, quando o próprio rio atinge um tal estado de degradação que necessita de intervenção régia para o fazer abrir. As obras de reparos do rio são retomadas nos séculos seguintes, com litígios documentados entre os moradores e o mosteiro e entre os moradores e as pessoas incumbidas de supervisionar essas obras. As cheias catastróficas de 1774 que desviaram o rio do seu leito, causaram danos que se começou a minorar no ano de 1775 mas que só foram definitivamente reparados em meados do século XIX.

Neste primeiro apontamento transcrevemos um excerto de uma obra do Mosteiro em que se faz uma retrospectiva dessas obras, sempre sob a óptica do Mosteiro, o seu principal beneficiário. Os parágrafos transcritos foram reorganizados por ordem cronológica e introduzimos algumas pequenas alterações no teor destes.

 

«Rios e Valas

«No ano de 1616, por ordem D’El Rei, fez o Juiz de Fora de Óbidos abrir o rio de Alfeizerão para o que fintou todos os interessados, e considerando que também este Mosteiro o era, foi fintado em cento e tantos mil reis, a que, por parte do Mosteiro, se acudiu que tal não tinha essa obrigação, porque toda ela recaía sobre os seus enfiteutas, conforme seus Forais e aforamentos; e ouvido o povo, que assim o confessou, se julgou que o Mosteiro não é obrigado a concorrer para a dita abertura (Livro 8 de Sentenças, fl. 372; e no fl. 371, está um assento que disso se fez na Câmara).

«No ano de 1649, passou El Rei D. João IV um Alvará para o Dr. Frutuoso de Campos Barreto mandar abrir os rios e valas de Alfeizerão e S. Martinho à custa dos interessados (Livro 5.º de Sentenças, fl. 190). Do qual D. Micaela da Silva [esposa de Silvério Salvado de Morais, proprietário e alcaide-mor de Alfeizerão, e mãe de Silvério da Silva da Fonseca] pediu vista para embargos, suspensa a execução que se lhe lançou, por mandar o Alvará se fizesse a obra sem embargo de quaisquer embargos, e agravando, não teve provimento (Livro 5 de Sentenças, fl. 182).

«No ano de 1650, passou El Rei D. João IV um Alvará para que em cada ano se lancem oito mil reis de fábrica pelos interessados para a abertura e conservação do rio de Alfeizerão, e que os Ouvidores dos Coutos sejam superintendentes da conservação do dito rio (Livro 33 de Sentenças, fl. 155).

«No ano de 1651 passou outro Alvará pelo qual confirmou o Contrato que fizeram os de S. Martinho para tirarem quinze mil réis em cada ano dos frutos das terras da Lagoa, para a fábrica e abertura da Vala Real, e mais abertas da dita Lagoa, e que o Ouvidor dos Coutos seja executor da dita fábrica, assim como o era do rio de Alfeizerão (Livro 33 de Sentenças, fl. 153; e o Contrato a que se refere está no Livro 20 de Sentenças, fl. 84). Estas fábricas já as não há, porque o Prazo que se tinha feito àquelas pessoas que fizeram o Contrato da Lagoa se desfez, e se fez outro de novo a um só, com obrigação de abrir à sua custa.

«No ano de 1680, houve uma notável questão com Silvério da Silva da Fonseca sobre o custo da abertura do seu campo e Prazo d’Alfeizerão, e o rio que por ele passa. Foi o caso que, mandando El Rei no dito ano, abrir o rio da Mota à custa dos interessados, sendo por isso fintados, pretendeu o dito Silvério da Silva que, pelo que tocava a ele, se fizesse a finta respetiva ao lucro que tinha das terras rotas, e não dos juncais; e que nela se fintasse também o Mosteiro pelos lucros que também tinha. O Mosteiro, pela sua parte, alegou que o dito Silvério da Silva devia à sua custa só, abrir o rio nas suas terras por ter essa obrigação pelos seus Prazos, e precedendo informação do Provedor, mandou El Rei que se abrisse à custa do dito Silvério da Silva da Fonseca. Todas estas arengas se declaram nos papéis que estão no Livro 24.º de Sentenças, do fl. 971 em diante; e nas Razões no fl. 1035 do dito Livro estão bem expendidos os fundamentos por onde o Mosteiro não é obrigado a concorrer em nenhuma parte, ainda sem embargo do iníquo contrato no fl. 983 que se mostra nulo (fl. 971), nem foi atendido na Sentença do Livro 34, fl. 179, pelas razões no dito Livro, no fl. 802.

«No ano de 1746 também se fintou o Mosteiro na abertura que mandou fazer o Ouvidor como Superintendente, a que o Mosteiro acudiu, alegando o referido, e ouvidas as Câmaras das vilas de Alfeizerão e S. Martinho, se julgou que o Mosteiro não é obrigado a concorrer para as ditas aberturas (Livro 34 de Sentenças, fl. 24).

«Por uma Provisão de D. José I, lavrada a 2 de Setembro de 1775, pede ao Mosteiro [para] fazer citar os Juízes e Câmaras das vilas da Cela, Maiorga, Alfeizerão, Alcobaça, Cós e Pederneira, para os reparos dos cômoros e motas destruídos por efeitos das cheias (Caixão das 3 Chaves, Gaveta 8)».

 

Fonte: «Livro de Privilégios, Jurisdições, Sentenças, Igrejas deste Real Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça» (DGA/TT, Ordem de Cister, Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, liv. 92, fl. 274r).



quarta-feira, 10 de junho de 2020

O Livro de Privilégios, Jurisdições, Sentenças e Igrejas do Mosteiro (1750-1833)

Após algum tempo acessível pela hiperligação do meu apontamento nesta página, coloquei o nosso PDF sobre este livro no Academia.edu.

Não é uma transcrição do livro, nem perto disso, apenas uma recolha de tudo o que encontramos sobre Alfeizerão e, pontualmente, sobre freguesias próximas (São Martinho do Porto, Famalicão, Pederneira, Salir de Matos e Cela). No conjunto, reúne numa mesma obra, informações inestimáveis sobre Alfeizerão, a vida dos seus habitantes, o castelo e a igreja matriz.

Nesta obra, o Mosteiro foi inscrevendo  a partir de 1750 as minúcias do cartório do Mosteiro, classificadas sob a égide de títulos, e dentro das secções assim criadas iam-se acrescentando novos assentos relacionados com esses temas, o que em alguns casos se prolongou até próximo à extinção da Ordem, em 1833. É plausível que o Livro servisse como obra de referência para eventuais litígios travados pelos cistercienses.  




terça-feira, 9 de junho de 2020

Um documento de 1639


Nas vésperas da Restauração, Filipe III de Portugal, por carta de 20 de Dezembro de 1639, ordena que se faça uma «Lista das cidades, vilas, lugares e concelhos das Comarcas do Reino, com indicação de seus donatários, vizinhos e ofícios, mencionando o rendimento anual destes últimos» (DGA/TT, Manuscritos da Livraria, n.º 1194). Da secção dedicada a Alcobaça e aos seus Coutos (fls. 312v a 316r da obra), transcrevemos infra aquilo que se registou sobre Alfeizerão (fls, 314r.314v).

Uma anotação intercalar, tirando Alcobaça, cabeça dos Coutos, de que não se discrimina a população, o documento apresenta a população das restantes vilas dos Coutos, expressa em número de vizinhos (fogos/famílias); não será porventura um cálculo muito rigoroso, uma vez que se salvaguarda a informação com um «pouco mais ou menos». A população dos Coutos apresenta-se assim distribuída:

Santa Catarina (300 vizinhos); Aljubarrota (300 vizinhos); Maiorga (100 vizinhos); Salir de Matos (80 vizinhos); Évora de Alcobaça (270 vizinhos); Alfeizerão (80 vizinhos); São Martinho (50 vizinhos); Alvorninha (260 vizinhos); Pederneira (200 vizinhos); Cós (70 vizinhos); Turquel (150 vizinhos); Cela (160 vizinhos).

Sobre o que o esta relação nos diz sobre Alfeizerão, e comparando com outras fontes documentais para o século XVII, parece-nos irrisória a importância auferida pelo alcaide de Alfeizerão (500 réis), atendendo a que o mesmo documento (fl. 312v) nos indica que o alcaide de Alcobaça auferia 6000 réis por ano.

 

Alfeizirão

Entra mais o provedor desta Comarca por bem do seu cargo na villa de Alfeizirão q.e he dos Coutos de Alcobaça de q. he donatário o Comendatario della q.e uza de toda a jurisdição na ditta villa, e della a [à] Cidade de Leyria são sete legoas. E a villa de Alcobaça, Cabeça dos Coutos são duas legoas.

E tera [terá] outenta vezinhos pouco mais ou menos. E nella há os oficiais seguintes.

# Juizes Vereadores, e procurador do Cons.0 [Conselho] q.e não tem mais renda q, a propina das Correiçõens q. fazem na forma da ordenação.

# hum escrivão da Camara e almotaçaria q.e rendera [renderá] sinco mil r,s cada anno q. serve nesta villa e na de Sam Martinho

# hum taballião do Judicial, notas e órfãos, q, rendera trinta mil r.s cada anno por servir nesta villa e na de Sam Martinho

# hum Juiz dos órfãos q. rendera dous mil r.s cada anno.

# hum Alcayde q. rendera quinhentos r.s cada anno.

# hum escrivão das sizas q. rendera quatro mil r.s cada anno. Serve em três villas.

                Todos estes oficiais apresenta o donatário da Coroa, tirando o Escrivão das sizas q. he posto por V. Mag.de.