sexta-feira, 17 de abril de 2015

INQUISIÇÃO - algumas notas relativas aos processos por judaísmo


          Cristão-novo é o termo comum para designar os judeus portugueses. No reinado do rei Venturoso, os judeus são obrigados a converterem-se à religião católica ou a saírem do país caso persistissem na sua crença. Com Dom João III, o estabelecimento da Inquisição em Portugal irá criar os meios institucionais para a repressão da heresia ou heterodoxia.

          Todo o cristão-novo era suspeito, e a todo o tempo, de ser um cripto-judeu ou um cristão judaizante, de prosseguir com as suas crenças e práticas mosaicas a coberto dos ritos e cerimónias da Santa Madre Igreja. No que toca ao judaísmo, o preconceito social e a ação da Inquisição possui, inegavelmente, um fundo de discriminação racial. Nos processos por judaísmo, existe um capítulo designado por Genealogia (1), onde se listam os ancestrais do réu até aos avós paternos e maternos, para esclarecer quem, entre eles, é cristão-velho e cristão-novo, e a sua quota-parte de sangue judeu; se é 1/2 cristão-novo, 1/4 de cristão-novo, 1/8 de cristão-novo, ou apenas parte de cristão novo se a sua origem judia for indeterminada, ou estiver esbatida pelo acumular de gerações e uniões. O cristão-novo, e a expressão consta dos processos, possuía nas veias sangue infecto de judeus.

          Para a Inquisição, bastava uma denúncia de outro cristão-novo, ou as suspeitas levantadas por um elemento da comunidade em que vivia, para alguém ser preso por judaísmo, quer fosse ou não, efetivamente, um cripto-judeu. Apelar para um justo julgamento ou uma apuramento imparcial da verdade dos factos era um via condenada ao fracasso desde o início, pelo que confessar o seu próprio judaísmo, e denunciar outros (a começar pela família) pelo mesmo crime era a forma mais rápida de abreviar o processo e de poder contar com a misericórdia e a benevolência dos inquisidores, que se traduzia no teor e na gravidade das penas. Famílias inteiras eram presas por este meio nos cárceres da inquisição, e a confissão de cada um dos seus membros avolumava as culpas e as acusações (descritas sob a epígrafe Outra culpa contra este reo) que pendiam sobre os seus familiares que se encontravam na mesma situação. Na sua ânsia de granjear a benevolência dos inquisidores, as denúncias visavam amigos e relações fora do círculo familiar, e a acção da inquisição progredia de forma tentacular com novas prisões e processos. Os documentos que envolvem a família dos Brito Alão são um bom exemplo disto.

          Os acusados que eram presos pela Inquisição eram encaminhados, consoante a região de proveniência, para uma das três sedes do Santo Ofício que existiam em Portugal: Lisboa (os Estaos, no Rossio), Coimbra ou Évora. O funcionamento dessas prisões e tribunais encontrava-se detalhadamente descrito nos Regimentos da Inquisição (houve quatro Reginentos sucessivos: 1552, 1613, 1640 e 1774 - os de 1613 e 1640 são muito semelhantes e foram publicados sob a égide de D. Pedro de Castilho e D. Francisco de Castro, respetivamente ), contemplando todos os aspetos e situações possíveis, desde as fases por que passavam os processos, de que forma se empregava os tormentos (nome suave para a tortura), os títulos e os cargos da estrutura, ou como se deveria proceder quando alguém se matava no cárcere ou nele enlouquecia. A Mesa de audiência dos réus é descrita de tal forma (Regimento de 1640, Título II) que quase a conseguimos visualizar:
Em cada Inquisição , deverá existir uma Casa para a Mesa do Despacho, que estará em lugar tão resguardado que fora dele não se possa ouvir coisa alguma, estarão nessa casa as cadeiras rasas e de que forem necessárias, e um banco para o preso se sentar; e estará armada no Inverno com panos de ras e com guadamecis no Verão (2).
Sobre um estrado de altura de quatro dedos haverá uma mesa coberta com seu pano de damasco carmesim, e por cima couro negro, e será capaz de ter ao menos cinco cadeiras de cada parte, e nesta mesa haverá três gavetas com chaves diferentes, em que cada um dos Inquisidores possa recolher os seus papéis, mas não meterão nela os seus cadernos, porque estes se hão-de recolher sempre ao Secreto.
Nesta Mesa estará um Missal para dar juramento, uma tábua com a oração do Espírito Santo, os Regimentos do santo Ofício, e Fisco, o Colectório das Bulas Apostólicas, e privilégios da Inquisição, tinteiros de prata bastantes para os Ministros que na mesa assistem, e uma campainha, e na parede que fica defronte do lugar em que os presos se costumam assentar, estará uma imagem de Cristo Senhor Nosso, de vulto, ornada com a decência que convém.

          A confissão ou declaração de culpa que lemos nos processos por judaísmo, não é uma declaração espontânea, pessoal, como a confissão que uma pessoa possa fazer de um delito que cometeu no passado. Essa confissão, como a delação de outros, que se serve dos mesmos termos, parece ser a repetição mais ou menos parcelar de uma minuta usada pelos escrivãos e notários do Santo Ofício, e que é composta, em regra, pelos seguintes elementos:
A crença na Lei de Moisés que era boa e verdadeira para a salvação das suas Almas, por cuja observância guardavam os Sábados de trabalho, vestindo neles camisa lavada, ou nova se a tinham [«em folha, e quando não as tinhão em folha, as vestião lavadas»], ou os melhores vestidos; começando na Sexta-feira à tarde, em que havia de concertar, ou mandar concertar, os candeeiros [ou «alimpar os candeeiros»], pondo-lhes azeite limpo, torcidas novas; cortava as unhas no mesmo dia, e no Domingo virava a camisa às avessas por desprezo do dia; passeando de noite em casa olhava para a sombra e lhe fazia reverência entendendo que nela se representava Moisés; quando lhe passava pela porta algum defunto [cortejo fúnebre] lançava fora a água que tivesse nos cântaros para beber e botasse farinha nas couceiras das portas; zombava dos cristãos velhos e lhes cuspia na sombra; fazia o jejum do dia grande que vem no mês de Setembro [Yom Kipur, ou Dia do Perdão], estando em todo o dia sem comer nem beber, senão à noite, e então ceava peixe e comia cousas que não fossem de carne; que não ouviam missa, senão por cumprimento do mundo; dissesse a oração do Padre Nosso sem Ámen Jesus no fim ao Deus grande; não comesse carne de porco, lebre, coelho nem peixe de pele [ou «sem escamas nem gordura»] e na panela das carnes mandava lançar gordura; que dormindo com cristãos velhos na cama lhes virasse as costas; comunicando estas coisas com pessoas de sua nação, apartadas da fé, com as quais se declarava por Judeu.

          Estas "culpas" de judaísmo fundem crenças hebraicas com preconceitos nascidos da aversão e ódio que lhes tinham muitos cristãos-velhos. No processo de Cristóvão Machado, é usada repetidamente uma versão abreviada desta confissão/denúncia. A forma mais extensa da confissão surge muitas vezes na sentença que encerra o processo.

          Uma acusação de judaísmo implicava a prisão da pessoa incriminada nos cárceres secretos da Inquisição. O documento de 1640, Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal, denota algum critério no acondicionamento dos presos nos cárceres, nomeadamente, o cuidado de juntarem apenas mulheres na mesma cela; ou a preocupação de isolarem o encarcerado, ou seja, um preso não poderia estar na mesma cela ou corredor que outro membro da sua família, ou de uma pessoa residente na mesma terra ou acusada do mesmo delito. Mas estando ali presos durante anos a fio (há casos de encarceramentos que duraram catorze anos), era natural que conseguissem comunicar uns com os outros de alguma forma, e derivará daí a acusação recíproca que se regista entre pessoas da mesma família: estando o familiar já nos cárceres: a acusação não o prejudicaria, e contribuía para o abreviar do processo.

          A prisão de alguém por judaísmo pressupunha a sua imediata culpabilidade, pelo que, quase sempre, essas pessoas eram presas com sequestro de bens - perdiam todos as suas propriedades e valores, que eram confiscados por um Juiz do fisco da câmara.
          João Lúcio de Azevedo (História dos Cristãos-Novos Portugueses, Clássica Editora, Lisboa, 1989) publicou um excerto (que transcrevemos) das queixas dos cristãos-novos à Sé Apostólica (Aggravos dos Cristãos Novos), onde se relata esse confisco de bens, que antecede à situação de fome e privação reservada à família daqueles que eram levados para os cárceres da inquisição.

Em quanto dois familiares do Santo Ofício trazem publicamente o reo prezo plas ruas e lugares frequentados, e ordinariamente seguidos como em um triunfo, de grande multidão de gente, vai outro familiar avizar ao Juiz do fisco, ou outro ministro de justiça em falta do dito Juiz, para que vá a fazer inventario e confiscação dos bens da casa do preso, outros dois ou tres familiares ficão nella dispostos de maneira que se segue. Hum está á porta da rua e outro em cima em huma camara adonde guarda toda a família junta à vista, para que não possa entrar nem sair pessoa alguma, nem menos algum filho do prezo possa vestir outro vestido melhor daquelle que traz vestido, ou esconder alguma couza de valor, como ouro, prata, ou joias, ou couzas semelhantes. Chegado o Juiz do fisco faz tirar das orelhas, do pescoço, das mãos e das algibeiras da Mãi, da mulher, dos filhos, assim machos como fêmeas, do seu prezo, collares, aneis, joias, dinheiro que acaso tivessem em si, e neste estado se lanção todos fora de casa, nem menos permittem que os miseraveis se componhão com os vestidos com que erão costumados a sair à rua, nem lhe permitte que levem consigo alguma couza, lençoes ou outra roupa necessaria para o seu uso, nem lhes dá alguma sorte de dinheiro para viver, nem dos mantimentos que estão em caza pera se sustentarem. Depois, fazendo-se senhor da caza [o Juiz do fisco] e tomadas todas as chaves, começa com os seus ministros a fazer o inventario, que dura às vezes sinco ou seis mezes, e em todo aquelle tempo tem a porta da rua com travessas.

          Ironicamente, apesar de os acusados permanecerem nos cárceres até ao desfecho do processo, e de lhes serem confiscados os bens, não é raro encontrar-se, entre as penas que lhe eram imputadas, a sua obrigação de cobrirem as custas do processo.

          Outras penas comuns, sem mencionar a pena de morte (que não sucedeu nos casos que estudamos), era a participação nos Autos de Fé, onde confessavam publicamente as suas faltas, a transferência para os cárceres do concelho onde continuariam a cumprir pena por um tempo estipulado, o degredo ou as galés.

          A abjuração em forma que surge entre as penas, é um documento impresso que fica inserido no processo (imagem infra), completado com os dados do réu (ou ré) e por ele assinado, onde ele jura continuar a seguir a fé católica, e a revelar as heresias de que tiver conhecimento - o que poderia ser útil aos inquisidores em caso de reincidência.


Um exemplo de uma Abjuração em forma
          Um dos documentos que encerra o processo, com um nome algo sinistro, é o Termo de Segredo, outra folha impressa no qual o réu se compromete a guardar segredo sobre o que viu e ouviu dentro da prisão:
(...) sendo presente lhe foy dado juramento dos Santos Evangelhos, em que poz a mão, & sob cargo delle lhe foy mandado, que tenha muito segredo em tudo o que vio,& ouvio nestes carceres, & cõ ella se passou acerca de seu processo, & nem por palavra, nem escrito o descubra, nem por outra qualquer via que seja, sob pena de ser gravemente castigada, o que tudo ella prometteo cumprir.


O SAMBENITO

          O sambenito é o nome para o manto penitencial a cujo uso eram condenados os réus da Inquisição e que era formado por um escapulário que ostentava à frente e atrás uma cruz de Santo André, ou seja, uma cruz em forma de X. A cor do manto e da cruz, podiam variar, e esse manto podia por vezes ter outros motivos adicionais, como as chamas no sambenito daqueles que iriam ser queimados no auto-de-fé. Aos reconciliados, diz-nos o Regimento do Santo Ofício da Inquisição do Reino de Portugal, de 1613 (Capítulo 47), «mandarão prover de sambenitos de pano amarelo [cor da bolsa de Judas], com faixas de pano vermelho postos em aspa, para que os tragam assim como os levaram ao Auto-de-fé, e em suas sentenças de reconciliação se contêm».

          O sambenito parece ser anterior ao estabelecimento da inquisição, e representaria um traje envergado por aqueles que pretendiam expiar os seus pecados, e que era, para esse efeito, bendito por um religioso; de «saco bendito», segundo alguns autores, proviria o termo sambenito, depois aproximado ao de São Bento, reverenciado como triunfador sobre o Satã e o pecado.

          A cruz de Santo André possui uma simbologia mais obscura. Este discípulo de Cristo, prestes a ser martirizado, teria modestamente pedido para ser crucificado numa cruz em diagonal por não se sentir digno de morrer da mesma forma que Jesus. A sua cruz nas vestes de um penitente seria um sinal de dor e sofrimento, marcadamente diferente da cruz latina de Jesus, porque o penitente desviara-se, perdera-se, do caminho de salvação reservado a todos os cristãos, e apenas a penitência ou o sacrifício o poderia trazer de volta ao grémio dos abençoados pelo Altíssimo. E os condenados usarem nas vestes uma cruz diferente da cruz de Jesus evitava qualquer associação consciente ou subconsciente com o suplício e morte do Salvador.

          O manto penitencial perpétuo era o castigo reservado pela Inquisição aos cristãos-novos judaizantes, o estigma ignominioso que lhes era imposto para lhes recordar, e a todos os que o rodeavam, que haviam desprezado ou insultado a oportunidade de salvação que lhes havia sido dada com a conversão ao catolicismo.

          E o cumprimento dessa penitência do manto perpétuo era regulado atentamente pela estrutura inquisitorial. Os penitenciados que fossem achados sem o seu hábito perpétuo, seriam repreendidos na Mesa da Inquisição, e os Inquisidores dariam ordens para que houvesse Familiares ou pessoas que os vigiassem. E se fosse apanhado fora do lugar em que habitava sem o hábito ou com ele dissimulado por outras roupas, perderia «os vestidos, ou a cousa com que trouxer coberto o dito hábito». E as justiças seculares, achando os ditos penitenciados sem as ditas penitências deviam prendê-los e entregá-los aos inquisidores (Capítulo 61 do Regimento de 1613).


(gravura de Goya)

NOTAS:

(1) A inquirição sobre a genealogia era minuciosa e exaustiva, como se depreende das instruções do Regimento de 1613 (Título IV, 12): 
Na primeira sessão será perguntado pela sua genealogia, em forma, declarando donde é natural, como se chama, a idade e ofício que tem, e os nomes de seu pai, mãe e avós paternos e maternos, assim vivos vomo defunctos, e dos transversaes que se lembrar, e donde eram naturaes e moradores, e o officios que tiveram, e com quem foram casados, e se são vivos ou defunctos eos filhos que os ascendentes e transversaes deixaram, e quantas vezes foi casado, e os filhos que teve, ou tem, e de que idade são. E assim declarará de que nação é. e se elle, ou os ditos seus parentes, tem alguma raça de mouro ou judeu - e se lhe perguntará pelo decurso da sua vida, onde se ha criado e com que pessoas, se sabe ler ou escrever, e se aprendeu alguma sciencia,e se andou fora deste Reino, e em que partes esteve, e as pessoas com quem conversou e tratou, e se foi reconciliado, preso, ou penitenciado pelo Santo Officio, ou é neto de relaxado, e se sabe as orações de Christão, com as mais perguntas costumadas.

(2) O banco ou cadeira rasa era para os presos comuns. Os outros, e eram muitas as excepções, tinham direito a cadeira de espaldas, tal como pormenoriza o Regimento de 1613:
Dignidades, cónegos de Sés ou igrejas colegiadas, Provisores, Vigarios e Desembargadores dos Prelados e Relações Eclesiasticas, Priores de Convento ou Collegio, ou Abbades, ou Relligiosos, ou Priores ou Abbades de Igrejas Paroquiais, Fidalgos, Desembargadores, Corregedores, Juízes, Ouvidores, Vereadores ou Cidadãos das Cidade, ou os do governo de Villas notáveis, Doutores ou Licenciados por Universidade, e Bachareis formados pelas Universidades aprovadas, ou os que tem privilegio de Desembargadores, aos Secretarios d’El-Rei, Escrivão da Fazenda da Camara, assim d’El-Rei, como das Cidades ou Villas notaveis, ou pessoas nobres, e por tal conhecidas.

domingo, 5 de abril de 2015

O "Santo Ofício" e a vila de Alfeizerão


          Estamos a elaborar um singelo artigo sobre a perseguição movida pela Inquisição à família judia dos Brito Alão, que originou o encarceramento e condenação (por judaísmo e apostasia) de diversos membros da família que moravam na vila da Pederneira e na Quinta da Cavalariça, termo da vila de Alfeizerão. Este é um tema com diferentes leituras possíveis, que tentaremos abordar com algum critério e ponderação. No emmeio desse artigo em preparação, surgiram-nos outros documentos da Inquisição (quatro) em que o topónimo Alfeizerão era indicado, e são esses documentos que evocamos agora, superficialmente, neste texto. Qualquer um dos processos aludidos do chamado Santo Ofício, foi disponibilizado em formato digital pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo (como milhares de outros documentos da Inquisição, que abrangem processos, cartas, confissões, diligências e denúncias), num trabalho utilíssimo e gigantesco que sublinhamos e enaltecemos.

          Os quatro documentos em foco são algo diferentes entre si, e ilustram bem o ofício dos inquisidores. De um quinto processo da Inquisição (de grande interesse), sobre o pirata alfeizerense Pedro Fernandes da Costa, já aqui publicamos a transcrição feita por Casimiro de Almeida. Assinale-se, a título de curiosidade, que também a vila da Pederneira teve o seu pirata: chamava-se Álvaro Dias - nascido na Pederneira, foi capturado pelos piratas, acabando por se tornar num deles; com o novel nome de Solimão luta como artilheiro pirata até ser feito prisioneiro. É levado aos inquisidores sob a acusação de arabismo, mas as coisas correm-lhe bem: cumpre algumas penitências e é reeducado na religião católica. No final do processo (folha 16), atesta-se que ele está bem instruído nos mistérios da Santa Fé, e que comungara depois de se confessar na Igreja de São Roque, em Lisboa, a 29 de Maio de 1631.

1- JOANA FERREIRA  

          O processo de Joana Ferreira, desenrola-se nos anos de 1584 e 1585. Ela é natural de Alfeizerão, nascida no seio de uma família de cristãos-novos: João do Couto, sapateiro, e Beatriz Vieira. Sabemos pelas inquirições do processo que este sapateiro alfeizerense é órfão de pai e que a mãe se chama Inês do Couto, e que a sua esposa, Beatriz Vieira, é filha de Lionardo [sic] Vieira e Ana Ferreira.
          Joana Ferreira trabalha na Póvoa de Santa Iria, termo de Lisboa, como criada de um carpinteiro, Francisco Fernandes, cristão-velho. Presa aos vinte anos pela inquisição sob a acusação de «blasfémias contra o nome de Jesus», é condenada a integrar um auto-de-fé particular e à abjuração e penitência pública. 
          Francisco Fernandes, o carpinteiro de Santa Iria para quem Joana Ferreira trabalhava, é preso pouco depois (processo 4232 do Tribunal do Santo Ofício) com a acusação similar de blasfémias. Na prática, são dois processos separados sobre a mesma transgressão, já que a ré Joana Ferreira é confrontada também neste processo de Francisco Fernandes (pg.. 16), O carpinteiro dá corpo ao mesmo auto-de-fé que ela (realizado a 23 de Julho de 1585), e condenam-no a abjurar, a penitências públicas e a pagar as custas do processo. Os processos de ambos são conduzidos por Bartolomeu da Fonseca e pelo Inquisidor-mor do reino, D. Diogo de Sousa.


2- SILVÉRIO SALVADO DE MORAIS (diligência de habilitação de)

          Documento datado de 1627, representa uma diligência de habilitação de Silvério Salvado de Morais para Familiar do Santo Ofício. Nesta data, o candidato, que é natural da Guarda, desempenha as funções de alcaide-mor de Alfeizerão e reside em Alcobaça. Silvério Salvado de Morais é cavaleiro da Ordem de Cristo, e tem como abono o facto de o sogro, Francisco da Silva, ser irmão do inquisidor de Lisboa, o bispo Pedro da Silva de Sampaio (que ocupou o cargo entre 1617 e 1632, antes de rumar ao Brasil). 
          Grande parte deste processo (uns vinte fólios) encontra-se gravemente deteriorado mas, do que subsiste, percebe-se que a inquirição levantada pelos inquisidores aos familiares de Silvério Salvado de Morais e da esposa, Micaela da Silva (um interrogatório cerrado com diversas perguntas padronizadas - enunciadas nos fls. 3 e 4), comprova a sua lympeza do sangue e geração, ou seja, que são christãos velhos legitimos, limpos e de limpo sangue, sem raça alguma de Judeus, Mouros, Cristãos Novos ou de outra secta. Por sua vez, a inquirição sobre a estatura moral de Silvério Salvado de Morais, procurava averiguar se ele era homem de boa vida e costumes, quietto, pacifiquo, capaz de segredo, pra delle se poderem fiar [em] negocios de segredo e importancia.
       
           Extra-texto, lembramos que os Familiares do Santo Ofício representavam a base da estrutura hierárquica da instituição, formada por leigos que se vinculavam à Inquisição e "policiavam" as comunidades em que estavam inseridos,fazendo diligências, denúncias e prisões. No Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal, publicado um pouco depois desta data, em 1640, encontram-se esmiuçados os requisitos e funções dos Familiares (no Título XXI). de onde transcrevemos este trecho:
          Os Familiares do S, Officio, serão pessoas de bom procedimento, & de confiança, & capacidade conhecida: terão fazenda, de que possão viver abastadamente (...). Na vespora, & dia de Saõ Pedro Martyr, sendo possivel, se acharão na Inquisição do seu districto para acompanharem o Tribunal, & assistirão na Igreja, em que se celebrar a festa do Santo: no dia em que se fezer o Auto da Fé, se acharão ante manhaã na Inquisição, para hirem com os prezos na procissão; e sómente nestes dias, & quando forem prender alguma pessoa, ou a trouxerem preza para os carceres, levarão o habito de Familiar do Santo Officio, que haõ de ter.
           Por outro lado, o segredo ou a capacidade de guardar segredo, que várias vezes é inquirido nesta diligência de Salvado de Morais, era algo indispensável aos inquisidores e seus coadjutores, como se encontra estabelecido no Título 7 do mesmo Regimento de 1640: E por quanto o segredo he huma das cousas de mayor importancia ao santo Officio, mandamos, que todos o guardem com particular cuidado, não só nas materias, de que poderia resultar prejuizo se fossem discubertas, mas ainda naquellas que lhes parecerem de menos consideração, porque no Santo Officio não há cousa em que o segredo não seja necessario.

3 - MARIA RODRIGUES (processo de)

          Neste processo, iniciado a 24 de Setembro de 1701, Maria Rodrigues, natural de Pombal e a viver em Setúbal, acusa de bigamia o marido, conhecido pelos nomes de Manuel do Couto ou Manuel Francisco, que era natural de Alfeizerão [Alfizerão], e que alegadamente, depois de viver com ela durante seis meses, se teria ausentado para se casar com Maria Gonçalves, moradora na mesma cidade de Setúbal. É ordenada a prisão de Manuel do Couto, com sequestro de bens (página 11), e ordenada a obtenção das duas certidões de casamento para se comprovar o delito. Depois de averiguada a acusação, Manuel do Couto é ilibado e solto, enquanto é presa Maria Rodrigues, por perjúrio, e condenada a um auto-de-fé, a pagar as custas do processo e a degredo por três anos para o couto de homiziados de Castro Marim.

          (Manuel do Couto era filho de Domingos Pires, lavrador, e Lucrécia Álvares, residentes em Alfeizerão).

          Nota: a bigamia, era um dos delitos que estava sob a alçada da Inquisição, como o comprova o já citado Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal.

Processo de Maria Rodrigues, cazada com Manoel Francisco trabalhador 
natural da villa de Pombal, Bispado de Coimbra, moradora na de Setubal [Setuual), 
Arcebispado de Lisboa, preza nos carceres da Inquisição da mesma Cidade
4 - CRISTÓVÃO MACHADO (processo de)

         Cristóvão Machado, meio cristão-novo, natural de Aljubarrota, e que vivia de sua fazenda na vila de Alfeizerão, é preso com a idade de 35 anos a 12 de Maio de 1683 sob a acusação de judaísmo. A sua prisão devera-se a revelações feitas pelo seu irmão Bento Brado da Silva, meio cristão-novo, que fora preso por culpas de judaismo nos cárceres secretos da inquisição de Évora a 12 de Maio de 1692, dos quais foi trazido para a Inquisição de Lisboa. Interrogado pelo inquisidor Estevão de Brito, declarara que, quatro anos antes, se achara com o seu irmão Cristóvão de Machado, casado com uma cristã-velha chamada Maria de Almada; e estando ambos sós, entre práticas de que já não se lembra, ouviu dizer a seu irmão que acreditava na Lei de Moisés para a salvação das suas almas e que em observância dela, guardava os Sábados de trabalho. Foi lida a confissão e Bento Brado da Silva assinou.

          Interrogado Cristóvão Machado sobre os seus bens ou rendimentos no título Inventário, responde este:
Disse que não tinha bens alguns de raiz seus, e vivia do rendimento de huma _____ [?] de sua mulher, Maria de Almada com obrigação de duas missas cada anno a capella de São João Baptista de Alfeizerão, e algumas terras livres que não sabe indicar. E que de bens moveis tinha so os necessários para o seu uzo.
          Interrogado sobre o motivo da sua prisão, e diante do inquisidor Pedro de Ataíde de Castro, Cristóvão Machado, com um dia de prisão, faz e assina a sua longa confissão a 13 de Maio de 1683 (páginas 29-38), na qual denuncia a sua irmã, Maria Baptista, mulher de António da Cunha, natural da vila de Aljubarrota e moradora na vila da Pederneira, já que quinze anos antes, quando se vira a sós com a sua irmã, entre práticas de que já não se lembra, esta lhe confessara a sua fidelidade à Lei de Moisés e às práticas próprias dela. Confirma também a conversa havida com o seu irmão Bento Brado da Silva, não se lembrando muito bem como haviam falado da Lei de Moisés e da sua observância. Mais relata que, oito anos antes, na sua quinta junto a Aljubarrota, conversara com seu irmão Jerónimo Rodrigues, meio cristão-novo que vivia da sua fazenda, casado com Catarina de Almada, e por ocasião de falarem nas prisões do Santo Ofício com a sua irmã, Maria Baptista, eles declararam a mesma fé (a Lei de Moisés e a sua observância). Denuncia também, nos mesmos moldes, ao seu irmão Francisco da Silva, meio cristão-novo, com quem estivera cinco anos antes na quinta da Charneca, termo da cidade de Lisboa; e ao seu irmão Sebastião Nunez, meio cristão-novo, com quem conversara cerca de um ano atrás junto da igreja de Santa Ana dessa cidade (Lisboa); e ainda… que cinco anos antes, numa eira junto à vila de Alfeizerão, se achou com o seu irmão Rafael da Silva, que era alferes de ordenança, também natural de Aljubarrota e morador em Alfeizerão, e que este confessara ser observante e crente na Lei de Moisés; e ainda… que dez meses antes, em Lisboa, em casa de Benjamim Sebastião da Silva, e estando ambos a sós, este lhe declarou o mesmo. E as denúncias sucedem-se: Sebastião da Silva, natural de Alcobaça, um quarto de cristão-novo; o primo António da Silva, um quarto de cristão-novo; a tia materna Catarina da Silva, natural de Alcobaça, com quem ficam associados nas culpas de judaísmo, outros cinco familiares que se encontravam em sua casa (todos citados pelos nomes).

          Cristóvão Machado é condenado a auto-de-fé, a abjurar das suas crenças judaicas, a usar o hábito penitencial, e a cumprir as penitências espirituais. A 23 de Agosto (página 65), sem dúvida, como prémio pela sua copiosa colaboração, os inquisidores dão por levantado o cárcere e tirado o hábito, e que pode ir para onde bem quizesse, contanto que não seja para fora do Reino sem licença desta Mesa, ficando apenas obrigado a algumas penitências espirituais; como confessar-se e comungar nas quatro datas principais do ano (Natal, Páscoa da Ressureição, Espírito Santo e Assunção de Nossa Senhora).

Processo de Christovão Machado, meyo Christão novo que vivia de sua fazenda, 
natural de Algibarrota e morador na villa de Alfeizirão