Manhã de céu levemente encoberto, luz tamisada pelo sendal das névoas altas, subimos ao Monte do Facho, que ladeia pelo norte S. Martinho do Porto. Em baixo, um largo rasgão nos penhascos da costa, deixa entrar o mar na Concha de S. Martinho, bacia marítima de forma elíptica, com cerca de dois quilómetros de extensão por meio de largura. Para além do halo de areias, que a circunda, estende-se a imensa várzea, onde rasteja a vinha e verdejam caniços, que separam hortas e mouchões. A meio caminho do horizonte, sobre a esquerda, alveja, fresca e esparsa, Alfeizerão; a meio, mais apinhada, Maceira; e sobre a direita, junto ao rebordo do monte fragoso, que franqueia a entrada ao mar, algumas casas de Salir do Porto. Por detrás, monstro cinzento-escuro, bordando a costa, a serra do Bouro, e mais extensa, dum violeta pálido, a fechar os horizontes, a serra dos Candeeiros.
Outrora, sobre as vastas campinas de Alfeizerão, de Cela e S. Martinho, rasgava-se e dilatava-se uma baía vastíssima, onde, ainda no reinado de D.Manuel, junto da primeira daquelas povoações e de Salir do Porto, se abrigavam dezenas de naus e caravelas. Na vasta fundura aquática, de onde o sol chispava revérberos, alvejavam as velas latinas e os treus [tipo de pano de velame] quadrangulares; e as «chavascas», de recorte mourisco, partiam de velas pandas para as pescarias no mar próximo. Depois, multiplicaram-se na lagoa as ínsuas e os canais, que a areia pouco a pouco cegou, até de todo reduzir a baía a uma pequena concha.
(...) À tarde, subimos à Pederneira sobre a costa alta. A meio da curva descendente do céu, o sol dardejava por entre as nuvens feixes de raios luminosos, num poente apoteótico e dramático. Em baixo, a Nazaré, porto e praia nova, que nascera, como Vénus Anadiómena, do mar, apertava contra o morro do Sítio as casas, os barcos de proa alta e o burburinho humano. E foi meditando que o rio Alcobaça (Alcoa e Baça) desaguava um quilómetro mais ao norte e, por consequência, confinando diretamente com a serra próxima, que abrangemos todas as razões pelas quais a Pederneira fora o melhor porto dos coutos de Alcobaça, que ali despejava através do rio os seus produtos, já no século XII exportados por mar.
O sol entretanto descera. Tornara-se imenso e rubro. Afogava-se aos poucos, como as paisagens que morreram, numa lenta agonia.
(Jaime Cortesão, Portugal - A Terra e o Homem, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987)
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