sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Recurso: as «Antiguidades romanas de Alfeizerão», o artigo de José Carvalhaes (1903)

Os achados romanos no Pedrógão, cômoro cheio de mato que ainda lá se encontra na margem esquerda do rio, junto ao Casal da Ponte, e uma prospeção arqueológica realizada pelo arqueólogo nas Ramalheiras. Vestígios arqueológicos e epigráficos romanos em Alfeizerão e freguesia foram assinalados em diversas épocas e por diferentes autores, mas tirando o que se conservou em museus ou na posse de particulares, muitos desses vestígios estão confiados à terra à espera que os escavem e estudem, enquanto muitos outros terão desaparecido já diante de depredação movida por interesses económicos e imobiliários.

CARVALHAES, José, "Antiguidades romanas de Alfazeirão", in O Archeologo Português, Vol. VIII, n.º 4, pp. 90-93, Janeiro de 1903, edição do Museu Ethnologico Português, Lisboa, Imprensa Nacional, 1903







terça-feira, 3 de outubro de 2017

O delíquio do rei, a quinta de Silvério da Silva e uma oferta abadesca



              As Caldas da Rainha, a sua história e o seu património cultural, está fortemente vinculada à figura do rei D. João V, que a ela acorreu em busca de cura ou paliativo para as sequelas de um ataque de paralisia:
                «Quinta-Feira, 10, do corrente [mês de Maio], pelas 4 horas da tarde sobreveyo a ElRey nosso Senhor hum delíquio, que brevemente se deu a conhecer por ataque de Paralysia, porque lhe debilitou a parte esquerda do corpo, porém sem febre alguma, e deixando-lhe sempre o entendimento e a fala livres, de sorte que logo se confessou. Com os remedios que se deram a Sua Mag. se achou na manhan seguinte mais aliviado da cabeça. E nam só pedio o Viatico, que na mesma manhan se lhe administrou; mas também, sem outro impulso que o da sua piedade, quiz receber as absolvições in articulo mortis do Nuncio de Sua Santidade e dos Comissários das Ordens Terceiras de S. Francisco e do Carmo» (“Gazeta de Lisboa”, Num. 20, Terça feira 15 de Maio de 1742)
                O mesmo periódico, a 6 de Junho, informa que «Sua Magestade continua com grande melhora na sua queixa e para se lhe limpar qualquer residuo da sua molestia, se lhe tem receitado os banhos das Caldas chamadas da Rainha, para o que se tem mandado fazer todas as disposições convenientes» (“Gazeta de Lisboa”, Num. 26, Terça feira 26 de Junho de 1742).
                As disposições incluíam ordens para a reparação das estradas por onde o rei iria viajar e a construção de palácios de madeira na vila termal para alojamento da corte (GUIMARÃES, 1875, p. 235).
                D. João V iniciou a sua viagem para as Caldas a 9 de Julho, primeiro de bergantim até ao porto de Vila Nova de Rainha, e daí, num coche preparado para a ocasião, fez o resto da viagem até às Caldas, passando por Alenquer. Chegado á igreja do Senhor da Pedra, em Óbidos, apeou-se, mandou sair os fiéis que estavam na igreja, e nela entrou para orar. Nas Caldas, onde chegou a 10 de Julho, parou também diante do hospital para rezar à imagem da Senhora do Pópulo (PIMENTEL, 1892, p. 239). O rei hospedou-se em casa de António de Lima, contígua à do desembargador João de Proença, onde a rainha, que viajou depois dele, se aposentou, criando-se um passadiço entre os dois prédios. O infante D. Francisco ficou acomodado na quinta de Bernardo Freire (depois conhecida por Quinta das Janelas), enquanto os filhos naturais de D. João V ficaram hospedados na Quinta de Silvério da Silva em Alfeizerão (PIMENTEL, id.; GUIMARÃES, id.), ou seja, Silvério da Silva da Fonseca Salvado (1699-1788), senhor da casa de Alcobaça, pai de Manuel Pedro da Silva da Fonseca, e avô de outro Silvério da Silva da Fonseca, nascido no ano do terramoto. Os ditos “filhos naturais” de D. João V são os seus filhos ilegítimos, nascidos de mães diferentes, que o rei reconhecerá por um decreto emitido nas Caldas a 6 de Agosto (o "Decreto porque S. Majestade houve por bem declarar três filhos ilegítimos”), mas que só se tornará oficial dez anos depois.
                Conta Ribeiro Guimarães: «Os frades de Alcobaça, apenas a corte chegou às Caldas, enviaram-lhe um presente que constava do que se segue – 69 vitelas, 194 presuntos, 182 queijos, 210 perus, 692 galinhas, 12 cargas de fruta, 36 paios, 333 caixas com doces – dividindo pelas pessoas reais e indivíduos da corte aquelas comedorias». O rei também destinou parte da oferenda aos frades das Gaeiras, e prodigalizou em todas as direções generosas donativos e presentes, a enfermeiros, médicos, anfitriões, dignitários e religiosos das Caldas, à igreja matriz das Caldas e á igreja do Senhor da Pedra.
                Sentindo algumas melhoras nas Caldas (onde voltará mais doze vezes), o rei D. João V regressa a Lisboa no dia 16 de Agosto. Durante esse período de tempo, sucede um acontecimento funesto, a morte do infante D. Luís, comunicada nestes termos pela Gazeta de Lisboa (nº 30, de 24 de Julho de 1742): «O Sereníssimo Senhor Infante D. Francisco, estando de cama por haver molestado uma perna ao apear-se do coche, lhe sobreveyo na terça feira huma colica, acompanhada de dores tam violentas que poz em cuidado aos Medicos. Na quarta feira se lhe aplicou o remedio da sangria, e se moderou a sua queixa até quinta feira, em que o mal se aumentou, reforçado com huma grande febre, a que nam aproveitou a aplicaçam das sarjas [incisões para sangria]; e depois de fazer todas as disposiçoens de Príncipe mais pio, resignado na vontade do Senhor, lhe entregou o espírito pelas oito horas e hum quarto da noite de Sábado, 21 do corrente».


Obras referidas:
GUIMARÃES. J. Ribeiro, Summario de Varia História, v. 5º, Lisboa 1875.

PIMENTEL, Alberto, As amantes de Dom João V - estudo histórico, Lisboa, Tipografia da

                      Academia Real das Ciências, 1892


quinta-feira, 25 de maio de 2017

O manuscrito 503 - as Notícias de Cristóvão de Sá Nogueira (1721)

 O manuscrito 503: «NOTICIAS REMETIDAS À ACADEMIA REAL DEBAIXO DA REAL PROTEÇÃO DO MUITO ALTO E MUITO PODEROSO REI N. SNR. D. JOÃO 5ª/ LEIRIA».

                Em 1721, em resposta a uma solicitação régia, o provedor da comarca de Leiria, Brás Raposo da Fonseca, envia à Academia Real da História Portuguesa um relatório escrito por Cristóvão de Sá Nogueira, ouvidor da comarca, com notícias sobre Leiria e vinte e duas vilas da sua comarca, a saber: Alcobaça, Alfeizerão, Alpedriz, Alvorninha, Atouguia, Batalha, Cós, Cela, Ega, Évora de Alcobaça, Maiorga, Peniche, Pederneira, Pombal, Póvoa de Monte Real, Redinha, S. Martinho, Porto de Mós, Santa Catarina, Salir de Matos, Soure e Turquel.
                Desse manuscrito, guardado na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (BGUC – Ms. 503), transcrevemos na íntegra as Notícias referentes a Alfeizerão (Fls. 81 v. – 84 v.), atualizando apenas a pontuação, e separando algumas palavras indevidamente unidas.
                No final dessa transcrição, encadeamos em jeito de comentário, algumas anotações sobre o teor do manuscrito.

Original e transcrição








Alfeizarão
            Esta villa he do dominio do Convento de Alcobaça, e nella se contão 70 vezinhos que todos são tributarios ao dito Comvento. A camara della não tem Renda alguma, nem pregaminhos antigos, privilegios, ou doações, e só se achão nella os Livros de vereações, e os mais tocantes ao Concelho.
            Na dita Camara se fazem só tres procissoes, a saber: a do Corpo de Deos, a do Anjo Costodio, e outra por devoção a N. Sra. da Nazaret.
            Na mesma villa não há Caza da Mizericordia, maes que huma caza imcapás de abitação, a que chamão Hospital sem forma alguma em que se costumão Recolher alguns pobres passageiros, e he villa que não merece tal nome, e tem as Aldeas seguintes:
            Famalicão de baixo com 40 vezinhos ao norte, Mata da Torre com 3 vezinhos ao nascente, os cazaes dos Rapozos com 12 vezinhos ao Sul, o Lugar de Valado com 20 vezinhos ao Sul, o Lugar dos Mosqueiros e Cazalinho com 10 vezinhos ao Sul, Val de Maceyra com 6 vezinhos, ao nascente.
            Na dita villa há huma Igreja matriz com o nome do Spirito Sancto, defronte da qual á porta de João de Charia Henriques achey huma pedra que serve de assento, em a qual está exculpido o Letreiro seguinte, e no fim da terceira Regra estão tres signaes q. parecem letras, e o dito Letreiro tem sinco Regras.
            E no Castello da dita villa a [à] entrada da terceira porta a mão dereita está huma pedra no cham com hum Letreiro com outo Regras, e a tal pedra está quebrada da parte donde se começão a ler as letras, e tãobem donde acabão e está parte della quebrada e se não acharão os pedaços [1º e 2º letreiros].
            No mesmo Castello, e porta asima dita dentro na parede está huma pedra que tem quatro palmos de comprido que sem huma só Regra, cujos caracteres se não puderam copiar por não terem forma de letras.
            Na dita villa não há maes Irmandadez que a do Senhor, e se me não deu noticia de outra alguma Confraria, e só achey huma Cappella que instituio Catherina Dias mulher de Amador Velho em 18 de Julho de 1630.
               
                Comentário:
                Na vila, Cristóvão de Sá Nogueira visitou o edifício da Câmara, o hospital, o castelo e a igreja do Espírito Santo, que servia de igreja matriz, não aludindo à Igreja de S. João Batista, então arruinada, ou à capela de Santo Amaro. Sobre o hospital, deixa claro que não é uma Misericórdia, e descreve a sua função modesta de dar guarida a alguns pobres em viagem. No Dicionário Geográfico (CARDOSO, 1747, p. 277) do padre Luís Cardoso, escreve-se na mesma toada que esse hospital, administrado pela Câmara da vila, tinha tão curta renda que «apenas suppre a despeza de mandarem conduzir os pobres para os outros Hospitaes».
                Sobre os lugares da freguesia, Cristóvão de Sá Nogueira indica os Casais dos Raposos que o padre Luís Cardoso omite, mas em relação a este, não refere Famalicão de Baixo, a Macarca ou o Rebolo.
                Dos três letreiros ou pedras com inscrições, Cristóvão de Sá Nogueira transcreve duas. A primeira, uma lápide romana da sepultura de Terência Camira (filha de Terência Máxima, que mandou lavrar a pedra em sua memória), foi também transcrita por Frei Manuel de Figueiredo na sua Corografia da Comarca de Alcobaça (1788).


(a cópia de Fr. Manuel de Figueiredo)

                A segunda lápide romana, esta achada no castelo pelo ouvidor da comarca, tinha sido copiada e interpretada mais de um século antes por Frei Bernardo de Brito na Monarchia Lusitana (BRITO, 1597, fl. 244); e ainda que as duas cópias da mesma pedra possuam algumas diferenças óbvias (o ouvidor apenas transcreveu a parte inicial da lápide quebrada), esta lápide, segundo Brito, é consagrada a Sulpícia Avita, filha de Lúcio, e foi erigida por Quinto Servílio Avito, filho e herdeiro de Gaio Servílio Lauro.
(a cópia de Bernardo de Brito)

                Sobre a igreja do Espírito Santo, situada no «coração da vila» (Pe. Luís Cardoso) com a porta principal virada a Sul (segundo Frei Manuel de Figueiredo), que deveria abrir, acreditamos nós, para o largo ou praça central da vila de então, cuja identificação ainda se apoia apenas ou ainda em conjeturas. A localização da igreja junto à praça central da vila é também admitida pelo professor Dr. Saúl António Gomes com base nestas notícias de Cristóvão de Sá Nogueira (GOMES, 2014, p. 56). Defronte da igreja (plausivelmente, no outro lado do largo) à porta da casa de João de Caria Henriques, foi achada a primeira lápide romana. Deste João de Caria Henriques encontramos menção nos assentos paroquiais de Alfeizerão, nomeadamente no seu 2º Livro de Batismos, que compreende os anos de 1678 a 1696 (ADLRA, IV/24/B/30. Fls. 1 e 33) - era filho do capitão António Carreira, e o seu apelido provinha-lhe da mãe, Maria Henriques, esposa do dito capitão.
                Uma última nota sobre a capela fundada por Catarina Dias, esposa de Amador Velho. Poderíamos supor (e não seríamos os primeiros a fazê-lo) que esta capela faria parte da igreja do Espírito Santo, o único templo na vila que foi visitado por Cristóvão de Sá Nogueira, mas as notícias escritas pelo seu punho estão longe de o afirmar. Esta capela deveria ser um edifício distinto da igreja matriz, instituída pelas mesmas motivações que levavam as pessoas a legar bens ou rendas às confrarias, igrejas e conventos – assegurarem a benevolência dos Céus, e um futuro bem-aventurado no Além. E a comprová-lo, encontramos esta mesma capela no assento de óbito e testamento de Maria Neta, figurando entre as confrontações de uma terra doada à Confraria do Santíssimo Sacramento de Alfeizerão. Transcrevemos esse assento, atualizando a grafia e pontuação, do Livro de Registo de Óbitos da freguesia de Alfeizerão – 1666-1747 (ADLRA, IV/24/C/11, fl. 16). Sobre esta capela, ainda se nos oferece dizer que se situaria não muito longe da igreja do Espírito Santo e do seu largo (refere-se uma terra dos círios da igreja para nascente) e, claramente, na parte do sul da vila, uma vez que se aponta como demarcação o «rio que vem da ponte», o próprio rio de Alfeizerão, ou algum esteiro ou canal de irrigação escavado a partir dele.

            Aos quinze dias do mês de Novembro de seiscentos e setenta e seis anos, faleceu Maria Neta, solteira, desta vila de Alfeizerão, filha que ficou de António do Couto e Maria Neta desta dita vila; deixou uma terra que está atrás dos pomares que herdou dos seus pais com a abrogação de uma canada de azeite que se pagava à Confraria do Santíssimo Sacramento, e a dita terra que ficou à dita Confraria parte do nascente com terra dos círios da igreja, poente com umas que ficaram da capela de Amador Velho que aí possui António Velho de Salir de Matos, a quem pertence [se ee] a dita capela por morte de seu pai, Custódio Velho, herdeiro do dito Amador Velho; Norte com cerrada de Manuel do Couto, irmão da defunta, poente [«ponente», seria, por lapso, Sul] com rio que vem da ponte; deixou mais a dita, uma terra na ____ desta vila à Confraria do Espírito Santo que parte do norte com Manuel de Oliveira, o Moço; Sul, com terras da dita Confraria, nascente com o dito Manuel de Oliveira, e poente com terras de Silvério da Silva da Fonseca, alcaide-mor desta dita vila e da de S. Martinho. Está sepultada na igreja matriz, na sepultura dos seus antepassados. Era ut supra.
O Prior de S. Martinho e Vigário de Alfeizerão, Pe. Antão Carreira
[ADLRA, IV/24/C/11, fl. 16]

Fontes:

BRITO, Bernardo de, Monarchia Lusytana composta por frey Bernardo de Brito chronista geral e religioso da ordem de s. Bernardo, professo no Real mosteiro de Alcobaça : Parte primeira que contem as historias de Portugal desde a criação do mundo te o nacimento de nosso sñor Iesu Christo. - Alcobaça (Mosteiro ) : per Alexandre de Siqueira & Antonio Aluarez : por mandado do R.mo Padre Geral Frey Francisco de S. Clara, 10 Ianeiro 1597.

CARDOSO, Luís, Diccionario geografico, ou noticia historica de todas as cidades, villas, lugares, e aldeas, rios, ribeiras, e serras dos Reynos de Portugal (...) Lisboa : na Regia Officina Sylviana, e da Academia Real, 1747-1751, Tomo I.


GOMES, Saul António, Alfeizerão, do apogeu medieval à crise setecentista, artigo inserto no fascículo sobre o foral de Alfeizerão publicado pelo jornal Região de Cister, de Alcobaça, a 16 de Outubro de 2014.