Em
1721, em resposta a uma solicitação régia, o provedor da comarca de Leiria,
Brás Raposo da Fonseca, envia à Academia Real da História Portuguesa um relatório
escrito por Cristóvão de Sá Nogueira, ouvidor da comarca, com notícias sobre
Leiria e vinte e duas vilas da sua comarca, a saber: Alcobaça, Alfeizerão,
Alpedriz, Alvorninha, Atouguia, Batalha, Cós, Cela, Ega, Évora de Alcobaça,
Maiorga, Peniche, Pederneira, Pombal, Póvoa de Monte Real, Redinha, S.
Martinho, Porto de Mós, Santa Catarina, Salir de Matos, Soure e Turquel.
Desse
manuscrito, guardado na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (BGUC – Ms.
503), transcrevemos na íntegra as Notícias referentes a Alfeizerão (Fls. 81 v.
– 84 v.), atualizando apenas a pontuação, e separando algumas palavras
indevidamente unidas.
No
final dessa transcrição, encadeamos em jeito de comentário, algumas anotações
sobre o teor do manuscrito.
Original e transcrição
Alfeizarão
Esta villa he do
dominio do Convento de Alcobaça, e nella se contão 70 vezinhos que todos são
tributarios ao dito Comvento. A camara della não tem Renda alguma, nem
pregaminhos antigos, privilegios, ou doações, e só se achão nella os Livros de
vereações, e os mais tocantes ao Concelho.
Na dita Camara se
fazem só tres procissoes, a saber: a do Corpo de Deos, a do Anjo Costodio, e
outra por devoção a N. Sra. da Nazaret.
Na mesma villa não há
Caza da Mizericordia, maes que huma caza imcapás de abitação, a que chamão
Hospital sem forma alguma em que se costumão Recolher alguns pobres
passageiros, e he villa que não merece tal nome, e tem as Aldeas seguintes:
Famalicão de baixo com
40 vezinhos ao norte, Mata da Torre com 3 vezinhos ao nascente, os cazaes dos
Rapozos com 12 vezinhos ao Sul, o Lugar de Valado com 20 vezinhos ao Sul, o
Lugar dos Mosqueiros e Cazalinho com 10 vezinhos ao Sul, Val de Maceyra com 6
vezinhos, ao nascente.
Na dita villa há huma
Igreja matriz com o nome do Spirito Sancto, defronte da qual á porta de João de
Charia Henriques achey huma pedra que serve de assento, em a qual está
exculpido o Letreiro seguinte, e no fim da terceira Regra estão tres signaes q. parecem letras, e o dito Letreiro
tem sinco Regras.
E no Castello da dita villa a [à] entrada da
terceira porta a mão dereita está huma pedra no cham com hum Letreiro com outo
Regras, e a tal pedra está quebrada da parte donde se começão a ler as letras, e
tãobem donde acabão e está parte della quebrada e se não acharão os pedaços [1º
e 2º letreiros].
No mesmo Castello, e porta asima dita dentro
na parede está huma pedra que tem quatro palmos de comprido que sem huma só
Regra, cujos caracteres se não puderam copiar por não terem forma de letras.
Na dita villa não há
maes Irmandadez que a do Senhor, e se me não deu noticia de outra alguma
Confraria, e só achey huma Cappella que instituio Catherina Dias mulher de
Amador Velho em 18 de Julho de 1630.
Comentário:
Na
vila, Cristóvão de Sá Nogueira visitou o edifício da Câmara, o hospital, o
castelo e a igreja do Espírito Santo, que servia de igreja matriz, não aludindo
à Igreja de S. João Batista, então arruinada, ou à capela de Santo Amaro. Sobre
o hospital, deixa claro que não é uma Misericórdia, e descreve a sua função
modesta de dar guarida a alguns pobres em viagem. No Dicionário Geográfico (CARDOSO, 1747, p. 277) do padre Luís
Cardoso, escreve-se na mesma toada que esse hospital, administrado pela Câmara
da vila, tinha tão curta renda que «apenas suppre a despeza de mandarem
conduzir os pobres para os outros Hospitaes».
Sobre
os lugares da freguesia, Cristóvão de Sá Nogueira indica os Casais dos Raposos
que o padre Luís Cardoso omite, mas em relação a este, não refere Famalicão de
Baixo, a Macarca ou o Rebolo.
Dos
três letreiros ou pedras com inscrições, Cristóvão de Sá Nogueira transcreve
duas. A primeira, uma lápide romana da sepultura de Terência Camira (filha de
Terência Máxima, que mandou lavrar a pedra em sua memória),
foi também transcrita por Frei Manuel de Figueiredo na sua Corografia da Comarca de Alcobaça (1788).
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(a cópia de Fr. Manuel de Figueiredo) |
A segunda lápide romana, esta achada no castelo pelo ouvidor da comarca, tinha sido copiada e interpretada mais de um século antes por Frei Bernardo de Brito na Monarchia Lusitana (BRITO, 1597, fl. 244); e ainda que as duas cópias da mesma pedra possuam algumas diferenças óbvias (o ouvidor apenas transcreveu a parte inicial da lápide quebrada), esta lápide, segundo Brito, é consagrada a Sulpícia Avita, filha de Lúcio, e foi erigida por Quinto Servílio Avito, filho e herdeiro de Gaio Servílio Lauro.
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(a cópia de Bernardo de Brito) |
Sobre a igreja do Espírito Santo, situada no «coração da vila» (Pe. Luís Cardoso) com a porta principal virada a Sul (segundo Frei Manuel de Figueiredo), que deveria abrir, acreditamos nós, para o largo ou praça central da vila de então, cuja identificação ainda se apoia apenas ou ainda em conjeturas. A localização da igreja junto à praça central da vila é também admitida pelo professor Dr. Saúl António Gomes com base nestas notícias de Cristóvão de Sá Nogueira (GOMES, 2014, p. 56). Defronte da igreja (plausivelmente, no outro lado do largo) à porta da casa de João de Caria Henriques, foi achada a primeira lápide romana. Deste João de Caria Henriques encontramos menção nos assentos paroquiais de Alfeizerão, nomeadamente no seu 2º Livro de Batismos, que compreende os anos de 1678 a 1696 (ADLRA, IV/24/B/30. Fls. 1 e 33) - era filho do capitão António Carreira, e o seu apelido provinha-lhe da mãe, Maria Henriques, esposa do dito capitão.
Uma
última nota sobre a capela fundada por Catarina Dias, esposa de Amador Velho. Poderíamos
supor (e não seríamos os primeiros a fazê-lo) que esta capela faria parte da
igreja do Espírito Santo, o único templo na vila que foi visitado por Cristóvão
de Sá Nogueira, mas as notícias escritas pelo seu punho estão longe de o
afirmar. Esta capela deveria ser um edifício distinto da igreja matriz,
instituída pelas mesmas motivações que levavam as pessoas a legar bens ou
rendas às confrarias, igrejas e conventos – assegurarem a benevolência dos
Céus, e um futuro bem-aventurado no Além. E a comprová-lo, encontramos
esta mesma capela no assento de óbito e testamento de Maria Neta, figurando
entre as confrontações de uma terra doada à Confraria do Santíssimo Sacramento
de Alfeizerão. Transcrevemos esse assento, atualizando a grafia e pontuação, do
Livro de Registo de Óbitos da freguesia
de Alfeizerão – 1666-1747 (ADLRA, IV/24/C/11, fl. 16). Sobre esta capela,
ainda se nos oferece dizer que se situaria não muito longe da igreja do
Espírito Santo e do seu largo (refere-se uma terra dos círios da igreja para
nascente) e, claramente, na parte do sul da vila, uma vez que se aponta como
demarcação o «rio que vem da ponte», o próprio rio de Alfeizerão, ou algum
esteiro ou canal de irrigação escavado a partir dele.
Aos quinze dias do mês
de Novembro de seiscentos e setenta e seis anos, faleceu Maria Neta, solteira,
desta vila de Alfeizerão, filha que ficou de António do Couto e Maria Neta
desta dita vila; deixou uma terra que está atrás dos pomares que herdou dos
seus pais com a abrogação de uma canada de azeite que se pagava à Confraria do
Santíssimo Sacramento, e a dita terra que ficou à dita Confraria parte do
nascente com terra dos círios da igreja, poente com umas que ficaram da capela
de Amador Velho que aí possui António Velho de Salir de Matos, a quem pertence [se ee] a dita capela por morte de seu pai, Custódio Velho, herdeiro do dito
Amador Velho; Norte com cerrada de Manuel do Couto, irmão da defunta, poente [«ponente»,
seria, por lapso, Sul] com rio que vem da ponte; deixou mais a dita, uma terra
na ____ desta vila à Confraria do Espírito Santo que parte do norte com Manuel
de Oliveira, o Moço; Sul, com terras da dita Confraria, nascente com o dito
Manuel de Oliveira, e poente com terras de Silvério da Silva da Fonseca,
alcaide-mor desta dita vila e da de S. Martinho. Está sepultada na igreja
matriz, na sepultura dos seus antepassados. Era ut supra.
O Prior de S. Martinho e Vigário de
Alfeizerão, Pe. Antão Carreira
[ADLRA,
IV/24/C/11, fl. 16]
Fontes:
BRITO, Bernardo de, Monarchia Lusytana composta por frey
Bernardo de Brito chronista geral e religioso da ordem de s. Bernardo, professo
no Real mosteiro de Alcobaça : Parte primeira que contem as historias de
Portugal desde a criação do mundo te o nacimento de nosso sñor Iesu Christo.
- Alcobaça (Mosteiro ) : per Alexandre de Siqueira & Antonio Aluarez : por
mandado do R.mo Padre Geral Frey Francisco de S. Clara, 10 Ianeiro 1597.
CARDOSO, Luís, Diccionario geografico, ou noticia historica de todas as cidades,
villas, lugares, e aldeas, rios, ribeiras, e serras dos Reynos de Portugal
(...) Lisboa : na Regia Officina Sylviana, e da Academia Real, 1747-1751, Tomo
I.
GOMES, Saul António, Alfeizerão, do apogeu medieval à crise
setecentista, artigo inserto no fascículo sobre o foral de Alfeizerão
publicado pelo jornal Região de Cister,
de Alcobaça, a 16 de Outubro de 2014.
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