sábado, 11 de novembro de 2023

Um apontamento ocioso: O Pão-de-Ló de Alfeizerão

O nome “Pão-de-ló de Alfeizerão” é, sem exagero, globalmente conhecido, figurando em livros escritos em diferentes línguas onde comummente se apresenta uma receita de pão-de-ló cremoso ou, recorrendo a um trocadilho, um pão com ló, à semelhança do doce que está na sua raiz

Na origem, Alfeizerão, o pão-de-ló tem uma origem histórica, derivando por transmissão da doçaria conventual das freiras do Mosteiro cisterciense feminino de Cós. Com a receita tradicional do pão-de-ló recebido por Amália Grilo nasceram as duas casas originais que produziram o doce, o Pão-de-ló de Alfeizerão e o Café Ferreira, juntando-se a estas em tempos mais recentes, a Pastelaria O Castelo, no largo da vila, que terá beneficiado também do conhecimento da mesma receita. Outras pastelarias ou cafés em Alfeizerão também fabricam ou fabricaram o pão-de-ló, mas de uma forma pontual e com o emprego de uma receita de origem obscura.



Neste contexto, a produção de pão-de-ló de Alfeizerão pode enfrentar a seguinte situação, quase anedótica: se um empresário de “visão” abrir uma casa em Alfeizerão e iniciar de forma marginal a produção atamancada de pão-de-ló na vila, nada o impede de o comercializar com o nome de pão-de-ló de Alfeizerão, mesmo que o seu aspeto e sabor nada tenham em comum com o pão-de-ló produzido segundo a receita tradicional, podendo traduzir-se na criação de variantes imaginativas do doce com, por exemplo, sabor a caramelo ou arroz-doce; na prática, um comportamento oportunista desse tipo iria causar sérios danos à autenticidade e fiabilidade do produto tradicional nascido da doçaria conventual.

A forma mais eficaz de defender a receita tradicional e as casas comerciais que a produzem e vendem seria, julgamos, lançar mão dos recursos que a podem proteger à luz da lei. Um desses recursos é a obtenção de um Selo IGP – Indicação Geográfica Protegida. Essa classificação «garante que os produtos foram produzidos na região que tornou conhecidos e cujas características, qualidade e modos de confecção estejam de acordo com as tradições que os fizeram famosos» e salvaguarda o produto de “qualquer imitação ou evocação” ou “qualquer outra indicação falsa ou falaciosa quanto à proveniência, origem, natureza ou qualidades essenciais dos produtos”. Entre os produtos de pastelaria que beneficiam do Selo IGP, lembremos o Pastel de Tentúgal, o Pastel de Chaves e os Ovos Moles de Aveiro.

Para se obter um Selo IGP, o processo passa por um registo do produto com um caderno de especificações próprio que é enviado às autoridades nacionais para ser examinado e, se estiver em conformidade, é remetido à Comissão Europeia, que decide da sua aprovação. O registo pode ser pedido por um grupo de produtores que, se as coisas correrem favoravelmente, beneficiarão de igual forma da classificação que protege a sua indústria.

Este passo, ou outro semelhante, exigiria o vínculo ou colaboração das casas que produzem o pão-de-ló tradicional, suportadas se necessário, estamos disso confiantes, pelos órgãos do poder local em campos como o apoio jurídico. Se isto alguma vez for alcançado, talvez se veja surgir no horizonte uma futura Confraria do Pão-de-ló para defesa e promoção do tradicional pão-de-ló, abrilhantada com trajes cerimoniais e eventos de degustação.


terça-feira, 17 de outubro de 2023

Lembrar Maria Domingas: o filme "Maria Papoila"

Uma anotação

O bem conhecido filme "Maria Papoila" de Leitão de Barros, teve a sua estreia em Agosto de 1937, contando nos papéis principais com Mirita Casimiro, António Silva e Eduardo Fernandes e retrata a história de uma moça do campo (Mirita Casimiro) que tenta a sua sorte na capital, onde trabalha como criada de servir. Assente numa dicotomia entre a vida no campo e na cidade, urde um discreto panegírico sobre as realizações e valores do regime - a arquitetura do Estado Novo, os transportes modernos, a vida militar - mas o talento de Leitão de Barros faz deste filme uma história bem contada onde os personagens e as situações se encadeiam de uma forma fluida e ardilosa onde mesmo os símbolos não são menosprezados: o relógio-despertador surripiado por Mr. Scott (António Silva) é depositado nas mãos de Maria Papoila, lembrando-a que tem de regressar a casa dos patrões antes que eles dêem pela sua ausência.

Neste filme regista-se o primeiro papel de Maria Domingas no cinema, como figurante, três anos antes do seu "salto" para o papel principal de "João Ratão", de Jorge Brum do Canto, ao lado de Óscar de Lemos. Recorde-se que Maria Domingas, nascida em 1921, tem apenas 16 anos quando entra em "Maria Papoila" e  se a idade poderia surpreender, o mesmo sucede ao constatar nesta sua modesta participação o mesmo talento, fotogenia e graça que eram um atributo muito seu, desdobrado nas suas prestações no cinema e nos palcos ao longo da sua carreira artística.

O filme estrutura-se em duas partes distintas, com uma primeira onde se narra a fuga para a cidade de Maria Papoila e da sua vida como criada de servir e uma subsequente que tem o seu eixo na vida austera dos militares em contraponto com a vida elegante das classes mais abonadas, com as suas festas e diversões, onde se arquiteta a situação que levará à prisão por roubo do apaixonado de Maria Papoila, Eduardo da Silveira (Eduardo Fernandes) e ao desenlace final do filme.

Maria Domingas surge apenas na primeira parte da acção, ela é a menina Rosa, criada de servir no mesmo prédio onde trabalha a Maria Papoila, e esta primeira parte do filme apoia-se muito na dinâmica das duas sopeiras e da cozinheira (Virgínia Soler), com a saída noturna para o arraial de Santo António, o namoro com os magalas ou o passeio pelo parque. 

Ainda que encarne uma personagem secundária e acessória, este primeiro papel de Maria Domingas no grande ecrã não pode ser negligenciado quando rememoramos a sua carreira como atriz.


Imagens do filme (ou relativas a ele)

A lista de atores do filme (fonte: Cinept - Cinema português)






Maria Domingas, entre Mirita Casimiro e Virgínia Soler







quinta-feira, 17 de agosto de 2023

De ontem para hoje: o assassinato de Sidónio Pais em 1918

 


Acta da sessão Extraordinária

Aos dezoito dias do mez de Dezembro de mil e nove centos e dezoito, pelas doze oras e doze reuniu a Comissão Administrativa Paroquial desta freguezia, pelo presidente foi aberta a sessão. Foi lida e aprovada a acta da sessão anterior____Pelo presidente foi dito que pelas noticias oficiaes e relato dos jornaes só sabião ter sido morto por um atentado ignobil e vergonhoso o nosso Chefe de Estado, o Ilustre Prezidente da Republica Portugueza, Exmo. Senhor Doutor Sidonio Paes, no dia quatorze do corrente, pelas vinte e tres e meia oras, quando entrava na gare da estação do Rocio para seguir para o Porto, aonde era esperado com grandes festas em sua honra!. Como Portuguez e seu admirador, não podia deixar de lastimar tal infamia, que nos roubou o Chefe de Estado prestigioso e com isso a esperança do Ressurgimento da Patria, e pelas suas qualidades naturaes e intelectuaes a protestar contra tal brutal atentado, improprio de povos civilisados. Todos os vogaes se manifestaram pela mesma forma e lançaram um voto de profundo sentimento, incerrando o presidente a sessão em signal de profundo sentimento de que estavam possuidos. Mandou o presidente, // para que conste, lavrar esta acta que vai ser assinada pela Comissão Paroquial de Alfeizerão.

O Presidente – João Augusto Ferreira

O Tezoureiro – José Salvador

O Secretario – José Hilario Junior

 

(“Livro das Actas da Junta de Paróquia civil d’Alfeizerão, N.º 10”, 1915-1926, f. 10v-11r

- obra disponível para consulta no depósito documental do “Baú das Memórias” de Alfeizerão)


Bilhete postal de 1919 que ilustra o atentado


quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Domingas Maria

 


A presença dos soldados napoleónicos na região de Alcobaça no último mês de 1810 e ao longo do primeiro trimestre de 1811 traduziu-se por uma verdadeira mortandade originada pela fome, pela doença e por mortes causadas diretamente pelo invasor. O facto de muitos párocos terem procurado abrigo em Lisboa e em outros redutos protegidos, como lhes fora superiormente ordenado, obsta a que tenhamos um conhecimento rigoroso dessa tragédia, ressalvando-se parcialmente para tal os minuciosos registos paroquiais de óbito das freguesias de Alfeizerão e, sobretudo, de Pataias.

Nas outras paróquias da região, há casos em que os registos paroquiais sofrem um interregno ao tempo da presença do invasor ou são lavrados na ocasião ou posteriormente e em retrospetiva, com alguns assentos pontuais a assinalar as tragédias desse período. Como exemplo, transcrevemos o único assento paroquial explícito na freguesia de São Sebastião do Vimeiro:

 

<Gaio, Domingas Maria>

Aos doze dias do Mez de Março de mil e oito centos e onze se deu a sepultura a Domingas Maria, Solteira, do Gaio, dentro do Alpendre desta Igreja de S. Sebastião do Vimeiro, foi morta pellos Francezes; sem Sacramentos. E para constar fiz este Assento. Mez, e Era ut supra.

O Vigário Francisco da Silva Rebello

 

(ADLRA, IV/26/C/58 – Registos de óbito da freguesia do Vimeiro: 1760-1860, f. 125r)

segunda-feira, 10 de julho de 2023

O diplomata Adelino António Ferreira

       Adelino António Ferreira, proprietário da Quinta dos Casais em Alfeizerão e empresário de visão, foi um diplomata ao serviço de Portugal, de cuja carreira encontramos algumas referências esparsas em publicações, como o seu trabalho como embaixador de Portugal na Tailândia, ou a sua viagem a Brighton, na costa sul de Inglaterra, no âmbito de uma representação diplomática do Estado português.

       A nossa nota de hoje é sobre mais uma menção ao trabalho do diplomata, desta feita como Cônsul de Portugal em Belém do Pará, no Brasil, no ano de 1907.

 


(Fonte: "Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro e Indicador para 1907”, p. 468, 1907, Companhia Typographica do Brazil, Rio de Janeiro)

quinta-feira, 2 de março de 2023

O desaparecido Pelourinho de São Martinho do Porto - algumas variáveis num tema com muitas certezas


 Não pode haver conhecimentos esconsos, nem intenções dúbias. 

A cultura e o património cultural são tesouros 
a zelar e a acrescentar por todos; 
e isso é o mínimo que o futuro espera de nós.
(Michel Parent, antigo especialista da Unesco)

1 – O que nos contam os textos
     O pelourinho de São Martinho do Porto, erguido como símbolo de autonomia concelhia reconhecida pelo Foral Novo do rei D. Manuel I, foi mantido como tal durante quatrocentos anos, como um marco de pedra que mostrava orgulhosamente que a vila possuía Câmara própria e alguma autonomia jurídica e administrativa.
     Com o fim da Guerra Civil e a derrota dos absolutistas no século XIX, as instituições do antigo regime tornaram-se suspeitas e ominosas, sobretudo os seus símbolos mais tangíveis, os castelos, conventos e pelourinhos – todos reduzidos à expressão mínima e negra de lugares de opressão e dor. A reação começou logo em 1834, no ano do triunfo dos liberais, quando, nas palavras do visconde de Juromenha, para imitar a revolução de França, se arrancaram os braços de ferro a alguns Pelourinhos com o fim de apagar a memória do seu antigo destino (apud BRAGA, 1985) [1].
     Em Alcobaça, estes ventos de mudança fustigam a herança cultural da comunidade na secularização dos espaços interiores do Mosteiro abandonado pelos monges, e nas deliberações e iniciativas das vereações liberais da Câmara de Alcobaça. É arrematada a demolição de muros do castelo de Alcobaça para a obtenção de pedra para a construção de casas (com o pretexto do seu estado de ruína ser um perigo para quem caminhava junto aos seus panos de muralha), e alguns pelourinhos do concelho são visados também como um mero recurso para a obtenção de pedra, como foi o caso dos pelourinhos de Alcobaça, Évora, Alfeizerão e São Martinho do Porto.
      Em acta de 26 de Novembro de 1866 da reunião da Câmara de Alcobaça, pode ler-se: Foi outrossim determinado sob proposta do senhor vereador Couto que a deliberação tomada a respeito do Pelourinho de Alcobaça [que decidia a sua demolição] compreendesse também o da antiga vila de S. Martinho do Porto, e que no caso de não haver concorrentes em praça que arrematassem a sua demolição, seja a mesma feita por conta da respetiva Junta de Paróquia, a qual poderá aproveitar-se da pedra que do mesmo Pelourinho se extrair para a empregar como lhe convier em benefício público [2].
     Mas o pelourinho de São Martinho não cumpriu liminarmente o funesto destino que este documento deixava antever. O que fizeram dele foi contado, com a mesma subtil e quase diáfana mordacidade que nos transmite a leitura dos seus contos, por Fernando Perfeito de Magalhães Vilas-Boas.
     Como já aqui deixamos registado, num artigo sobre Fernando Perfeito de Magalhães e o seu irmão Francisco, o primeiro foi um arquiteto de obra prolífica, escritor e aguarelista. Testemunhou sobre ele, neste particular, o seu amigo João Saldanha de Oliveira e Sousa: O nosso prezado amigo, artista de raça e investigador incansável, Sr. Fernando Perfeito de Magalhães Vilas Boas, andou por Portugal durante seis anos a fixar em aguarelas os pelourinhos ainda existentes. Estas suas 190 aguarelas lá estiveram expostas em Lisboa e constituem preciosa coleção que bem merece ser adquirida pelo Estado [3].

Figura 1:
Pelourinho de Aljubarrota
Imagem da aguarela de Fernando Perfeito de Magalhães

     Essas aguarelas (num total de 225) foram finalmente reunidas num (belíssimo) livro publicado pelas Edições Inapa em 1991, com texto complementar de Vasco da Costa Salema [4]. Sobre o pelourinho de São Martinho do Porto, a obra reproduz, não a aguarela, que não existia, mas o comentário escrito em 1955 que lhe dedicou Fernando Perfeito de Magalhães (o destaque a negrito é nosso):
Este pelourinho de S. Martinho do Porto tem uma história pitoresca. Estava ereto no largo da vila, fronteiro à igreja, onde se fazia o mercado. Como porém fizeram obras de canalização de água para um chafariz público e o Pelourinho estorvava as obras, apearam-no, e eis que o seu fuste veio parar a outro Largo que existe na parte baixa da vila, intitulado Largo de Victorino Froes, e ali permaneceu, deitado no chão, arrumado a um canto, até que tendo este lavrador e ganadeiro, necessidade de construir um esteio para fazer uma sebe divisória no seu campo, chamado Campo do Sul, na várzea onde criava o seu gado bravo, o utilizou para esse fim, levando-o para lá. Ali permaneceu, não sei quanto tempo, não se livrando talvez de apanhar fartas marradas e até teria feito algumas pegas de cara! Passado tempo, tornou a voltar à sua antiga cama, no largo Victorino Froes. Um empreiteiro que levantava um andar sobre uma casa térrea, junto a esse largo, topando com aquele esteio ou coluna ali abandonado, lançou mão dele e utilizou-o como sólido sustentáculo do vigamento superior do pavimento. Como o andar da casa térrea era e é uma farmácia, nada mais lógico local para aquele infeliz fuste de Pelourinho, depois de ter sofrido tanto dinamismo cruel para quem tinha sido criado para viver estático por séculos sem fim. Será pois muito difícil tirá-lo da farmácia, pois é bem fornecida de drogas, tão necessárias àquele infeliz que creio que será ele a não querer abandonar aquele curativo refúgio, pois com tantos dinamismos tenha perdido a cabeça, o desgraçado.

 

2 – Questões levantadas pelos textos

     A casa do Largo Vitorino Fróis onde o fuste ou coluna foi usado como viga de sustentação do primeiro andar, ainda existe, faz esquina entre a Calçada da Glória e a Rua Dr. Rafael Gagliardini Graça. Foi, nesse tempo, Farmácia, depois Drogaria, e mantém-se na posse de privados como casa de habitação, ao que parece, sazonal.
     Nessa casa, segundo a tradição oral e fonte documental que me foi facultada (Relatório de José da Conceição Vaz, Agente Técnico de Engenharia de 3.ª Classe com a data de 18 de Agosto de 1956, ficheiro ref.ª TXT. 00372144 do SIPA - Sistema de Informação para o Património Arquitetónico), existe um pilar no pátio dessa casa, que se vê da rua, e que sustenta o telheiro, por todos apontado como o fuste do pelourinho desaparecido. O referido pilar (Figura 2) não é desprovido de graça, sendo de pedra trabalhada e com aquela respeitável pátina alaranjada da pedra vetusta, mas não é, cremos, o fuste do pelourinho (suposição nossa, frisemos). Este pilar semelha uma coluna intacta e inteira, pouco adequada, diz-nos o bom-senso, para ter sido aproveitada numa cerca para gado na quinta do Fróis, além dos ecos residuais da presença do pelourinho na quinta concordarem numa alusão plural: "fragmentos do pelourinho".
Figura 2:
O pilar no pátio da casa do Largo Vitorino Fróis
- um (pobre) esboço nosso -
     
    Inicialmente, o pelourinho situava-se na parte alta da vila, a sua zona antiga, no modesto largo em forma de lágrima em que desemboca a rua José Bento da Silva, próximo aos Paços do Concelho e à capela de Nossa Senhora do Livramento. O chafariz público em nome do qual o apearam para fazer uma conduta de água, é a Fonte da Praça [5], virada para a Calçada de D. Pedro V, que foi remodelado pela Junta da Paróquia no ano de 1888, data coerente com o período em que surgem as disposições da Câmara Municipal de Alcobaça (de 1866) para se alienar o monumento e vender ou utilizar a pedra que dele se obtivesse.
     O fuste do pelourinho apeado foi deixado por algum tempo no Largo Vitorino Fróis, depois levado para a quinta do ganadeiro e finalmente empregue na dita casa após o regresso. O relato do arquiteto e aguarelista só nos dá conta do fuste, não sabemos se como uma peça monolítica, se segmentado em duas metades quando o desmontaram (o que é sugerido pelo seu uso numa sebe ou cerca). Era o seu elemento mais alienável, como se comprovou (cerca, coluna de casa), e a sua presença no Largo cá em baixo pode corresponder a uma tentativa da Junta de Paróquia de o vender.
     A parte superior do pelourinho, com o remate e o capitel, que era muitas vezes o seu elemento mais decorativo e artístico, terá ficado para trás. É tradição local, ouvida a várias pessoas, que essa parte do pelourinho teria estado durante algum tempo no espaço que ainda recordamos como o antigo "Jardim dos Macacos", onde se situava o Posto de Turismo da vila e existia um parque infantil sombreado por vigorosos plátanos, uma zona plana no sopé da encosta onde se ergue o Chalé das Palmeiras, indissociável da vida do ganadeiro de Alfeizerão. Depois, se esse rumor for fundamentado, a pedra desapareceu da vista e da memória de muitas pessoas.
     Quando João Saldanha de Oliveira e Sousa escreveu em 1949 [6] sobre o pelourinho de Alfeizerão, informou que constava aí que havia fragmentos do pelourinho (que se supunha ser do de Alfeizerão) numa quinta próxima, sabendo nós que a quase totalidade dos fragmentos do pelourinho de Alfeizerão sempre andaram por perto da sua igreja matriz, no adro e na entrada do cemitério. E isto é escrito numa altura em que o fuste do pelourinho de S. Martinho já “entrara ao serviço” na antiga farmácia da vila. 

3 – O desenho de João Santos
     Numa obra sobre São Martinho publicada no ano de 2000 [8], o autor, João Nunes dos Santos, fazia uma descrição do antigo pelourinho de São Martinho, baseada decerto naquilo que a tradição recordava dele:
     O Pelourinho consistia numa forte coluna de pedra com formato oitavado assente numa plataforma com três degraus, sendo rematado por uma figura de frade defronte de uma cruz, decerto a Cruz de Cristo, muito usada nas velas dos barcos portugueses daquele tempo.
     Na mesma obra, apresenta-se, com estes elementos, uma reconstituição gráfica do Pelourinho, no qual se procura representar o formato oitavado do fuste ou coluna, distinta do fuste com caneluras de secção cilíndrica que podemos admirar na casa da antiga farmácia (Fig. 2):


     A plataforma de três degraus (quadrados neste caso) é comum nos pelourinhos manuelinos, pelo que envidaremos considerações mais desenvolvidas a outros detalhes deste desenho do pelourinho.

3.1. O fuste oitavado
     Existem diversos pelourinhos manuelinos com a coluna de fuste oitavado ou de fuste prismático octogonal. Alguns, são mais alongados, como no pelourinho de Almendra, outros mais baixos e entroncados, como são os casos dos pelourinhos de Idanha-a-Velha e Trofa. O pelourinho de São Martinho do Porto parece aproximar-se destes últimos, a julgar pelo desenho, e pela descrição de João Santos, que fala de uma forte coluna de pedra.
Figura 4
Os pelourinhos manuelinos e de fuste oitavado de Almendra (1), Idanha-a-Velha (2) e Trofa (3)

3.2. A figura do frade (ou abade)
     O motivo de um frade ou abade no capitel do pelourinho é plausível e coerente. Nas vilas dos coutos de Alcobaça, seria de esperar que a simbologia dos pelourinhos manuelinos geminasse os símbolos óbvios do rei, como a esfera armilar ou o escudo das quinas, com símbolos da vila que fora agraciada com o foral, ou do mosteiro que a administrava soberanamente. No pelourinho de Turquel, onde já se quis ver a representação do abade na figura humana do seu topo que enverga um hábito, essa figura humana que será, provavelmente, a Nossa Senhora da Conceição, retrata o orago da terra, a sua dedicação religiosa. No pelourinho da Cela Nova, o remate apresenta as armas do Abade Geral de Alcobaça e a esfera armilar de D. Manuel [9]. No pelourinho de Aljubarrota, a duplicidade dos signos é mais óbvia: no capitel do pelourinho, podemos admirar a esfera armilar e as armas de Portugal cobertas pelo chapéu abacial.
     Se o pelourinho de São Martinho exibia a figura do abade que detinha a jurisdição sobre a vila, esta não deveria divergir muito, no estilo, da controversa figura humana do pelourinho de Turquel.

3.3. A Cruz de Cristo
     A Cruz de Cristo era um dos símbolos privilegiados do rei D. Manuel I. Por dois motivos principais: porque ficara associada à nossa expansão marítima e porque o próprio D. Manuel foi Grão-Mestre e governador da Ordem de Cristo, título que levou muito a sério, empreendendo profundas modificações e obras no Convento de Cristo em Tomar.
     A Cruz de Cristo, enquanto símbolo manuelino, pode ser admirada, na região, na igreja matriz de Évora de Alcobaça, onde coroa uma representação da esfera armilar, e no convento cisterciense feminino de Cós, esculpida na porta de acesso ao coro (MARQUES, 2006).
     Como motivo heráldico do capitel existem vários exemplos por esse país fora; como é o caso dos pelourinhos de Salvaterra do Extremo, Folgosinho, Vila Velha de Ródão, Proença-a-Velha, ou Redinha (Pombal); alguns deles, erguidos em territórios pertencentes a essa Ordem. A Cruz de Cristo no pelourinho que tratamos adequa-se à qualidade D. Manuel como Grão Mestre da Ordem e, cumulativamente, à natureza portuária e de construção naval da vila de S. Martinho - o mesmo símbolo cruciforme ornava as velas das caravelas e outras naves que arrostavam as vagas do oceano.

3.4. A forma do remate e do capitel. A incógnita.
     A principal lacuna da descrição e do desenho de João Santos, que dificultam uma futura recriação do pelourinho em pedra (de preferência, com algum elemento arquitetónico original), é não sabermos como ele terminava no alto. João Santos escreve que a Cruz de Cristo e a figura do abade rematavam o pelourinho, mas isso não parece suficiente. Os dois motivos requerem a existência de um remate e um capitel (em formato de pinha? Tronco-cónico piramidal?) em cujas faces estivessem esculpidos esses símbolos. Precisar qual seria a sua forma, é um desafio de difícil superação. Um dos pelourinhos de fuste oitavado que existem, e que ostenta também a Cruz de Cristo, o pelourinho de Salvaterra do Extremo, é assim descrito por Eurico B. de Ataíde Malafaia, na obra mais completa que existe sobre o tema [10]:
Sobre soco moderno, de três degraus quadangulares de aresta, assenta o conjunto da base, coluna, capitel e remate, de clara tipologia manuelina. A base da coluna é oitavada, de faces ligeiramente côncavas, e decoradas com pequena rosetas. Nela encaixa o fuste, liso e de secção octogonal, encimado por capitel oitavado, molduras salientes na zona inferior e no topo. As faces do capitel são decoradas com rosetas e botões lisos. O remate é constituído por um prisma oitavado de boas dimensões, cujas faces alternadas apresentam relevos heráldicos, nomeadamente um escudo nacional coroado, uma esfera armilar, uma cruz da Ordem de Cristo, e possivelmente uma cruz da Ordem de Avis. O pelourinho é finalmente coroado por pirâmide oitavada de topo truncado, com faces ornadas de séries verticais de três botões, de tamanhos decrescentes.




Notas:
[1] BRAGA, Teófilo, O Povo Português nos seus Costumes, Crenças e Tradições, volume I, reedição das Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1985

[2] VILLA NOVA, Bernardo de, Alcobaça através do Arquivo da sua Câmara Municipal (1836-1902), página 31, edição da Câmara Municipal de Alcobaça, Alcobaça, 1940.

[3] SOUSA, João Saldanha Oliveira e, Pelourinhos do distrito de Leiria: tese apresentada ao 2º Congresso das Atividades do Distrito de Leiria / João Saldanha Oliveira e Sousa. Separata de: Segundo Congresso das Atividades  do Distrito de Leiria. Reedição da Fundação António Vieira Rodrigues/Mosteiro de Alcobaça, 2007.

No distrito de Leiria, Fernando Perfeito de Magalhães aguarelou treze pelourinhos, observando João Saldanha Oliveira e Sousa que não seria difícil aumentar esse número: porque é fácil erguer de novo pelo modelo antigo, os pelourinhos de Alcobaça, Caldas da Rainha e São Martinho do Porto, sendo talvez também possível restaurar o de Alfeizerão e o da Pederneira.

[4] MAGALHÃES, Fernando Perfeito de, e SALEMA, Vasco da Costa, Pelourinhos Portugueses, Edições Inapa, Lisboa, 1991.

[5] Lê-se na placa do chafariz:
LEGADO, COMMENDADOR JOSÉ BENTO
SUBSIDIO MUNICIPAL E
SUBSCRIPÇÃO PUBLICA
EXECUTADA PELA JUNTA DE PAROCHIA
1888

[6] No jornal O Alcoa de 20 de Outubro de 1949. Citamos esta adição do Marquês ao tema na nossa publicação sobre o pelourinho de Alfeizerão.

[7] Ainda hoje persiste esse (infeliz) hábito retintamente português de ornamentar os jardins com pedras lavradas que se foi “achar” em algum edifício em ruínas ou ao abandono, de função religiosa ou secular.

[8] SANTOS, João Nunes dos, São Martinho do Porto. Apontamentos para a sua História, Edição Samartinho, São Martinho do Porto, 2000.

[9] MARQUES, Maria Zulmira Albuquerque Furtado, O Manuelino no Mosteiro e nos Coutos de Alcobaça, Tipografia Alcobacense, Alcobaça, 2006,    

[10] PELOURINHOS PORTUGUESES – Tentâmen de Inventário Geral, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa, 1997.




José Lopes Coutinho
(e-mail: joseduardol@gmail.com)

Nota: O texto original deste apontamento foi publicado nesta página no ano de 2013, texto que agora revimos e voltamos a publicar por tal se justificar, dado ser um motivo atual e de renovado interesse para os espíritos sensibilizados por esta temática.




domingo, 26 de fevereiro de 2023

Um caminho andado por inteiro: o correio em Alfeizerão em 1927

 


A cópia de uma carta endereçada pelo presidente da Junta ao Diretor dos Correios e Telégrafos de Leiria no ano de 1927 e por nós consultada no arquivo da Junta, recorda-nos como o correio chegava a Alfeizerão nessa época. A correspondência chegava de comboio a S. Martinho e na estação postal dessa localidade era levantada a mala postal para Alfeizerão que era trazida a pé por um estafeta para este lugar para aqui ser distribuído, fazendo-se o percurso inverso duas horas depois, 40 minutos era o tempo regular indicado na carta para esse percurso entre as duas localidades. 

Reproduzimos o teor curioso dessa carta, na transcrição, atualizamos a grafia e desenvolvemos as abreviaturas, perfeitamente naturais por se tratar da cópia manuscrita de uma carta expedida pela autarquia:

 

Ao Exmo. Sr. Diretor dos C. T. do Distrito de Leiria

A Comissão Administrativa da Junta de Freguesia de Alfeizerão, na qualidade de representante e defensora dos interesses dos seus habitantes, confiada no alto critério e espírito justiceiro de V. Exa., sabendo ainda mais quanto se interessa pela comodidade dos povos do nosso Distrito, proporcionando-lhes sempre todas as facilidades dentro das boas normas de justiça, vem esta Junta solicitar a V. Exa. o alto serviço para que sejam trocadas as malas postais desta freguesia, com a ambulância em vez de ser com a estação postal de S. Martinho do Porto, o que lhes traz bastante prejuízo. Não ignora V. Exa. da importância comercial, agrícola e vinícola de Alfeizerão, tendo já hoje uma troca razoável de correspondência, como o prova a estatística de venda de franquias.

De ordinário, a mala postal chega a Alfeizerão das 14.45 às 15 horas; a saída para S. Martinho é às 17 horas, como V. Exa. tem ocasião de apreciar, há apenas 2 horas de intervalo, ficando por esse motivo prejudicada alguma correspondência de resposta imediata, sucedendo por vezes mandar-se um portador á estação levar correspondência que pela sua urgência tem necessidade de seguir nesse dia. O comboio 201 (correio de Lisboa) chega a S. Martinho ás 12.20: o 206 (correio do Norte) chega ás 20.34; o condutor da mala, andando normalmente, gasta 40 minutos a percorrer a distância entre Alfeizerão e S. Martinho. Portanto, dignando-se V. Exa. atendera esta justa pretensão, podiam os habitantes de Alfeizerão receber a correspondência às 13 horas e enviá-la para o correio ás 19, sendo o intervalo de 6 horas, o que é importante para a facilidade de responder a correspondência urgente. Independentemente das inconveniências apontadas, temos outra não menos importante, que é: a detenção da correspondência em S. Martinho, tanto a vinda como a ida para o Norte. A correspondência para o Norte, que sai na mala às 17 horas, só no dia seguinte segue no 201. A vinda do Norte, que vem no 206, só no dia seguinte vem para Alfeizerão. Disso tem resultado alguns prejuízos e mui especialmente com a correspondência com a sede do concelho. Casos há em que são chamados interessados a Alcobaça, crentes os signatários de que a correspondência é recebida no mesmo dia. Com esta falta tem resultado alguns prejuízos. Uma vez a mala trocada com a ambulância, a correspondência vinda do Norte é distribuída aqui às 21 horas, a exemplo do que já houve, e o destinatário poderá responder no dia seguinte ou ir, em caso de chamamento. A correspondência trocada entre estas duas povoações (Alfeizerão e S. Martinho) poderá ser feita [com] a permuta das malas entre os estafetas respectivos.

Julgamos não haver nisto aumento de despesa na condução das malas, visto que o número de viagens são as mesmas, mas sim, apenas, mudança de horário e, para o empregado postal, apenas um pouco de trabalho em fazer duas malas em vez de uma.

Por esta pequenina exposição poderá V. Exa. apreciar as vantagens para esta freguesia, se esta Comissão Administrativa merecer o apoio de V. Exa. nesta tão justa aspiração.

Esperando que esta nossa pretensão tenha a honra de ser atendida, somos a desejar-lhe.

[Saúde e Fraternidade]

 

A. F. [João Augusto Ferreira]

Alfeizerão, 1-8-1927