segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Alfeizerão mais pobre: a demolição da Casa do Relego

 


      A Casa do Relego, cuja origem era atribuída ao século XV, já não existe, no lugar onde as suas vetustas e arruinadas paredes ainda se erguiam teimosamente ao fim de quinhentos anos, apenas existe chão e vazio.

     Falemos um pouco dela, como numa elegia póstuma a alguém que, em vida, não se conseguiu honrar e estimar.

     O relego era um dos muitos direitos do Mosteiro donatário, que em Alfeizerão, como nos outros Coutos de Alcobaça, traduzia-se por deter o Mosteiro a exclusividade de venda de vinho de 1 de Janeiro a 31 de Março; segundo as cartas de povoamento de 1332 e 1422, o relego era regulado pelo texto do foral de Santarém (DGA/TT, Gavetas, Gav. 15, mç. 15, n.º 24), o que significava que quem desobedecesse a essa determinação, à primeira vez pagaria 5 soldos, à segunda outros cinco soldos e à terceira por «testemunho de homens bons todo o vinho seja vertido e os arcos da cuba talhados [partidos]». O direito do relego tornava necessária a existência de um edifício onde o mosteiro recebia a quinta parte das uvas colhidas (como os celeiros para os cereais e legumes), e onde se produzia, armazenava e vendia o vinho. 

     A Dra. Iria Gonçalves, na sua obra de referência sobre os Coutos de Alcobaça ( «O Património do Mosteiro de Alcobaça nos Séculos XIV e XV», Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 1989) compulsou diversos elementos sobre o relego de Alfeizerão para os séculos XIV e XV e, depois desse período, encontram-se muitas outras referência documentais, das quais referimos apenas uma, porque nos permite constatar que o “relego” não era apenas um direito senhorial, mas correspondia a um lugar/edifício onde ele era aplicado. Desde muito cedo se tornou prática comum o mosteiro arrendar o direito do relego e em 1690, no triénio do abade Frei Sebastião de Sotto Maior, ele é arrendado a António Lopes taleigueiro, arrendamento que renova em 1693 e 1696 («Livro das Folhas de Receita e Despesa no Triénio do Padre Geral Frei João Osório», DGA/TT, Ordem de Cister, Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, liv. 203) mas neste último triénio é a sua mulher e o seu filho que prosseguem com o relego porque este arrendatário falece a 26 de Janeiro de 1696 – no seu assento de óbito (DGA/ADLRA, IV/24/C/11, f. 64r) é mencionado como “António Lopes do relego”, referência clara ao relego como lugar onde morava, à casa do relego, como chegou até ao nosso século.

    Sobre o edifício em si, na ficha patrimonial n.º IPA.00001847 do SIPA (Sistema Informação do Património Arquitectónico) pode-se ler: «Quinta de produção com casa de um piso marcada pela existência de arco conopial da fresta da fachada principal e o nome da casa e da rua atestam a época de construção e a função do edifício (armazém e venda do vinho senhorial)». É nessa janela com arco conopial de estilo manuelino que assentava a datação estimada do edifício desaparecido. Em termos oficiais, o edifício foi classificado a 12 de Novembro de 1974 como imóvel de Valor Concelhio, mas um despacho de 28 de Janeiro de 2008 retirava-lhe essa (ténue) protecção, ficando desprovido de qualquer classificação, situação que se manteve até agora com os resultados que estão à vista. Notando o aspecto preocupante do edifício depois de ter ruído o telhado da parte onde se encontrava esta janela, já tínhamos feito uma exposição escrita sobre o assunto e em Julho deste ano, reuni os elementos acima citados e outros dados históricos dispersos numa nova exposição, esta ao SIPA e a título pessoal, numa tentativa infrutífera para que o imóvel fosse reavaliado.

     Neste momento, a casa do relego deixou de existir, foi apagada da face da terra de forma irrecuperável. Isto é muito triste e se não servir para mais nada, que ajude um pouco as pessoas a despertar, a estar atentas, para que perdas como esta não se voltem a verificar e se preserve para nós e para os que nos sucederem, o património que nos foi legado.

 

José Coutinho

23 de Novembro de 2020















sábado, 21 de novembro de 2020

Uma tragédia marítima

 


Uma tragédia marítima

Do Diário de Lisboa de 23 de Novembro de 1861 (nº 267, Imprensa Nacional, Lisboa), transcrevemos uma notícia sobre o óbito de nove marinheiros de um brigue, sete dos quais naturais da região.

(actualizamos a ortografia)

 

«Por ofício do encarregado do consulado de Portugal em Liverpool, datado de 25 de Outubro ultimo, consta terem chegado àquele porto dois marinheiros pertencentes ao brigue português “Conde”.

Para conhecimento de quem convier se faz publicar a parte do referido ofício, em que se encontram alguns pormenores sobre o abandono daquele navio:

«No dia 21 do corrente mês apresentou-se neste consulado o capitão J. O. Johannsen do brigue norueguês “R. Wold & Huitfeldt», vindo de Lagos (costa ocidental de África), e o consignatário do mesmo navio, mr. Feyn, negociante norueguês nesta praça, dando o capitão parte de ter encontrado no dia 4 de Outubro, em latitude 36º e longitude 19º, o brigue português “Conde”, sem leme, etc., tendo a bordo só dois homens, os quais ele tomara, assim como os papéis do navio, três baús com roupa, etc., pertencentes ao capitão e piloto, um cronómetro e mais alguns objectos. Também salvou trezentos couros, pouco mais ou menos, e duas velas, não podendo tripular o navio por achar-se quasi toda a sua gente com febre. Mandei logo tomar conta dos dois marinheiros e informando-me deles do que acontecera, soube que o proprietário do brigue português “Conde” é Manuel José de Conde, residente na Baía, Brasil, de onde saía no dia 17 de Agosto passado, com destino ao Porto e escala em Lisboa, trazendo a seguinte carga, segundo o manifesto: 201 caixas de açúcar e 432 sacas e 6 barricas do mesmo e 2979 couros secos e salgados.

«A tripulação era composta de 11 pessoas. Achando-se os dois marinheiros na câmara do navio para objecto de serviço, ouviram gritar e correram logo ao convés, porém, infelizmente, já não encontraram pessoa alguma. Um grande golpe de mar tinha levado tudo do mesmo e assim faleceram nove pessoas, inclusive o capitão. Os seus nomes são os seguintes, tirados da matrícula:

- Capitão, José Riquezo, de S. Martinho, 32 anos, casado, filho d António Riquezo.

- Piloto, Manuel Pereira Setieiro, de S. Martinho, 47 anos, casado, filho de José Pereira Setieiro.

- Marinheiro, Joaquim Pereira, de Venda dos Frades, 33 anos, casado, filho de António Pereira.

- Marinheiro, José Rocha, de Alfeizerão, 23 anos, casado, filho de António Rocha.

- Moço, João da Silva, de Alfeizerão, 20 anos, solteiro, filho de Joaquim da Silva.

- Moço. José Daniel, da Ericeira, 20 anos, solteiro, filho de Francisco Vicente.

- Moço. Victorino Pereira, de Alfeizerão, 21 anos, solteiro, filho de Paulino Pereira.

- Moço, Joaquim Riquezo, de Famalicão, 20 anos, solteiro, filho de Joaquim Riquezo.

- Moço, Constantino Nunes, de Salir do Porto, 20 anos, solteiro, filho de António Nunes.

Sendo os dois que se salvaram:

- Cozinheiro, Anacleto Francisco de Sales, de Cascais, 26 anos, solteiro.

- Despenseiro, Manuel Riquezo, de S. Martinho, 30 anos, casado. Este último, irmão do capitão.

Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, em 21 de Novembro de 1861 – Emílio Aquiles Monteverde».

 

 

 

 


sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Três dias de um Diário (1810)


     Já havíamos relevado em tempos o diário de um oficial inglês da Guerra Peninsular, William Tomkinson («The Diary of a Cavalry Officer - on the Peninsular War and Waterloo Campaigns»), onde ele descrevia com uma profusão de detalhes as refregas e movimentações das forças inglesas e francesas na nossa região, um documento rico e invulgar.

     Desta feita, transcrevemos em versão portuguesa nossa, três entradas de diário de um outro oficial inglês, o marechal-de-campo Sir John Burgoyne, que acompanha o exército inglês na sua retirada estratégica para trás das Linhas de Torres. É um testemunho modesto em comparação com o de Tomkinson, mas não deixa de ser um contributo para o nosso conhecimento desses tempos e desse conflito em que muitos portugueses perderam a vida pela espada, pela fome e pela doença, com destaque para o funesto primeiro trimestre de 1811 em que os franceses, impedidos de alcançarem Lisboa, permaneceram na região durante o Inverno, saqueando e matando como uma alcateia de lobos.

     O “general Picton” deste diário nomeia Thomas Picton (1758-1815) general britânico de origem galesa que depois de combater nas Guerras Napoleónicas e Guerra Peninsular, tombou com uma bala na cabeça na batalha de Waterloo, sendo o oficial mais graduado a perecer nessa batalha decisiva.

     (Fonte: «Life and Correspondence of Fiel Marshal Sir John Burgoyne, Bart.», vol. I, Pickle Partners Publishing, 2012)

 

3 de Outubro de 1810 – Para Alcobaça (retirada).

A 3.ª Divisão marcha para Aljubarrota, uma boa vila, próximo à qual se travou a famosa batalha, em comemoração da qual se fundou o convento da Batalha. Este último lugar é um vasto e rico convento de monges, todos os regimentos britânicos desta divisão foram facilmente aquartelados aí, tal como os generais e muitos outros oficiais. Diversas divisões do exército britânico passaram em alturas diferentes por este lugar e algumas permaneceram aí por alguns dias, durante os quais um jantar lhe foi servido no convento para o conjunto dos oficiais. Neste dia isso foi feito pela última vez, pelo menos nos tempos presentes, porque a maior parte dos monges já tinham abandonado o convento e os que tinham ficado para trás partiram nessa mesma tarde, tinham um navio preparado em São Martinho há já algum tempo para os evacuar, com as suas provisões e outros bens. Eles deixaram uma boa quantidade de feno, palha, legumes e outros produtos, que suplicaram ao general para os distribuir porque, caso contrário, ficariam nas mãos dos franceses. E chegou uma mensagem da Quinta que se situava a meia légua dali a dizer que a família que a habitava estava prestes a partir também cumprindo as instruções dadas aos povos e informando o general que deixavam lá uma grande quantidade de vinho, milho e azeite. A vila encontrava-se deserta e os soldados começaram a pilhar as casas, mas o general Picton deu ordens em contrário mal se apercebeu disso, no entanto, muito ainda foi retirado de onde não havia moradores. Esta ordem foi muito malvista pelos soldados, as pessoas tinham sido evacuadas para Lisboa e não havia mal de maior nisso além dos danos que poderia causar à sua reputação, pelo que os soldados continuaram a saquear onde quer que fosse fácil fazê-lo impunemente. O tenente-coronel Fletcher e Chapman foram colocados em Rio Maior, não me importaria de ser eu a verificar se era possível encontrar aí uma boa posição para o exército nos montes diante desse lugar.

5 de Outubro:

O Quartel-General foi transferido para Alcobaça e a 3.ª Divisão recebeu ordens repentinas para marchar nessa tarde para Alfeizerão [«Alfelzerão»], situada a duas léguas e meia de distância. As aldeias encontravam-se todas desertas, as pessoas tinham deixado as suas coisas à mercê dos soldados, as portas das casas haviam sido em grande parte deixadas abertas, e as que assim não estavam, foram forçadas; os soldados aproveitaram-se disso, como não podia deixar de ser, no entanto, o General Picton deu ordens severas a esse respeito que impediam os soldados de se instalarem nas casas, e ordenou-lhes que acampassem a céu aberto como paga pelas suas irregularidades. Já escurecera antes da coluna do exército chegar ao ponto onde deveriam virar e sair da estrada larga e havia intervalos na linha de bagagem, parte da qual virou para a direita enquanto a restante, com os soldados, continuou na estrada maior [para as Caldas], mas ao fim de algum tempo, descobrindo que se haviam enganado, o coronel McKinnon mandou-os parar na primeira água [sic, o rio de Alfeizerão?] e instalaram-se aí para passar a noite. Deveria haver sempre alguém posicionado onde as tropas precisam de virar numa encruzilhada para mostrar a todos o caminho, nesta ocasião não resultou daí nenhuma consequência indesejada.

6 de Outubro:

Para a Roliça (retirada). Uma pequena aldeia ao pé de montes escalvados, conquistados tão bem (mas com uma desnecessária dificuldade) pelas tropas britânicas sob o comando de Sir Arthur Wellesley, alguns dias antes da batalha do Vimeiro em 1808.

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Pedrógão


    Em museologia, como em muitos outros domínios, Portugal sofreu durante muitos anos de macrocefalia, o que importava era reunir nos grandes centros e sobretudo em Lisboa, tudo o que fosse encontrado de arqueologia por esse país fora, tanto o Museu Etnológico como o Museu Nacional de Arqueologia recebiam doações de material arqueológico de todas as províncias do país e tinham funcionários dedicados que percorriam o país recolhendo ou adquirindo peças arqueológicas para serem remetidas para Lisboa. Houve no passado múltiplas campanhas arqueológicas desenvolvidas sob esse fito (talvez não tão rigorosas ou científicas como seria desejável, nem prolongando os trabalhos mais do que se considerava necessário).

    No concelho de Alcobaça, por sua vez, ganhou forma ao longo do século XX uma concepção "pleiádica" de Museu, a ideia justa e razoável de que em vez de existir um museu central na sede do concelho, as diferentes freguesias deveriam albergar um pequeno núcleo museológico com o acervo que aí fosse reunido (arqueologia, etnografia, arte, etc.). Sem nos determos no acervo "hermético" da casa-museu Vieira Natividade, com peças arqueológicas e etnográficas dos concelhos de Alcobaça e Nazaré que tardam em ser organizadas e expostas de forma condigna, lembramos que essa ideia do museu deslocalizado já se encontrava presente nas reflexões de Eduíno Borges Garcia, mas que foi o Dr. Pedro Gomes Barbosa, com a criação do museu monográfico do Bárrio, que lhe deu a sua mais eloquente expressão: os itens escavados em Parreitas estão aí expostos, integrados numa exposição permanente que os explica e contextualiza. Seria salutar se a ideia fosse aplicada a outras freguesias, não só para guardar o que aí existisse, mas servindo para informar e transmitir noções sobre o património que acautelassem o desprezo ou a depredação perante o património material e imaterial da terra. Ao contrário do que por vezes se aventa de forma muito ligeira, as pessoas em geral gostam de cultura, gostam de saber sobre as suas raízes e as tradições do passado, e essa inclinação poderia ser fundamentada e enriquecida com exposições e palestras que, por sua vez, poderiam trazer de volta, mais conhecimento e mais informação num processo dinâmico de enriquecimento. 

     Lembramos aqui uma das escavações arqueológicas que se enquadram na preocupação que acima referimos de reunir espólio digno de ser guardado e/ou exposto em Lisboa. Ao lermos o artigo de José Carvalhais sobre as escavações arqueológicas em Alfeizerão, fica-nos a ideia de que se poderia ter ido mais longe, mas esses trabalhos reuniram alguns itens que ficaram em depósito na igreja paroquial antes de serem enviados para Lisboa e darem entrada no Museu Nacional de Arqueologia.

    Em 1903, José de Almeida Carvalhais fez escavações no Pedrógão e algumas sondagens arqueológicas nas Ramalheiras. Entre o espólio encontrado no Pedrógão enuncia, um sarcófago de mármore com tampa, e fragmentos de vasilha e ânfora, além de diversas ossadas, que atribuiu ao período romano (artigo acessível em: http://www.patrimoniocultural.gov.pt/static/data/publicacoes/o_arqueologo_portugues/serie_1/volume_8/90_antiguidades_romanas.pdf). O sarcófago de mármore («pia sepulcral») fora encontrado por pessoas que naquele sítio tentavam extrair pedra e é descrito como muito fragmentado.

    Um dos itens que Carvalhais levou para Lisboa foi um peso de bronze romano (um pondus), que adquiriu por compra a um rapaz que o havia achado no Pedrógão. Pelo menos esse item não se encontra “perdido” e possui uma referência segura, o n.º de Inventário 16165 do Museu Nacional de Arqueologia. A ficha pode ser consultada na hiperligação: http://www.matriznet.dgpc.pt/MatrizNet/Objectos/ObjectosConsultar.aspx?IdReg=1110824&EntSep=2#gotoPosition

domingo, 4 de outubro de 2020

Apontamentos corográficos de Frei Manuel de Figueiredo sobre Alfeizerão (1782)

Seis anos depois regresso ao texto de Frei Manuel de Figueiredo na transcrição de Casimiro de Almeida, com algumas reflexões e acréscimos:

Hiperligação


Uma descrição do castelo pelo cronista frei Manuel de Figueiredo (1781)


«A vila de Alfeizerão fica superior às suas campinas, que a cercam do Sul, Norte e Poente, e desta parte se eleva um formoso rochedo, bem fronteiro à barra de Salir, sobre o qual está fundado o seu destruído Castelo, do qual mostram as ruínas era formado de uma muralha guarnecida nos quatro lados, e nos quatro centros, com oito torreões redondos; da parte do Nascente se avança uma muralha coroada de ameias, com algumas janelas desiguais na altura, e se conservam algumas abertas, e outras tapadas de pedras; no meio deste corpo está mais avançada para o Nascente outra muralha, que forma uma casa quase quadrada, e mais baixa no estado a que está reduzida; esta muralha, unida ao Castelo, o cerca também pela parte do Norte, na qual ficava a porta mais principal, que já não existe, e, fronteira a esta no corpo do Castelo e muralha interior, outra porta arcada, e da parte do Nascente, contígua à obra mais destacada em que já falamos, outra porta. A parte da obra que cerca o Castelo tem no interior várias divisões, portas e uma cisterna; esta obra, pelo que mostra, era o Palácio em que muitas [vezes] se aquartelavam os Reis, e, no ano de 1630, ainda conservava as traves, como consta das Memórias que extraímos dos Livros da Câmara».

LEROUX, Gérard, «Frei Manuel de Figueiredo – Memórias de várias vilas e terras dos Coutos de Alcobaça (1780-1781)», pp. 125-126, Alcobaça, Jornal «O Alcoa», 2020.