A Casa do Relego, cuja origem era atribuída ao século XV, já não existe, no lugar onde as suas vetustas e arruinadas paredes ainda se erguiam teimosamente ao fim de quinhentos anos, apenas existe chão e vazio.
Falemos um pouco dela, como numa elegia póstuma a alguém que, em vida, não se conseguiu honrar e estimar.
O relego era um dos muitos direitos do Mosteiro donatário, que em Alfeizerão, como nos outros Coutos de Alcobaça, traduzia-se por deter o Mosteiro a exclusividade de venda de vinho de 1 de Janeiro a 31 de Março; segundo as cartas de povoamento de 1332 e 1422, o relego era regulado pelo texto do foral de Santarém (DGA/TT, Gavetas, Gav. 15, mç. 15, n.º 24), o que significava que quem desobedecesse a essa determinação, à primeira vez pagaria 5 soldos, à segunda outros cinco soldos e à terceira por «testemunho de homens bons todo o vinho seja vertido e os arcos da cuba talhados [partidos]». O direito do relego tornava necessária a existência de um edifício onde o mosteiro recebia a quinta parte das uvas colhidas (como os celeiros para os cereais e legumes), e onde se produzia, armazenava e vendia o vinho.
A Dra. Iria Gonçalves, na sua obra de referência sobre os Coutos de Alcobaça ( «O Património do Mosteiro de Alcobaça nos Séculos XIV e XV», Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 1989) compulsou diversos elementos sobre o relego de Alfeizerão para os séculos XIV e XV e, depois desse período, encontram-se muitas outras referência documentais, das quais referimos apenas uma, porque nos permite constatar que o “relego” não era apenas um direito senhorial, mas correspondia a um lugar/edifício onde ele era aplicado. Desde muito cedo se tornou prática comum o mosteiro arrendar o direito do relego e em 1690, no triénio do abade Frei Sebastião de Sotto Maior, ele é arrendado a António Lopes taleigueiro, arrendamento que renova em 1693 e 1696 («Livro das Folhas de Receita e Despesa no Triénio do Padre Geral Frei João Osório», DGA/TT, Ordem de Cister, Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, liv. 203) mas neste último triénio é a sua mulher e o seu filho que prosseguem com o relego porque este arrendatário falece a 26 de Janeiro de 1696 – no seu assento de óbito (DGA/ADLRA, IV/24/C/11, f. 64r) é mencionado como “António Lopes do relego”, referência clara ao relego como lugar onde morava, à casa do relego, como chegou até ao nosso século.
Sobre o edifício em si, na ficha patrimonial n.º IPA.00001847 do SIPA (Sistema Informação do Património Arquitectónico) pode-se ler: «Quinta de produção com casa de um piso marcada pela existência de arco conopial da fresta da fachada principal e o nome da casa e da rua atestam a época de construção e a função do edifício (armazém e venda do vinho senhorial)». É nessa janela com arco conopial de estilo manuelino que assentava a datação estimada do edifício desaparecido. Em termos oficiais, o edifício foi classificado a 12 de Novembro de 1974 como imóvel de Valor Concelhio, mas um despacho de 28 de Janeiro de 2008 retirava-lhe essa (ténue) protecção, ficando desprovido de qualquer classificação, situação que se manteve até agora com os resultados que estão à vista. Notando o aspecto preocupante do edifício depois de ter ruído o telhado da parte onde se encontrava esta janela, já tínhamos feito uma exposição escrita sobre o assunto e em Julho deste ano, reuni os elementos acima citados e outros dados históricos dispersos numa nova exposição, esta ao SIPA e a título pessoal, numa tentativa infrutífera para que o imóvel fosse reavaliado.
Neste momento, a casa do relego deixou de existir, foi apagada da face da terra de forma irrecuperável. Isto é muito triste e se não servir para mais nada, que ajude um pouco as pessoas a despertar, a estar atentas, para que perdas como esta não se voltem a verificar e se preserve para nós e para os que nos sucederem, o património que nos foi legado.
José Coutinho
23 de Novembro de 2020