Francisco
Manuel Gomes da Silveira Malhão, nasceu em Óbidos a 22 de Setembro de 1757,
formou-se em Leis em Coimbra e abriu uma banca de advogado na sua vila natal,
onde viria a falecer no ano de 1816. Celebrado boémio e poeta prolífico,
tornou-se conhecido nos seus tempos de Coimbra pela sua paixão pela música,
quer como executante (viola e guitarra),quer como cantor. É muitas vezes
referido como Malhão Velho para o distinguir do seu filho, o padre Francisco
Rafael da Silveira Malhão, poeta e orador sacro. Entre 1792 e 1797, publicou as
suas memórias autobiográficas: Vida e Feitos de Francisco Manuel Gomes da
Silveira Malhão, escritas por ele mesmo, de cujo Tomo III retiramos o excerto
que aqui apresentamos.
O
filho homónimo de Francisco da Silveira Malhão granjeou a estima e admiração
dos seus contemporâneos pelas suas prédicas e pelos seus escritos. Júlio César
Machado, que não perdia a oportunidade de se entrevistar com ele, evoca-o em
sentidas palavras na sua prosa memorialista:
“Oh! Como nós conversamos nesse dia; ao deixá-lo, apartei-me saudoso de Óbidos, que tanto vale dizer que me apartei do poeta, porque Óbidos nesse tempo não era mais do que Malhão, e hoje Óbidos não é nada. Pagou-lhe mal a sua terra, e a gente que o cercava pouca saudade pareceu sentir quando a sua alma voou para Deus. O seu enterro, que deu lugar a tantas misérias, que nem se citam, foi um acto indiferente para os dali. Poucos o acompanharam em vida, e na morte não o acompanhou nenhum. Uma frieza glacial pareceu acolher a queda do poeta sagrado (...) O pobre Malhão morreu pobre e só ao canto da vila onde vivera, sem o entender ninguém. E os senhores ministros da nossa terra, que têm sempre dinheiro e pachorra para mandarem patetas passear em comissões, nunca encontraram maneira de estabelecer uma pensão a uma irmã do poeta, senhora idosa que ficou em desgraça, e que havia sido a companheira constante da modesta e sublime existência do primeiro orador sagrado do nosso país". (MACHADO, Júlio César, Scenas da Minha Terra, pp. 47-48, Lisboa, Editor José Maria Correia Seabra, 1862)
“Oh! Como nós conversamos nesse dia; ao deixá-lo, apartei-me saudoso de Óbidos, que tanto vale dizer que me apartei do poeta, porque Óbidos nesse tempo não era mais do que Malhão, e hoje Óbidos não é nada. Pagou-lhe mal a sua terra, e a gente que o cercava pouca saudade pareceu sentir quando a sua alma voou para Deus. O seu enterro, que deu lugar a tantas misérias, que nem se citam, foi um acto indiferente para os dali. Poucos o acompanharam em vida, e na morte não o acompanhou nenhum. Uma frieza glacial pareceu acolher a queda do poeta sagrado (...) O pobre Malhão morreu pobre e só ao canto da vila onde vivera, sem o entender ninguém. E os senhores ministros da nossa terra, que têm sempre dinheiro e pachorra para mandarem patetas passear em comissões, nunca encontraram maneira de estabelecer uma pensão a uma irmã do poeta, senhora idosa que ficou em desgraça, e que havia sido a companheira constante da modesta e sublime existência do primeiro orador sagrado do nosso país". (MACHADO, Júlio César, Scenas da Minha Terra, pp. 47-48, Lisboa, Editor José Maria Correia Seabra, 1862)
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VI
Continuava
esta minha vida no estudo lento da Geometria, remetendo-me sempre de dia em
dia, por mais que me gritavam os amigos, porque todo enfronhado em agradar a um
mestre que já me havia negado piedade, não me receava tanto de outro em quem
supunha não me guardaria tanto no fundo da canastra; e por isso,
chegando-se o Natal, em vez de ocupar nisso as férias, vim de escaramuça a
Óbidos porque também desejava ter notícias verdadeiras do estado em que se
achava o meu irmão, a quem já por duas vezes haviam dado como morto.
VII
Sendo
meu companheiro nesta jornada, António Joaquim Franca, de Torres Vedras, o
qual nesse tempo ainda não havia apostatado do Direito Civil, fomos no dia
primeiro a Pombal a casa do Marquês do Couto, e no segundo a Alcobaça a casa de
António Batista; mas minto, no segundo dia a Leiria, e no terceiro a jantar em
Alcobaça na casa do dito; porque eu não quero senão o que é verdade.
VIII
Como
ele (o dono da casa) também nessa tarde ia para Óbidos, mas não precisava de ir
tão cedo como nós, esperamos um pouco, e partimos muito contentes da bela
sociedade, picando as bestas em direção[direitura] à Vestiaria,
fazendo caminho para a vila da Cela, com efeito íamos pernoitar a Óbidos, o que
não sucedeu (coisa que muito estimei), e o porquê aí vai em poucas palavras.
IX
É
costume de tempo que excede a memória dos vivos, e de que nem os mortos dão notícias,
fazer-se logo, passada a Vestiaria, um grande lameirão, com as suas
semelhanças comum golfo ou sorvedouro; aqui vai ela, o meu companheiro, como
francamente fazia tudo, francamente e apesar de advertido, meteu-se a ele
por sempre gostar de caminhar pelo trilhado, e não reparou que o que se
figurava lama cortada, era falta de cortadura, e humidade do olheiro, que
ali dormia muito solapado.
X
Enfim,
apenas entrou foi a inversão dos dentes de Cadmo, e se não me lanço ao
lameiro por uma parte mais sólida, de onde o agarrei pelo que restava do
seu pequeno corpo, teria de ser procurado à fateixa! Trouxe-o de rojo, fazendo
uma grande esteira pelo lameiro, e como eu nunca atei botas, lá me ficou
uma, e primeiro que a achasse, descalçou-se a outra, e saí segunda vez com
uma bota em cada mão, e tão cheias de barro que, sem encarecimento, me custaram
mais do que ele; feita a primeira parte, entra a segunda.
XI
Postos
nós a olhar uns para os outros, e naquele desamparo, sem aparecer viva alma,
e com o cavalo atolado de modo que só se lhe via o pescoço, o arção da sela e a
mala, ficamos amarelos, mudos, quedos, e juntos de um penedo, dois penedos.
XII
Como
estávamos daquele feitio, e quais dois porcos que se levantam do chiqueiro,
fomos cá de largo soltando a mala, e conseguimos tirar-lhe a sela, e
postos de atalaia, descobrimos dois homens que andavam cavando, dos quais o
Batista foi em demanda e os trouxe consigo, pois a Providência não falta,
e quando dá o trabalho, também acode com o remédio.
XIII
Lançados
os dois atletas, por mais diligências que fizeram, apenas conseguiram pô-lo em melhor
carregadouro; e só com uma corda que se foi buscar à Vestiaria, e outro
camarada mais, é que lançando-a atada por baixo das mãos e puxando todos, veio
vindo como barco à sirga, e deu com os ilhais em terra dura, donde custou a
levantar-se.
XIV
Era
uma coisa galante ver seis figuras, e com o cavalo sete, barradas
como uns fogareiros, sacudindo as mãos e tirando de si lama às postas,
levando um a sela, outro as botas, outro a mala, e outro o freio. E eu mesmo,
que por isto passava, não pude deixar de rir.
XV
Vendo nós as horas em que
estávamos, consequência de toda esta lastimosa e enlameada tragédia,
resolvemo-nos a ir pernoitar a Alfeizerão [Alfazirão], que nos ficava
mais perto, e proporcionado com o resto do dia, para cuja continuação
de viagem tirei sapatos da mala, e fui com as botas em ar de coldre, atascadas
de lama até à boca.
XVI Chegados à Cela, bebemos
aguardente como uns desesperados, e dando às gâmbias, descemos já de noite
a ladeira de Alfeizerão, aonde aportamos, fazendo riso a quanta gente
estava na casa que escolhemos para pousada.
XVII
Era véspera de Natal e eu
levava uma fome horrendíssima, quisemos consoar mas não havia mais do que
pão e vinho, e carne de porco crua; torrei fatias, aboboreias no vinho, assim chamado
porque para vinagre faltava-lhe muito pouco, e dando providência à
frigideirada para depois da meia-noite, nos amerendamos à fogueira, esperando
pela Missa do Galo, a que fomos, e voltamos a dar com a prateirada nas
tripas, a beber quatro trângolas, e a descansar alguma coisa em cima de uma
cama, que sendo má, levamos nela um sono muito bom.
XVIII
No outro dia, calçadas as botas, na
limpeza das quais levou toda a noite um rapaz dacasa, me guindei ao meu rocim,
e patinhando, ora lamas, ora poças d’água, entramos pela vila das Caldas, dando
muito estalos de manopla e fazendo toda a paracuada de estudante de Coimbra;
mas quão diversas, quão mudáveis e instantâneas são as coisas do mundo
e, principalmente, as glórias.
(MALHÃO, Francisco Manuel Gomes da
Silveira,
Vida
e Feitos de Francisco Manuel Gomes da Silveira Malhão, escritas por ele mesmo
, Tomo III, Lisboa, 1823,
Tipografia de J. F. M. de Campos]