Henrique (ou Anrique) da Mota
Quando Garcia de Resende publica em 1516 o seu Cancioneiro Geral, uma antologia poética dos reinados de D. Afonso V, D. João II e D. Manuel I, preservou nessa obra a quase totalidade da produção literária conhecida de Henrique de Mota.
Henrique da Mota terá nascido no Bombarral numa data estimada entre 1470 e 1480 no seio de uma família possuidora de vinhas, pomares e pinhais. Na sua juventude, forma-se em Direito e exerce o cargo de Juiz de Órfãos em Óbidos. Foi escudeiro na corte de D. Manuel e em 1527 era escrivão da corte no reinado de D. João III e participa no recenseamento populacional do reino (o Numeramento de 1527-1532), mais propriamente em Lisboa e Coimbra; e é da cidade dos estudantes que dirige em 1528 uma carta ao monarca onde aborda o tema de D. Pedro e Inês de Castro, e que incluía um pequeno diálogo entre os dois amantes com algumas caraterísticas teatrais. Ainda era vivo em 1545, data da última referência documental que se lhe conhece.
Das suas criações no Cancioneiro Geral, as mais importantes são cinco pequenas farsas, cujos títulos hodiernos parecem ter sido fixados por Leite de Vasconcelos: o Pranto do Clérigo, a Farsa do Alfaiate, a Farsa do Hortelão, a Lamentação da Mula, e o Processo de Vasco Abul. A Farsa do Alfaiate (enunciada no Cancioneiro como Outras [trovas] suas a hum alfayate), foi considerada por Leite de Vasconcelos (Revista Lusitana, 1924) como «uma das mais antigas peças do teatro português». O teatro de Henrique da Mota releva a sua familiaridade com a vida, as personagens e os tipos desta região estremenha.
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As criações de Henrique da Mota no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende |
Depois de algum menosprezo para com a obra de Henrique da Mota, os estudos de Leite de Vasconcelos, Neil T. Miller ou Andrée Crabée Rocha parecem situar o autor como um pioneiro na génese do teatro português. Qualquer um destes cinco poemas são para serem representados - são entremezes - e, apesar de algumas incertezas cronológicas, existe uma identidade cada vez mais nítida entre este conjunto modesto (mas essencial) de diálogos dramáticos de Henrique da Mota e a maturidade e a proficiência do copioso teatro de Gil Vicente. Andrée Crabée Rocha assinala na obra de Henrique da Mota a transição do género poético ao género dramático, escrevendo que ela nos dá a impressão de uma criança que balbucia primeiro e articula depois.
A Lamentação da Mula - enredo e significado
Trovas d’Anrique da Mota a ũa Mula muito magra e velha que viu estar no Bombarral à porta de dom Diogo filho do Marquês e era de dom Anrique seu irmão, que ia em romaria a Nossa Senhora de Nazarete e levava nela um seu Amo.
Assim se inicia a Lamentação da Mula ou Outras [trovas] a uma Mula, como é intitulado no Cancioneiro. A farsa desenrola-se em dois passos. Num primeiro, à porta de Dom Diogo, o diálogo estabelece-se entre Henrique da Mota e a esquálida mula, e no qual intervém também Gomes Henriques e o Amo da mula - conversa que termina com a partida destes dois para o santuário da Nazaré. Num segundo passo, indo Henrique da Mota uns dias depois a Alcoentre para se encontrar com Henrique, filho do Marquês, aí encontra de novo a Mula, que lhe conta detidamente as desventuras da peregrinação.
Maria José Palla (Medir o tempo, medir as estações - a farsa vicentina e o Carnaval, p. 257, Lisboa, 2001) recorda que na Lamentação da Mula, o protagonista é um animal, símbolo do povo famélico, topoi que encontramos noutros textos dramáticos do século XVI (cf. Quem Tem Farelos). Num outro sentido, a mesma investigadora sugere que a Lamentação da Mula seria uma farsa para ser representada no período do Carnaval - a mula magra e esfomeada seria um símbolo da Quaresma.
A primeira destas asserções parece-nos pertinente, porque são muitas as expressões no texto que a parecem confirmar, retratando uma mula que, à semelhança do povo, suporta trabalhos e passa fome e privações.
A magreza e a fome da mula são evocadas em linhas satíricas: pela sua grã magreira não deveria ter dores de baço (v. 10-11); tinha feição de lamprea na longura da barriga pouco chea (v. 41-43); tende-los ossos mui altos e a carne mui somida (v. 91-92); a mula parece longa varanda / de taverna, trave longa muito panda / zambuco que se não manda / nem governa (v. 158-162).
A identificação entre a mula magra e velha da farsa e o povo ganha consistência nalgumas passagens: quando foi d'Alfarroubeira, qu'andáveis [diz Henrique da Mota] na dianteira cos del rei; e conta a mula que havia nascido no tempo de D. Duarte e já quatro reis havia servido. E ela, a mula magra e ossuda a quem o Amo tomava a cevada, na despedida antes de partir para o santuário diz aos senhores do Bombarral: E a cousa principal / que a Deos peçais / qu'esta fome tam geral / que anda em Portugal / nam dure mais (v. 195-198). E como se falasse dos que trabalham, famintos, sob as ordens dos seus amos, lastima-se a Dom Diogo no regresso ao Bombarral: O senhor qu'esquecerá / logo se diga / ante que daqui se vá / que depois nam lembrará minha fadiga / todos teveram folgança / senhor meu neste caminho / cevada pão carne vinho / tudo foi em abastança / Todos andam em bonança / sem tromenta / senam eu sem esperança / qu'esta fome por herança / m'atormenta (v. 428-442).
Os lugares da viagem: Arelho, Salir, Alfeizerão, Famalicão, Pederneira, Alcobaça, Caldas
Transcrevo um trecho da viagem da mula (v. 226-342) e do seu amo à Nazaré (no qual destacarei os topónimos), ao qual adicionei três notas miúdas. Esta, como as outras quatro farsas de Henrique da Mota, podem ser lidas no portal do Teatro de Autores Portugueses do século XVI. Em alternativa poderá ser consultada a versão eletrónica do Cancioneiro Geral no sítio da Biblioteca Nacional (já com alguns sinistros, ou "sinistristes", traços de censura).
e fomos ter no Arelho
onde lá esses senhores
e todos seus servidores
todos eram dum conselho:
linguado perdiz coelho
e em fim
muito branco e vermelho
e eu em um palheiro velho
por roim
pois lá em Selir do Porto
que terra de fi de puta
de cevada mui enxuta
carecida de conforto.
Suei sangue ali no horto
com paixão
meu esforço ali foi morto
porém foi o grande torto
sem razão
que vos juro de verdade
que como fomos chegados
todos foram apousentados
senam eu que grã maldade.
Nam haverem piadade
de meu mal
e de minha etiguidade
senam só Lopo d’Andrade
que me val
o qual me deu por pousada
ũa casa muito fria
de vianda mui vazia
mui varrida e mui aguada.
E selada e enfreada
me deixarame a porta bem fechada
sem me dar de comer nada
se tornaram
fiquei assi passeando
chorando minhas fadigas
em minhas obras antigas
como já case sonhando.
Muitas vezes sospirando
por comer
os galos todos cantando
e eu triste arrenegando
sem prazer
senam quando ei-lo vem
c’ũa quarta dũa quarta
de farelos que mal farta
quem tam grande fome tem.
Mas eu disse: nam combém
d’enjeitar
este tam pequeno bem
por que nam fique aquém
de cear
fomo-nos Alfeizirão [Alfeyziram]
onde há infindo sal (1)
nam levei eu dali al
senam dor de coração.
Dali a Famalicão [Famalycam]
nam tardámos
que nome de maldição (2)
que nem cevada nem pão
nam achámos
e dali a Pederneira
levei um bom suadoiro
mas eu nam levava coiro
no lombo nem na cilheira.
Levava mui grã peteira
na barriga
muita fome grã lazeira
e cheguei desta maneira
com fadiga
bem disse o sabedor:
hoje mal e pior crás (3).
Se eu mal passei atrás
ali foi muito pior.
D’area lá meu senhor
fartar me manda
ela tem mui gentil cor
mas dai ò demo o saborda vianda
tomámos outra jornada
lá caminho d’Alcobaça
eu lavava pouca graça
porqu’ia mui esfaimada.
Ali fui atormentada
nesta via
e na cruz mui marteirada
com a sela bem lograda
que corria
fiquei muito descansada
quando me vi no moesteiro
em poder do estribeiro
de poder deste tirada.
E fiquei mui espantada
quando vi
cevada já debulhada
ante mim apresentada
que comi
tive muitas alegrias
os dias qu’ali passei
nam sei quando tais três dias
em meus dias passarei.
Grã saudade tomei
na partida
e partindo comecei:
oh quam pouco que logrei
esta vida
assi triste lamentando
me parti e sem prazer
outros mil males passando
que nam são pera dizer.
Às Caldas viemos ter
sem tardar
perguntei por mais saber:
estas águas tem poderde m’engordar?
(1) A Alfeizerão de infindo sal fixa em verso as prósperas salinas da vila, e de imediato a Mula diz que não levou dali outra coisa senão dor de coração, sugerindo a identidade semântica entre a dor e o sal das lágrimas.
(2) O nome de maldição de Famalicão pode ter uma explicação simples, que resulta ser a sua semelhança fonética com famélico. Na terra com esse nome aziago, a Mula não descobriu cevada nem pão.
(3) Provérbio que usa o advérbio latino cras, amanhã; o que será como dizer: Hoje mal e pior amanhã.
Outra forma literária do provérbio é: hoje mal e cras empiora.
Fontes utilizadas
ESTEVES, Elisa, O Vinho na Poesia Menor de Anrique da Mota, Colóquio Internacional NVNC EST BIBENDVM. Vinho. Identidades e Arte de Viver, Universidade Nova de Lisboa, 13-15 de Dezembro 2012
MILLER, Neil T. (Apresentação e estudo), Obras de Henrique da Mota - As origens do teatro ibérico, Livraria Sá da Costa, Lisboa, 1982.
PALLA, Maria José, Medir o tempo, medir as estações - a farsa vicentina e o Carnaval, Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, n." 14, p. 257, Edições Colibri, Lisboa, 2001.
REBELLO, Luíz Francisco, O Primitivo Teatro Português, Biblioteca Breve, volume 5, Instituto de Cultura Portuguesa, 1997.
RESENDE, Garcia de, Cancioneiro geral : cum preuilegio / [Foy ordenado e eme[n]dado por Garcia de Reesende fidalguo da casa del Rey nosso senhor e escriuam da fazenda do principe]. - Almeyrym e acabouse na muyto nobre e sempre leall cidade de Lixboa : per Hermã de Cãmpos, 28 Sete[m]bro 1516
Muito obrigado mais uma vez ,gosto sempre de aprender .
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