Já havíamos relevado em tempos o diário de um oficial inglês da Guerra Peninsular, William Tomkinson («The Diary of a Cavalry Officer - on the Peninsular War and Waterloo Campaigns»), onde ele descrevia com uma profusão de detalhes as refregas e movimentações das forças inglesas e francesas na nossa região, um documento rico e invulgar.
Desta feita, transcrevemos em versão portuguesa nossa, três entradas de diário de um outro oficial inglês, o marechal-de-campo Sir John Burgoyne, que acompanha o exército inglês na sua retirada estratégica para trás das Linhas de Torres. É um testemunho modesto em comparação com o de Tomkinson, mas não deixa de ser um contributo para o nosso conhecimento desses tempos e desse conflito em que muitos portugueses perderam a vida pela espada, pela fome e pela doença, com destaque para o funesto primeiro trimestre de 1811 em que os franceses, impedidos de alcançarem Lisboa, permaneceram na região durante o Inverno, saqueando e matando como uma alcateia de lobos.
O “general Picton” deste diário nomeia Thomas Picton (1758-1815) general britânico de origem galesa que depois de combater nas Guerras Napoleónicas e Guerra Peninsular, tombou com uma bala na cabeça na batalha de Waterloo, sendo o oficial mais graduado a perecer nessa batalha decisiva.
(Fonte:
«Life and Correspondence of Fiel Marshal Sir John Burgoyne, Bart.», vol. I, Pickle
Partners Publishing, 2012)
3 de Outubro de 1810 – Para Alcobaça (retirada).
A 3.ª Divisão marcha para Aljubarrota, uma boa vila, próximo à qual se travou a famosa batalha, em comemoração da qual se fundou o convento da Batalha. Este último lugar é um vasto e rico convento de monges, todos os regimentos britânicos desta divisão foram facilmente aquartelados aí, tal como os generais e muitos outros oficiais. Diversas divisões do exército britânico passaram em alturas diferentes por este lugar e algumas permaneceram aí por alguns dias, durante os quais um jantar lhe foi servido no convento para o conjunto dos oficiais. Neste dia isso foi feito pela última vez, pelo menos nos tempos presentes, porque a maior parte dos monges já tinham abandonado o convento e os que tinham ficado para trás partiram nessa mesma tarde, tinham um navio preparado em São Martinho há já algum tempo para os evacuar, com as suas provisões e outros bens. Eles deixaram uma boa quantidade de feno, palha, legumes e outros produtos, que suplicaram ao general para os distribuir porque, caso contrário, ficariam nas mãos dos franceses. E chegou uma mensagem da Quinta que se situava a meia légua dali a dizer que a família que a habitava estava prestes a partir também cumprindo as instruções dadas aos povos e informando o general que deixavam lá uma grande quantidade de vinho, milho e azeite. A vila encontrava-se deserta e os soldados começaram a pilhar as casas, mas o general Picton deu ordens em contrário mal se apercebeu disso, no entanto, muito ainda foi retirado de onde não havia moradores. Esta ordem foi muito malvista pelos soldados, as pessoas tinham sido evacuadas para Lisboa e não havia mal de maior nisso além dos danos que poderia causar à sua reputação, pelo que os soldados continuaram a saquear onde quer que fosse fácil fazê-lo impunemente. O tenente-coronel Fletcher e Chapman foram colocados em Rio Maior, não me importaria de ser eu a verificar se era possível encontrar aí uma boa posição para o exército nos montes diante desse lugar.
5 de Outubro:
O Quartel-General foi transferido para Alcobaça e a 3.ª Divisão recebeu ordens repentinas para marchar nessa tarde para Alfeizerão [«Alfelzerão»], situada a duas léguas e meia de distância. As aldeias encontravam-se todas desertas, as pessoas tinham deixado as suas coisas à mercê dos soldados, as portas das casas haviam sido em grande parte deixadas abertas, e as que assim não estavam, foram forçadas; os soldados aproveitaram-se disso, como não podia deixar de ser, no entanto, o General Picton deu ordens severas a esse respeito que impediam os soldados de se instalarem nas casas, e ordenou-lhes que acampassem a céu aberto como paga pelas suas irregularidades. Já escurecera antes da coluna do exército chegar ao ponto onde deveriam virar e sair da estrada larga e havia intervalos na linha de bagagem, parte da qual virou para a direita enquanto a restante, com os soldados, continuou na estrada maior [para as Caldas], mas ao fim de algum tempo, descobrindo que se haviam enganado, o coronel McKinnon mandou-os parar na primeira água [sic, o rio de Alfeizerão?] e instalaram-se aí para passar a noite. Deveria haver sempre alguém posicionado onde as tropas precisam de virar numa encruzilhada para mostrar a todos o caminho, nesta ocasião não resultou daí nenhuma consequência indesejada.
6 de Outubro:
Para a Roliça (retirada). Uma pequena aldeia ao pé de montes escalvados, conquistados tão bem (mas com uma desnecessária dificuldade) pelas tropas britânicas sob o comando de Sir Arthur Wellesley, alguns dias antes da batalha do Vimeiro em 1808.