Não pode haver conhecimentos esconsos, nem intenções dúbias.
A cultura e o património cultural são tesouros
a zelar e a acrescentar por todos;
e isso é o mínimo que o futuro espera de nós.
(Michel Parent, antigo especialista da Unesco)
1 – O que nos contam os textos
O pelourinho de São Martinho do Porto, erguido como símbolo de autonomia concelhia reconhecida pelo Foral Novo do rei D. Manuel I, foi mantido como tal durante quatrocentos anos, como um marco de pedra que mostrava orgulhosamente que a vila possuía Câmara própria e alguma autonomia jurídica e administrativa.
Com o fim da Guerra Civil e a derrota dos absolutistas no século XIX, as instituições do antigo regime tornaram-se suspeitas e ominosas, sobretudo os seus símbolos mais tangíveis, os castelos, conventos e pelourinhos – todos reduzidos à expressão mínima e negra de lugares de opressão e dor. A reação começou logo em 1834, no ano do triunfo dos liberais, quando, nas palavras do visconde de Juromenha, para imitar a revolução de França, se arrancaram os braços de ferro a alguns Pelourinhos com o fim de apagar a memória do seu antigo destino (apud BRAGA, 1985) [1].
Em Alcobaça, estes ventos de mudança fustigam a herança cultural da comunidade na secularização dos espaços interiores do Mosteiro abandonado pelos monges, e nas deliberações e iniciativas das vereações liberais da Câmara de Alcobaça. É arrematada a demolição de muros do castelo de Alcobaça para a obtenção de pedra para a construção de casas (com o pretexto do seu estado de ruína ser um perigo para quem caminhava junto aos seus panos de muralha), e alguns pelourinhos do concelho são visados também como um mero recurso para a obtenção de pedra, como foi o caso dos pelourinhos de Alcobaça, Évora, Alfeizerão e São Martinho do Porto.
Em acta de 26 de Novembro de 1866 da reunião da Câmara de Alcobaça, pode ler-se: Foi outrossim determinado sob proposta do senhor vereador Couto que a deliberação tomada a respeito do Pelourinho de Alcobaça [que decidia a sua demolição] compreendesse também o da antiga vila de S. Martinho do Porto, e que no caso de não haver concorrentes em praça que arrematassem a sua demolição, seja a mesma feita por conta da respetiva Junta de Paróquia, a qual poderá aproveitar-se da pedra que do mesmo Pelourinho se extrair para a empregar como lhe convier em benefício público [2].
Mas o pelourinho de São Martinho não cumpriu liminarmente o funesto destino que este documento deixava antever. O que fizeram dele foi contado, com a mesma subtil e quase diáfana mordacidade que nos transmite a leitura dos seus contos, por Fernando Perfeito de Magalhães Vilas-Boas.
Como já aqui deixamos registado, num artigo sobre Fernando Perfeito de Magalhães e o seu irmão Francisco, o primeiro foi um arquiteto de obra prolífica, escritor e aguarelista. Testemunhou sobre ele, neste particular, o seu amigo João Saldanha de Oliveira e Sousa: O nosso prezado amigo, artista de raça e investigador incansável, Sr. Fernando Perfeito de Magalhães Vilas Boas, andou por Portugal durante seis anos a fixar em aguarelas os pelourinhos ainda existentes. Estas suas 190 aguarelas lá estiveram expostas em Lisboa e constituem preciosa coleção que bem merece ser adquirida pelo Estado [3].
![]() |
Figura 1: Pelourinho de Aljubarrota Imagem da aguarela de Fernando Perfeito de Magalhães |
Essas aguarelas (num total de 225) foram finalmente reunidas num (belíssimo) livro publicado pelas Edições Inapa em 1991, com texto complementar de Vasco da Costa Salema [4]. Sobre o pelourinho de São Martinho do Porto, a obra reproduz, não a aguarela, que não existia, mas o comentário escrito em 1955 que lhe dedicou Fernando Perfeito de Magalhães (o destaque a negrito é nosso):
Este pelourinho de S. Martinho do Porto tem uma história pitoresca. Estava ereto no largo da vila, fronteiro à igreja, onde se fazia o mercado. Como porém fizeram obras de canalização de água para um chafariz público e o Pelourinho estorvava as obras, apearam-no, e eis que o seu fuste veio parar a outro Largo que existe na parte baixa da vila, intitulado Largo de Victorino Froes, e ali permaneceu, deitado no chão, arrumado a um canto, até que tendo este lavrador e ganadeiro, necessidade de construir um esteio para fazer uma sebe divisória no seu campo, chamado Campo do Sul, na várzea onde criava o seu gado bravo, o utilizou para esse fim, levando-o para lá. Ali permaneceu, não sei quanto tempo, não se livrando talvez de apanhar fartas marradas e até teria feito algumas pegas de cara! Passado tempo, tornou a voltar à sua antiga cama, no largo Victorino Froes. Um empreiteiro que levantava um andar sobre uma casa térrea, junto a esse largo, topando com aquele esteio ou coluna ali abandonado, lançou mão dele e utilizou-o como sólido sustentáculo do vigamento superior do pavimento. Como o andar da casa térrea era e é uma farmácia, nada mais lógico local para aquele infeliz fuste de Pelourinho, depois de ter sofrido tanto dinamismo cruel para quem tinha sido criado para viver estático por séculos sem fim. Será pois muito difícil tirá-lo da farmácia, pois é bem fornecida de drogas, tão necessárias àquele infeliz que creio que será ele a não querer abandonar aquele curativo refúgio, pois com tantos dinamismos tenha perdido a cabeça, o desgraçado.
2 – Questões levantadas pelos textos
A casa do Largo Vitorino Fróis onde o fuste ou coluna foi usado como viga de sustentação do primeiro andar, ainda existe, faz esquina entre a Calçada da Glória e a Rua Dr. Rafael Gagliardini Graça. Foi, nesse tempo, Farmácia, depois Drogaria, e mantém-se na posse de privados como casa de habitação, ao que parece, sazonal.
Nessa casa, segundo a tradição oral e fonte documental que me foi facultada (Relatório de José da Conceição Vaz, Agente Técnico de Engenharia de 3.ª Classe com a data de 18 de Agosto de 1956, ficheiro ref.ª TXT. 00372144 do SIPA - Sistema de Informação para o Património Arquitetónico), existe um pilar no pátio dessa casa, que se vê da rua, e que sustenta o telheiro, por todos apontado como o fuste do pelourinho desaparecido. O referido pilar (Figura 2) não é desprovido de graça, sendo de pedra trabalhada e com aquela respeitável pátina alaranjada da pedra vetusta, mas não é, cremos, o fuste do pelourinho (suposição nossa, frisemos). Este pilar semelha uma coluna intacta e inteira, pouco adequada, diz-nos o bom-senso, para ter sido aproveitada numa cerca para gado na quinta do Fróis, além dos ecos residuais da presença do pelourinho na quinta concordarem numa alusão plural: "fragmentos do pelourinho".
![]() |
Figura 2: O pilar no pátio da casa do Largo Vitorino Fróis - um (pobre) esboço nosso - |
Inicialmente, o pelourinho situava-se na parte alta da vila, a sua zona antiga, no modesto largo em forma de lágrima em que desemboca a rua José Bento da Silva, próximo aos Paços do Concelho e à capela de Nossa Senhora do Livramento. O chafariz público em nome do qual o apearam para fazer uma conduta de água, é a Fonte da Praça [5], virada para a Calçada de D. Pedro V, que foi remodelado pela Junta da Paróquia no ano de 1888, data coerente com o período em que surgem as disposições da Câmara Municipal de Alcobaça (de 1866) para se alienar o monumento e vender ou utilizar a pedra que dele se obtivesse.
O fuste do pelourinho apeado foi deixado por algum tempo no Largo Vitorino Fróis, depois levado para a quinta do ganadeiro e finalmente empregue na dita casa após o regresso. O relato do arquiteto e aguarelista só nos dá conta do fuste, não sabemos se como uma peça monolítica, se segmentado em duas metades quando o desmontaram (o que é sugerido pelo seu uso numa sebe ou cerca). Era o seu elemento mais alienável, como se comprovou (cerca, coluna de casa), e a sua presença no Largo cá em baixo pode corresponder a uma tentativa da Junta de Paróquia de o vender.
A parte superior do pelourinho, com o remate e o capitel, que era muitas vezes o seu elemento mais decorativo e artístico, terá ficado para trás. É tradição local, ouvida a várias pessoas, que essa parte do pelourinho teria estado durante algum tempo no espaço que ainda recordamos como o antigo "Jardim dos Macacos", onde se situava o Posto de Turismo da vila e existia um parque infantil sombreado por vigorosos plátanos, uma zona plana no sopé da encosta onde se ergue o Chalé das Palmeiras, indissociável da vida do ganadeiro de Alfeizerão. Depois, se esse rumor for fundamentado, a pedra desapareceu da vista e da memória de muitas pessoas.
Quando João Saldanha de Oliveira e Sousa escreveu em 1949 [6] sobre o pelourinho de Alfeizerão, informou que constava aí que havia fragmentos do pelourinho (que se supunha ser do de Alfeizerão) numa quinta próxima, sabendo nós que a quase totalidade dos fragmentos do pelourinho de Alfeizerão sempre andaram por perto da sua igreja matriz, no adro e na entrada do cemitério. E isto é escrito numa altura em que o fuste do pelourinho de S. Martinho já “entrara ao serviço” na antiga farmácia da vila.
3 – O desenho de João Santos
Numa obra sobre São Martinho publicada no ano de 2000 [8], o autor, João Nunes dos Santos, fazia uma descrição do antigo pelourinho de São Martinho, baseada decerto naquilo que a tradição recordava dele:
O Pelourinho consistia numa forte coluna de pedra com formato oitavado assente numa plataforma com três degraus, sendo rematado por uma figura de frade defronte de uma cruz, decerto a Cruz de Cristo, muito usada nas velas dos barcos portugueses daquele tempo.
Na mesma obra, apresenta-se, com estes elementos, uma reconstituição gráfica do Pelourinho, no qual se procura representar o formato oitavado do fuste ou coluna, distinta do fuste com caneluras de secção cilíndrica que podemos admirar na casa da antiga farmácia (Fig. 2):
A plataforma de três degraus (quadrados neste caso) é comum nos pelourinhos manuelinos, pelo que envidaremos considerações mais desenvolvidas a outros detalhes deste desenho do pelourinho.
3.1. O fuste oitavado
Existem diversos pelourinhos manuelinos com a coluna de fuste oitavado ou de fuste prismático octogonal. Alguns, são mais alongados, como no pelourinho de Almendra, outros mais baixos e entroncados, como são os casos dos pelourinhos de Idanha-a-Velha e Trofa. O pelourinho de São Martinho do Porto parece aproximar-se destes últimos, a julgar pelo desenho, e pela descrição de João Santos, que fala de uma forte coluna de pedra.
![]() |
Figura 4 Os pelourinhos manuelinos e de fuste oitavado de Almendra (1), Idanha-a-Velha (2) e Trofa (3) |
3.2. A figura do frade (ou abade)
O motivo de um frade ou abade no capitel do pelourinho é plausível e coerente. Nas vilas dos coutos de Alcobaça, seria de esperar que a simbologia dos pelourinhos manuelinos geminasse os símbolos óbvios do rei, como a esfera armilar ou o escudo das quinas, com símbolos da vila que fora agraciada com o foral, ou do mosteiro que a administrava soberanamente. No pelourinho de Turquel, onde já se quis ver a representação do abade na figura humana do seu topo que enverga um hábito, essa figura humana que será, provavelmente, a Nossa Senhora da Conceição, retrata o orago da terra, a sua dedicação religiosa. No pelourinho da Cela Nova, o remate apresenta as armas do Abade Geral de Alcobaça e a esfera armilar de D. Manuel [9]. No pelourinho de Aljubarrota, a duplicidade dos signos é mais óbvia: no capitel do pelourinho, podemos admirar a esfera armilar e as armas de Portugal cobertas pelo chapéu abacial.
Se o pelourinho de São Martinho exibia a figura do abade que detinha a jurisdição sobre a vila, esta não deveria divergir muito, no estilo, da controversa figura humana do pelourinho de Turquel.
3.3. A Cruz de Cristo
A Cruz de Cristo era um dos símbolos privilegiados do rei D. Manuel I. Por dois motivos principais: porque ficara associada à nossa expansão marítima e porque o próprio D. Manuel foi Grão-Mestre e governador da Ordem de Cristo, título que levou muito a sério, empreendendo profundas modificações e obras no Convento de Cristo em Tomar.
A Cruz de Cristo, enquanto símbolo manuelino, pode ser admirada, na região, na igreja matriz de Évora de Alcobaça, onde coroa uma representação da esfera armilar, e no convento cisterciense feminino de Cós, esculpida na porta de acesso ao coro (MARQUES, 2006).
Como motivo heráldico do capitel existem vários exemplos por esse país fora; como é o caso dos pelourinhos de Salvaterra do Extremo, Folgosinho, Vila Velha de Ródão, Proença-a-Velha, ou Redinha (Pombal); alguns deles, erguidos em territórios pertencentes a essa Ordem. A Cruz de Cristo no pelourinho que tratamos adequa-se à qualidade D. Manuel como Grão Mestre da Ordem e, cumulativamente, à natureza portuária e de construção naval da vila de S. Martinho - o mesmo símbolo cruciforme ornava as velas das caravelas e outras naves que arrostavam as vagas do oceano.
3.4. A forma do remate e do capitel. A incógnita.
A principal lacuna da descrição e do desenho de João Santos, que dificultam uma futura recriação do pelourinho em pedra (de preferência, com algum elemento arquitetónico original), é não sabermos como ele terminava no alto. João Santos escreve que a Cruz de Cristo e a figura do abade rematavam o pelourinho, mas isso não parece suficiente. Os dois motivos requerem a existência de um remate e um capitel (em formato de pinha? Tronco-cónico piramidal?) em cujas faces estivessem esculpidos esses símbolos. Precisar qual seria a sua forma, é um desafio de difícil superação. Um dos pelourinhos de fuste oitavado que existem, e que ostenta também a Cruz de Cristo, o pelourinho de Salvaterra do Extremo, é assim descrito por Eurico B. de Ataíde Malafaia, na obra mais completa que existe sobre o tema [10]:
Sobre soco moderno, de três degraus quadangulares de aresta, assenta o conjunto da base, coluna, capitel e remate, de clara tipologia manuelina. A base da coluna é oitavada, de faces ligeiramente côncavas, e decoradas com pequena rosetas. Nela encaixa o fuste, liso e de secção octogonal, encimado por capitel oitavado, molduras salientes na zona inferior e no topo. As faces do capitel são decoradas com rosetas e botões lisos. O remate é constituído por um prisma oitavado de boas dimensões, cujas faces alternadas apresentam relevos heráldicos, nomeadamente um escudo nacional coroado, uma esfera armilar, uma cruz da Ordem de Cristo, e possivelmente uma cruz da Ordem de Avis. O pelourinho é finalmente coroado por pirâmide oitavada de topo truncado, com faces ornadas de séries verticais de três botões, de tamanhos decrescentes.
Notas:
[1] BRAGA, Teófilo, O Povo Português nos seus Costumes, Crenças e Tradições, volume I, reedição das Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1985
[2] VILLA NOVA, Bernardo de, Alcobaça através do Arquivo da sua Câmara Municipal (1836-1902), página 31, edição da Câmara Municipal de Alcobaça, Alcobaça, 1940.
[3] SOUSA, João Saldanha Oliveira e, Pelourinhos do distrito de Leiria: tese apresentada ao 2º Congresso das Atividades do Distrito de Leiria / João Saldanha Oliveira e Sousa. Separata de: Segundo Congresso das Atividades do Distrito de Leiria. Reedição da Fundação António Vieira Rodrigues/Mosteiro de Alcobaça, 2007.
No distrito de Leiria, Fernando Perfeito de Magalhães aguarelou treze pelourinhos, observando João Saldanha Oliveira e Sousa que não seria difícil aumentar esse número: porque é fácil erguer de novo pelo modelo antigo, os pelourinhos de Alcobaça, Caldas da Rainha e São Martinho do Porto, sendo talvez também possível restaurar o de Alfeizerão e o da Pederneira.
[4] MAGALHÃES, Fernando Perfeito de, e SALEMA, Vasco da Costa, Pelourinhos Portugueses, Edições Inapa, Lisboa, 1991.
[5] Lê-se na placa do chafariz:
LEGADO, COMMENDADOR JOSÉ BENTO
SUBSIDIO MUNICIPAL E
SUBSCRIPÇÃO PUBLICA
EXECUTADA PELA JUNTA DE PAROCHIA
1888
[6] No jornal O Alcoa de 20 de Outubro de 1949. Citamos esta adição do Marquês ao tema na nossa publicação sobre o pelourinho de Alfeizerão.
[7] Ainda hoje persiste esse (infeliz) hábito retintamente português de ornamentar os jardins com pedras lavradas que se foi “achar” em algum edifício em ruínas ou ao abandono, de função religiosa ou secular.
[8] SANTOS, João Nunes dos, São Martinho do Porto. Apontamentos para a sua História, Edição Samartinho, São Martinho do Porto, 2000.
[9] MARQUES, Maria Zulmira Albuquerque Furtado, O Manuelino no Mosteiro e nos Coutos de Alcobaça, Tipografia Alcobacense, Alcobaça, 2006,
[10] PELOURINHOS PORTUGUESES – Tentâmen de Inventário Geral, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa, 1997.
José Lopes Coutinho
(e-mail: joseduardol@gmail.com)
Nota: O texto original deste apontamento foi publicado nesta página no ano de 2013, texto que agora revimos e voltamos a publicar por tal se justificar, dado ser um motivo atual e de renovado interesse para os espíritos sensibilizados por esta temática.