terça-feira, 1 de novembro de 2016

O filme «Lobos da Serra» – um close-up na carreira de Maria Domingas



O realizador Jorge Brum do Canto, e o seu assistente, Fernando Garcia

O filme
                LOBOS DA SERRA, Realização, argumento e diálogos de Jorge Brum do Canto, Estúdios da Tobis Portuguesa. Estreia no Tivoli, em Lisboa, a 23 de Fevereiro de 1942.

                Enredo:
                António, noivo de Margarida (Maria Domingas) fica a tomar conta das terras do tio (Tio Luís, personagem interpretado por António Silva) quando este tem de partir para a capital. Os contrabandistas descem ao povoado, e encontram-se com Joaquim (Carlos Otero), o irmão de Margarida, que trabalha para eles. Numa operação de contrabando em que Joaquim participa, as coisas correm mal, e dois deles são mortos pela Guarda Fiscal e o próprio Joaquim fica ferido. Consegue fugir e voltar a casa, onde a família o encobre, apesar das suspeitas do sargento da Guarda (o sargento Batata – Manuel Santos Carvalho), que fica de olho nele. Durante a festa da Senhora da Peneda, o sargento volta à carga, querendo obter uma confissão de Joaquim, mas tudo se aquieta com a chegada da procissão, como se trouxesse a paz e a oportunidade para Joaquim abandonar a vida de contrabando e se regenerar. António e Margarida trabalham afincadamente nas terras, mas essa prosperidade é destruída durante a noite por uma tempestade medonha que destrói as culturas e tudo o que haviam conseguido com o seu trabalho. Margarida vai trabalhar para ajudar o marido, e este, em segredo, aceita trabalhar com os contrabandistas para tentar obter dinheiro e recuperar a propriedade que o tio deixara ao seu cuidado. Quando pela calada da noite, se dirige para Espanha para ir buscar a mercadoria, adormece e tem um sonho em que antevê o que poderia acontecer se continuasse naquele caminho. Tomando o sonho como um sinal, António arrepende-se e volta para trás, decidido a vingar pelo trabalho e não pelo crime (mais uma experiência exemplar dos filmes deste realizador); e, para sua surpresa, constata que toda a aldeia se juntara para recuperar as suas terras e limpá-las dos efeitos da tempestade. Neste cenário de reconstrução e recomeço, o filme acaba de forma idílica com António e Margarida abraçados e unidos, enquanto o cão Patinhas saltita em redor.

                Intérpretes: Américo Leite Rosa (Ralha); António de Sousa (António); António Rosa (Pancho); António Silva (Tio Luís); Armando Chagas (1º Miúdo); Armando Machado (Cabo Maximino); Artur Rodrigues (Tio João); Augusto Costa - Costinha (Joãozinho); Carlinhos - António da Silva Viana (2º Miúdo); Carlos Barros (1º Guarda Fiscal); Carlos Otero (Joaquim); Ema de Oliveira (Senhora Micas); Jaime Mendes; João Guerra (Pintassilgo); João Marques (3º Miúdo); João Tavares (1º Contrabandista); José Alves (Chiola); José Malveira; Madalena Vilaça (Lola); Manuel Santos Carvalho (Sargento Batata); Maria Domingas (Margarida); Maria Emília Villas - Marimília (Senhora Conceição); Natália Silva (Garota); Reginaldo Duarte (2º Guarda Fiscal); Silva Araújo (Padre Eduardo). Participação especial do cão Vouga (o Patinhas).

Estúdios, cenários e filmagens
                A consulta da revista “Animatógrafo”, dirigida por António Lopes Ribeiro, permitiu-nos encontrar elementos que documentam todo o processo de criação deste filme, desde os primeiros preparativos, à sua demorada montagem e subsequente estreia em Lisboa no cinema Tivoli. São esses elementos que trazemos aqui de uma forma organizada e cronológica.

                Logo no ano de 1940, ano de estreia do filme João Ratão de Jorge Brum do Canto, a produtora Tobis anuncia que já se iniciara nos estúdios da Quinta das Conchas a construção dos cenários do próximo filme do realizador, Lobos da Serra. Num artigo não assinado, pode ler-se na revista Animatógrafo:
                Maria Domingas que com a interpretação de «Vitória» de «João Ratão» marcou definitivamente o seu lugar dentro do cinema português, vai novamente encarregar-se dum papel cheio de dificuldades que é o de «Margarida», protagonista de «Os Lobos da Serra». Sabemos que a personagem se lhe ajusta muito especialmente por foi escrita de propósito para ela. Jorge Brum do Canto ficou tão satisfeito com o trabalho de Domingas no «João Ratão» que teve sempre presente as qualidades e grandes possibilidades dela enquanto delineou a ação de «Lobos da Serra» a qual gira, precisamente, à volta de «Margarida» curiosa figura de rapariga que luta pela felicidade e pela reconquista dos dias alegres quando estes fogem. No «João Ratão» Domingas tivera já ocasião para cantar, chorar e rir. Agora em todos estes aspetos e noutros a simpática vedeta, que está entusiasmada com o seu novo papel, vai alargar com certeza as provas prestadas e cativar ainda mais as nossas plateias – o que, aliás, pela maneira enérgica como luta para triunfar e pelo seu inegável talento e fotogenia, merece absolutamente (revista Animatógrafo, direção de António Lopes Ribeiro, 2ª. série, n.º 7, Natal de 1940).
                Dois meses depois, à data do início das filmagens, a revista descreve os cenários ultimados da Tobis portuguesa: O estúdio da Quinta das Conchas está neste momento completamente cheio, atravancado de lés-a-lés, oferecendo um aspeto que se pode considerar inédito. Com efeito, levantaram-se ao mesmo tempo vários complexos de cenários, depois de estudada uma arrumação especial e conseguiu-se juntar, lado a lado, um posto de fronteira da Guarda-Fiscal, o interior de uma casa de lavradores minhotos remediados, uma grande azenha, uma ampla cozinha, vários quartos e um pequeno aspeto duma rua de vila nortenha (Animatógrafo, 2ª série, n.º 15, p. 7, Lisboa, 17 de Fevereiro de 1941).
                No mês de Março, decorre a rodagem das difíceis filmagens de exteriores na Serra da Estrela. Durante dez dias, e sob difíceis condições climatéricas, estabeleceram a sua base na Covilhã e filmaram planos e cenas que precisavam na Serra; o camião da Tobis carregado com a aparelhagem ficou atascado na neve e houve que abrir uma estrada para o tirar dali; noutra ocasião, foi o realizador e o seu assistente, Fernando Garcia, quem foi surpreendido pela nevasca enquanto filmavam sozinhos alguns planos do alto da serra, e só a muito custo os dois conseguiram regressar para junto da restante equipa (Animatógrafo, 2ª Série, nº. 20, 24 de Março de 1941).

Duas peripécias (O Animatógrafo, 2.ª Série, n.º 22, 7 de Abril de 1941)

                A 14 de Abril, o Animatógrafo anunciava o fim das filmagens de interiores para o filme, realçando entre as gravações, a de uma cena entre Maria Domingas e António de Sousa, um episódio romântico, ao velho gosto lusíada, num cenário florido, como é do gosto de Jorge Brum do Canto (id. 2ª. Série, nº. 23, 14 de Abril de 1941). Os exteriores prosseguem, em Arcos de Valdevez, na serra da Peneda e em Lisboa (ibid., nº. 31, de 9 de Junho de 1941), filmam-se cenas noturnas, e novas cenas de interior, e novamente se regressa à Serra da Peneda, à Estrela e a Arcos-de-Valdevez (ibid, nº. 33, de 23 de Junho de 1941; nº. 35, 7 de Julho de 1941; nº. 43 de 1 de Setembro de 1941).
                Depois de meses de montagem, com a captura de mais cenas de permeio, o Animatógrafo de 17 de Fevereiro de 1942 (3ª. Série, nº. 67) proclama a estreia do filme no Tivoli a 23 desse mês. Nesse mesmo artigo se resume com as seguintes palavras o enredo do filme e o seu conteúdo moral e normalizador: Pelos cenários grandiosos da Serra da Estrela e da Serra da Peneda, vão passar as cavalgadas do bando do contrabandista Chiola, fugidas e escondidas da vigilância da Guarda Fiscal. São eles os «lobos da Serra». São eles que, descendo ao povoado, virão tentar a vida calma que se desenrola na paisagem tranquila da terra do Minho (...) Jorge Brum do Canto baseou o seu novo trabalho numa história original onde dois temas, um movimentado, que é a vida dos contrabandistas, e outro sentimental, se ligam para erguer uma ideia moral - que é o regresso à terra e o abandono do lucro fácil, mas ilícito, do contrabando.
                A estreia verifica-se na data anunciada, numa récita de gala no Tivoli com a presença dos ministros das Finanças e das Colónias e do General Amílcar Mota em representação do presidente da república. O Animatógrafo (3.ª Série, nº. 69, 3 de Março de 1942) descreve com cores vivas a festa e os seus intervenientes. Na mesma revista, na crítica ao filme, escreve Fernando Fragoso sobre o desempenho de Maria Domingas: Maria Domingas é, fora de dúvida, uma das raparigas com mais personalidade e intuição que têm aparecido nos nossos filmes. Impôs a «Guida» de Lobos da Serra com a mesma facilidade com que nos deu a «Vitória» de João Ratão. E esta «Guida» é bem mais difícil de "defender" do que a terna namorada do soldado combatente da Flandres. Todas as expressões e inflexões de Maria Domingas estão certas - e, a dominar umas e outras, uma espantosa naturalidade que as valoriza constantemente. A sua atuação, tão justa e tão brilhante, até nos faz esquecer certos vestidos e certos penteados que lhe não vão bem - e de que ela, aliás, não tem culpa.



Alguns dos técnicos e atores do filme, com Maria Domingas, Brum do Canto e António Silva no centro

Alguns frames do filme